Quando os clássicos eram um alicerce da educaçom humanista, Xenofonte era conhecido entre a juventude do ensino secundário, nomeadamente entre aquelas adolescentes que optavam polo estudo das línguas clássicas. Um fragmento da ‘Anábase’, utilizava-se como prática para a traduçom, e de passagem, parte dos seus conteúdos empapavam os leitores moços, que ficavam comovidos por um episódio heróico.
Xenofonte é um dos exemplos dumha combinaçom antiga que hoje resulta estranha, quando nom estrambótica: a acçom ia de mao com a reflexom, a pluma com a espada, a preocupaçom abstracta com a urgência prática. Foi militar – mais exactamente, mercenário – mas também filósofo e historiador. Parte da decadência dos nossos tempos mede-se em que a tropa inumerável de tertulianos, escritores, ensaistas, especialistas, se considerem implicitamente dispensados das tarefas prosaicas da prática e esgotem todos os seus fôlegos na incontinência verbal. Mas quiçá um dos aspectos positivos de todo o terrível que está a piques de acontecer em tempos de colapso é que, pola força dos feitos, a divisom entre mao e cabeça acabe por esvaecer.
Apriori, o perfil do personagem causa-nos rechaço: ateniense de berce, serviu porém a Esparta e aderiu ao seu ideário aristocrático e belicista; dedicado às armas por dinheiro, participou em massacres e saqueios; como historiador (e longe da prentensom científica que arrastamos desde o século XIX), era parcial, opinador, litigante, e possivelmente apologético. Ao tempo, e contraditoriamente, era um sábio: recebeu o magistério de Sócrates, a quem sempre considerou referente e a quem dedicou várias obras; moveu-se por umha ideia muito clara do que ele considerava a virtude, e louvou a amizade. Valente e com dotes de liderato, protagonizou umha das façanhas mais conhecidas em Occidente: dirigiu os chamados ‘dez mil’ (umha tropa mui nutrida de soldados, num número indetermindo) por terras orientais, após ser derrotado o exército persa de Ciro ao que serviam como mercenários. Conduziu de volta a boa parte deles a terras gregas através de 1500 kilómetros em terra alheia e hostil, e posteriormente versionou a estória nas páginas da ‘Anábase’.
Parte das traduçons do grego ao galego-português da ‘Anábase’ escolhêrom a palavra ‘expediçom’; outras escolhêrom a palavra ‘marcha’ para falar da aventura dos 10000; ‘marcha’ pode ser movimento, mas também evasom, e por isso outras traduçons escolhem o termo ‘retirada’. A palavra retirada relaciona-se com‘fuga’ , que leva de imediato à nossa mente a ideia de evitaçom, rechaço e, no pior dos casos, falta de ousadia. Mas pode transmitir também outros sentidos fortes, e é neste ponto em que umha estória aparentemente remota para as galegas e galegos de 2022 traz ressonáncias de interesse. Por vezes, a correlaçom de forças nom permite o choque directo, e obriga a argalhar outras formas resistentes. Mas esta fuga nom é nem prácida, nem harmónica, nem nos livra de dilemas e decisons críticas. Como exemplo paradigmático da fuga inflamada de valentia topamos a fuga do preso; que obviamente nom seria quem de derrubar os muros da cadeia nem de amotinar todos os prisioneiros contra os guardas, mas si é quem, com engenho e decisom, de fazer buracos, saltar muros, enfrentar riscos mortais e ao cabo enfrentar-se à vida espida do prófugo, fora da lei e sem laços sociais fortes. Xenofonte e os seus enfrentárom escaramuças inimigas, salvárom accidentes geográficos, passárom calor e sede, e, o que é tam importante como todo o anterior, permanecêrom coesos, quando o desenlace mais habitual da penúria colectiva é o cisma e a descomposiçom dos grupos.
Nom somos um grupo de militares perseguidos ou fugitivos, mas si umha sociedade (um conjunto de sociedades), ainda opulentas, que esbatem com os seus limites, e chegam ao momento de mudar realmente o rumo ou directamente perecer. Quando umha civilizaçom se achega a momentos de séria decadência, ou até mesmo terminais (e certos sintomas apontam a isso neste século que andamos), as retiradas ordenadas, valentes e criativas parecem ser a soluçom própria da cordura e da dignidade humana, ante a alternativa da estampida, a histéria e o todos contra todos; nom tem porque tratar-se dumha retirada territorial -lá onde a mudança climática o permitir-, mas si umha retirada do sistema de valores e formas de vida dominantes até entom. Longe da vocaçom dos eremitas, as retiradas som colectivas e, como Xenofonte bem sabia, organizada por volta de algumha ideia superior, como a de amizade e a virtude, que impede os efeitos corrosivos do salve-se quem puder. Tam difícil que semelha impossível; e porém, imprescindível, porque qualquer outra escolha nos conduz ao pesadelo.