‘A justiça pola mao’ é um conhecido poema de Rosalia que relata um episódio de contestaçom de umha mulher oprimida na Galiza rural do XIX; é também o título de umha obra historiográfica recente que, inspirando-se naqueles clássicos versos, analisa vários fenómenos de violência política e social decorridos no nosso país na contemporaneidade. Nesta ampla rúbrica poderia bem entrar o último ciclo de luita ilegal do independentismo, que um tribunal especial espanhol clausurava com pesadas condenas no passado mês de janeiro. Demasiado próximo para ser ainda história e demasiado censurado polo poder para ser ainda objeto de pesquisa por parte do jornalismo, tencionamos nestas linhas dar algumhas chaves panorâmicas do que foi a oposiçom clandestina ao status quo na Galiza dos últimos tempos.

Desde o seu momento fundacional na afastada Cuba dos anos 20, a vontade de confronto direto com o Estado está presente no independentismo galego. As formulaçons ensaísticas ou jornalísticas do CRAG ou A Fouce além mar pareciam tomar corpo e intençons práticas no sector juvenil das Mocidades Galeguistas, mas tal processo, como muitos outros, foi gorado em 1936 e nom será até três décadas depois, no contexto da Guerra Fria, e de umha esquerda ocidental rejuvenescida e radicalizada, quando umha parte do movimento galego comece a teorizar e a praticar um germolo de linha armada. A rápida intervençom do Estado, com recurso à morte e à tortura, exemplificado na queda de José Ramom Reboiras, fecha o primeiro ensaio, que também se frustra polo novo clima institucional e pactista que alimenta a ‘Transiçom’. Mas, apesar das crescentes mostras de normalizaçom política, a Galiza da modernizaçom e da primeira autonomia foi também cenário de projetos armados, o mais notório dos quais, o EGPGC, ocupou boa parte da atualidade nos finais da década de 80.

A Galiza dos anos 90: pacificaçom e radicalizaçom

Se o nosso país atravessou na década de 80 processos sociais e económicos mui traumáticos, com o seu correlato de tensom e mobilizaçom, o progressivo avanço da década de 90 pareceu encarreirar o Reino de Espanha, e também a nossa terra, polos vieiros da homologaçom institucional e de certa paz social. No contexto global, cai o Muro de Berlim e o socialismo real entra em grave crise; no país, ficavam atrás os anos mais duros da chamada reconversom industrial, e as primeiras e mais intensas mobilizaçons contra dos efeitos no agro da integraçom na CEE. Se nos tempos da Reforma política um contingente imenso de militantes da esquerda antifranquista começava a nutrir os aparelhos partidários e sindicais da nascente democracia, nos anos 90, outras tradiçons políticas pareciam assinar o seu particular armistício com as elites da monarquia. Na Catalunha, Terra Lliure desaparecia e um novo independentismo institucional, ERC, capitalizava a identidade nacional; na Galiza, o BNG ratificava a sua aposta na via reformista, validada por apoios eleitorais crescentes e um trato mediático mais benévolo. Em 1998, a principal força nacionalista do país pretendia homologar-se às direitas basca e catalana na ‘Declaraçom de Barcelona’ e a independência virava palavra proscrita. O independentismo representado pola Assembleia do Povo Unido dissolvera-se pouco antes e a sua militância marchava para a casa ou ressituava-se no espaço da política nacional, enquanto presos e presas penavam quase em solitário longas condenas.

Mas, como em todos os ciclos políticos, em este também estava presente a dialética e nele pulavam tendências mui contraditórias. Um importante movimento assemblear, o antimilitarismo, orientava centos de moços numha estratégia desobediente e era secundado na rua por milhares de pessoas. Ainda que o neoliberalismo começava a fazer os seus estragos nas relaçons laborais, a Galiza continuava a ser um pontal mobilizador e alguns conflitos exemplares, como o dos marinheiros do banco canário-saariano, demonstravam a força da pressom da rua, sobardando continuamente a legalidade. No campo da cultura e da língua, embora já se conformara todo um bloco dependente da oficialidade e trincado no quadro da autonomia, floresciam por todo o território coletivos reintegracionistas de base, nada académicos, mormente juvenis e ligados direta ou intuitivamente às teses arredistas.

É neste contexto em que nasce a Assembleia da Mocidade Independentista, umha modesta organizaçom que enfrenta o cerco, desde os seus primeiros anos, da polícia política espanhola e da mídia de grande tiragem. Assinalada acusatoriamente por algumhas plumas como ‘o ovo da serpe’, o cordom sanitário por volta desta força juvenil nom impediu que esta atuasse como um pequeno estímulo no campo nacionalista, dinamizando inúmeras iniciativas populares, e introduzindo no imaginário do movimento galego um discurso e açom baseados na contundência, os chamados à tensom social e a umha agitaçom incansável.

Um novo século de convulsom e esperança

Na viragem de século, a Galiza prepara-se para a despedida do fraguismo, e fai-no numha conjuntura que concatena processos mobilizadores, e de grande entidade numérica e calado sociológico: duas greves gerais consecutivas, as luitas universitárias contra da LOU, o Nunca Mais, a versom nacional das mobilizaçons mundiais contra da Guerra do Iraque, ponhem umha nova geraçom em contacto com a intervençom social e política. À margem dumha ampla constelaçom de organizaçons independentistas públicas, que coesionam de maneira efémera por volta de NÓS-UP, nas mobilizaçons populares começa a ensaiar-se um novo repertório, desta volta violento e ilegal, que chama a atençom do Ministério do Interior e leva as forças institucionais a um claro deslinde de qualquer identificaçom radical. Nas manifestaçons, as encapuchadas fam já parte da paisagem, atacando sedes bancárias ou sedes de meios de comunicaçom espanhóis; os enfrentamentos com as forças policiais som planificados e sistemáticos, com uso cada vez mais frequente de artefactos incendiários. A noite de 24 de julho, protagonizada pola mocidade independentista, vira progressivamente um campo de batalha na zona velha de Compostela, que é militarizada, vigiada por um helicóptero, e tomada por antidistúrbios e segurança privada. Na véspera do Dia da Pátria de 2003, poucos meses depois da catástrofe do Prestige e na véspera de ser entregada a Medalha de Ouro da Galiza a Álvarez Cascos, encapuchadas incendiavam dez sucursais bancárias a poucos metros da catedral de Santiago, ante a denúncia escandalizada da casta política.

Resistência galega

Segundo declaravam peritos de inteligência da guarda civil no juízo contra vários militantes galegos em junho de 2013 na Audiência Nacional, o corpo armado já enviara desde Espanha especialistas em inteligência no verao de 2004, decidido a esculcar e gorar qualquer tentativa de violência independentista galega. O trabalho destes responsáveis somava-se assim ao dos quatro serviços de informaçom provinciais do corpo, ao que haveria que somar a própria estrutura da ‘polícia nacional’. Um ano mais tarde, e com as engrenagens policiais e mediáticas a pleno rendimento, o site Brasil Indymedia dava luz ao ‘Manifesto pola resistência galega’, que dava corpo teórico ao processo subterrâneo que se cozinhava nos sectores mais decididos do arredismo e fazia-o nas chaves relativamente novas de umha resposta violenta anónima, ‘sem nomes, sem siglas, nem postas em cena organolépticas’.

Ainda que a mídia do Regime situa reiteradamente o começo deste ciclo no ano 2005, coincidindo com a explosom dum forte artefacto que desfijo parte da sede central de Caixa Galicia em Compostela, o Manifesto aponta pola contra que já ‘desde 1995 assistimos a umha nova resistência galega que utiliza a violência política como umha arma mais de combate no processo’ e recapitula o amplo leque de objetivos que recebêrom ‘algum tipo de castigo popular independentista’, desde infraestruturas energéticas a ‘empresas escravistas’, passando por ‘partidos políticos espanholistas’.

Para o Manifesto,no novo processo em andamento ‘concatenavam-se pola primeira vez na história três geraçons de combatentes’ e os anos seguintes à publicaçom deste documento viriam confirmar inequivocamente as intençons das ou dos autores: os ataques com explosivos a grandes infraestruturas relacionadas com a turistificaçom, o ‘boom’ imobiliário ou grandes obras públicas sucedem-se, e as primeiras detençons sob legislaçom antiterrorista, encarceramento e dispersom evidenciam um maior esforço policial. Estamos já na Galiza do bipartido e, no contexto espanhol, as tentativas negociadoras do PSOE com a esquerda abertzale antecipam o fim da luita armada basca. No nosso país, remete o nível de mobilizaçom popular do lustro anterior e o independentismo mergulha-se de novo num dos seus clássicos processos cissionistas; mas, se as cenas de encapuchadas e barricadas ardendo desaparecem da paisagem, os ataques noturnos com bombas fam-se mais frequentes e de maior poder destrutivo. Os vozeiros do Estado advertem na mídia que a resistência galega, ainda sem apoio popular, é um perigo de ordem pública real e alertam sobre a existência de militantes na clandestinidade ‘dispostos a todo.’ Um membro da Comissaria Geral de Informaçom, que criou um grupo específico para combater a resistência, manifestava a um meio madrileno em 2013 que ‘estamos ante um grupo com funcionamento elementar mas efetivo.’

Crises e novos ciclos

No outono de 2011, quando na Galiza e no conjunto do Estado som mais do que palpáveis os efeitos da crise mundial das finanças, que tantos taboleiros políticos ia abanar, um ‘Segundo manifesto pola resistência galega’ valorava positivamente o caminho emprendido ‘dezasseis anos atrás’ e enfatizava a necessidade da açom: ‘as imagens mais relevantes da resistência galega som os factos, os estragos causados no conglomerado de ocupaçom, e o pesar e a intranquilidade levados às máfias político-económicas e intelectuais que nos assovalham. O melhor discurso é a açom que cria poder de facto’. Poucos meses depois, umha nova operaçom policial com grande repercussom mediática pom de relevo um outro paradigma repressivo que situa o independentismo em novas coordenadas: além da dureza do tratamento carcerário, sintetizado na classificaçom FIES e na dispersom, as condenas incluem no sucessivo o delito ‘integraçom em organizaçom terrorista’ e entendem a participaçom em sabotagens, ou mesmo a implicaçom política pública, como parte de umha adscriçom a umha estrutura clandestina. Desde entom, a sucessom de golpes político-judiciais baseados no chamado ‘direito penal do inimigo’, as longas condenas de alguns militantes (superando as duas décadas), que continuam mesmo depois de se extinguir a prática da violência, ponhem de relevo a vontade estatal de umha política de terra queimada com a subversom galega.

No processo das décadas passadas, a luita ilegal acaparou certa atualidade social e informativa e, em comparaçom com outras épocas históricas mais recuadas, a solidariedade humanitária ou política alcançou maior transversalidade; ainda com isso, tampouco este passado ciclo social, político e armado iniciado nos anos 90 superou com o défice organizativo do independentismo, autêntico calcanhar de Aquiles deste movimento, desde o seu nascimento há um século. Em qualquer caso, como em todos os processos sócio-políticos complexos, as consequências dos erros e os acertos farám-se visíveis muitos anos depois dos factos.