Quando o ser humano começou a sentir-se centro da criaçom, e com disposiçom a modificá-lo todo (com os efeitos emancipadores e terríveis que isto tivo) elaborou a imagem e o modelo do polifacético, sumum da nossa expressom como espécie, e do que a mulher aparecia excluída. Qualquer de nós recorda as explicaçons escolares do humanismo renascentista através daquele rosto enfurrunhado de Leonardo da Vinci que, segundo nos explicavam, era a um tempo naturalista, escultor, pintor, anatomista, cientista, engenheiro e filósofo.

Uns séculos mais tarde, o liberalismo ensinou-nos que, além de excelência moral e intelectual, a auto-construçom do indivíduo era a base da sua felicidade, e para prová-lo, este movimento pujo no mundo um gigante como o Benjamin Franklin: operário de imprenta, empresário, escritor, pai da nova naçom estadounidense, e inventor de cousas que nos som hoje tam familiares como os para-raios, as estufas salamandra, as aletas de mergulho ou até mesmo o corpo de bombeiros. Franklin, obsessivo e perfeccionista, inventou também um ‘plano de melhora moral’ onde registava os seus logros espirituais e materiais de cada dia, e sem sabê-lo criou também o género da auto-ajuda.

O liberalismo, que nom cumpriu boa parte das suas promessas, e por baixo das fileiras de homens e mulheres geniais produzia multidons de miseráveis amoreados em factorias e arrabaldos, tivo que enfrentar-se aginha ao seu irmao inimigo. A felicidade seria comunista, dixo Marx, mas a um tempo que emendava a orde económica e social, confirmava que o ‘homem novo’ (a mulher ainda era recluída na sombra) seria a versom moderna da que sonhárom humanistas e liberais: ‘caçadores à manhá, pescadores ao meio dia, pastores à tardinha, e críticos literários depois de cear’, dizia o filósofo que seria o indivíduo comunista, com um bocado de humor, mas ao cabo com plena conviçom. Um século depois, milhares e milhares de moços assistiam entusiasmados ao nascimento de algumhas pessoas assim, representadas em indivíduos como Ernesto Guevara: aventureiro juvenil e médico, guerrilheiro e dirigente, economista e trabalhador agrário, escritor e leitor. Sem armas na mao, um dos nossos pais fundadores, Castelao, foi também um polifacético que se formou como médico, salientou como debuxante e literato, sobressaiu como político e -como se desprende da sua leitura atenta – levava consigo a rara condiçom de moralista e, em certa medida, pensador profundo.

Claro que existe também um polifacetismo humilde e menos imponhente, nom protagonizado por heroes, senom polas gentes do comum: as sociedades escassamente complexas e auto-suficientes, como a tradicional galega, precisavam do manexo de múltiplas destreças para sobreviver, e neste caso com competências variadas presentes em ambos os géneros: nas nossas paróquias conhecia-se obviamente muito dos cultivos, os animais, as plantas e o tempo, e as estrelas, mas também de construçom, de ferraria, de carpintaria ou de elaboraçom de roupa, todo engarçado num sistema de saberes composto por mitos, lendas e refráns que funcionavam como umha enciclopédia portátil para umha vida duríssima. Dando um chimpo no tempo, e recriando umha precariedade mui distinta, também os movimentos minoritários e cercados polo poder, como o independentismo galego, desenvolvêrom um tipo de militante multifunçom: quase sem liberados e carentes de grandes apoios económicos, os activista tipo escreviam e maquetavam, produziam ideias, angariavam fundos, mantinham aberto um centro social, dominavam os resortes legais que permitiam amortecer a repressom, ou assimilavam os conhecimentos piscológicos que permitem navegar nos mares procelosos das dinámicas de grupo, a clandestinidade ou a prisom.

No seu sentido bom, o polifacetismo é inspirador, enche-nos de energia e ilusom polas grandes cousas que podem ser feitas, e polas alturas que é quem alcançar o ser humano; no seu sentido prejudicial, pode fazer-nos impiedosos com nós mesmos, e seduzir-nos por um ideal de perfeiçom inalcançável que nos aboca à amargura e ao cinismo; mas por riba desse atranco, o ideal polifacético pode fazer-nos esquecer que a autêntica diversidade de funçons nom lhe toca em exclusiva ao indivíduo, senom à sociedade. Nom somos solistas, senom músicos de orquestra.

Hoje estám em causa, nom apenas a continuidade de alguns dos nossos direitos essenciais, como acontece desde há décadas, senom do sistema energético e de transportes, das formas de vida e consumo, da estabilidade institucional e, em geral, daqueles resortes essenciais que faciam funcionar a sociedade (mais mal que bem) como a levamos conhecido desde a segunda posguerra mundial. Os reptos som tam enormes que precisarám o concurso de milhares de polifacéticas mas, por riba dos talentos individuais, exigirám movimentos populares mui amplos e de vasto alcanço que sejam quem de cobrir todos os ocos que deixa um modelo em falência. Sem dúvida, tocará-nos fazer de todo.