Ibn Jaldun foi um pensador árabe medieval, considerado por muitos como um dos primeiros representantes da historiografia materialista. Deixou escrita umha reflexom que, apesar de ter setecentos anos, parece escrita para nós: ‘os tempos duros fam pessoas duras, e as pessoas duras trazem tempos prósperos; os tempos prósperos trazem gente branda, e a gente branda traz tempos duros.’
A preocupaçom com o deterioramento da qualidade das pessoas começou na Galiza em círculos independentistas há por volta de duas décadas, mas esta parecia ser umha inquietude mui restrita e exclusiva, quase própria dumha seita alucinada; ao cabo, a dedicaçom revolucionária supom umha demanda física e mental que se soma às demandas quotidianas a modo de sobrecarga, e exige umha exposiçom à incerteza ausente em dedicaçons mais convencionais. Mas ao cabo, verdades parciais que desvelam grupinhos exclusivos tenhem enorme potencial para entender os nossos tempos. Quem esculcar os debates mais vivos em círculos sociológicos e económicos próximos ao poder poderá decatar-se de como a extensom da fragilidade alcança rango de preocupaçom profunda no ámbito das elites.
Simon Sinek é um dos autores de referência do pensamento motivador neoliberal, e umha das suas palestras ‘TED’ sobre o liderato ganhou o terceiro posto no ranking mundial de audiência neste formato. Sinek escreve prioritariamente sobre as chaves do sucesso em dinámicas de cooperaçom, concorrência e organizaçons, elementos que ponhem em comum actividades tam diversas como a empresa, o exército, o desporto ou a política. Além de fornecer dicas para o progresso individual e colectivo em termos capitalistas, Sinek chamou também a atençom da audiência ao analisar o que chamou ‘a questom millenial’. O autor británico detectou umha mudança cultural radical nas geraçons educadas nas chaves da sociedade digital, e apontou que parte da falência reiterada em dinámicas de grupo finca as suas raízes numha espécie de culto à fraqueza até o momento inédita. Nascida em sociedades da opulência de occidente e educada nos valores dumha criança de novo tipo, sobreprotectora e medonhenta, umha porçom importante da mocidade que acede aos primeiros chanços da responsabilidade adulta exibe tendências que fam difícil qualquer progresso: tendência ao vitimismo e à irresponsabilidade, incapacidade para aturar situaçons de tensom, pánico ante os compromissos de longo prazo.
Dirá-se, com bastante razom, que desde a antiga Grécia, quanto menos, as velhas geraçons criticam as carências das novas, nas que lem um signo de decadência social. O fenómeno da incompreensom entre faixas de idade é tam velho como a história, e nele confluem duas verdades: com a passagem do tempo sempre desaparecem valores (eis umha lei de ferro da transformaçom das culturas), e sempre se incorporam outros novos, que as geraçons mais veteranas receiam de assumir. Porém, se há algo que fai peculiar -e preocupante- a versom actual desta batalha intergeracional imorrente e que os destinados a pilotar a sociedade do futuro nom se defendem qualificando-se de mais fortes, mais versáteis, mais valiosos e capazes, senom que exibem a sua febleza como elemento positivo. Na verdade nem pretendem combater frontalmente os ‘velhos’ nem carregar nos seus ombreiros com o peso da direcçom dos assuntos colectivos, porque antes disso tenhem que solucionar as suas próprias ansiedades íntimas. Demissionários e retraídos, acusam a velha cultura e o poder, sem tampouco aspirarem à construçom dum poder alternativo.
Na verdade, umha certa tradiçom de esquerda, clausurada nas universidades e no funcionariado, tem contribuído para difundir este perfil psicológico. E o feito de que umha esquerda mais sólida e fundamentada se abstenha de participar na polémica deixa todo o espaço da crítica em maos da ultradireita, que nos caricaturiza com facilidade. Greg Lukianoff e Jonathan Haidt (autores de ‘The Coddling of the American Mind’) detectárom como um certo progressismo vitimista tem socializado com êxito três princípios inabilitantes: a crença de que o que nom nos mata nos fai mais febles; a conviçom de que o que sentimos num momento dado, e nom o que somos quem de razoar, é o que deve guiar a nossa acçom; e umha cosmovisom maniqueia que pensa que na vida se enfrentam o bem e o mal em formas puras (o feito de ser vítima daria entom categoria de pureza moral e blindaria-nos no debate). O baremo auto-referencial dos próprios sentimentos impede que a avaliaçom dumha situaçom dada se produza a partir do debate de argumentos e portanto do pensamento complexo; e a crença de que na vida existem ‘espaços seguros’ livres de conflito e incerteza conduz a abandoná-los todos ao primeiro contacto com a dificuldade e a fricçom.
Longe do juízo moral, Lukianoff e Haidt ajudam a entender como estes novos marcos de compreensom procedem duns condicionamentos mui fortes que as geraçons mais novas vivêrom sem opçom de escolha: umha infáncia na que praticamente desapareceu o jogo sem supervisom, em contacto com a natureza e em relaçom cooperativa e conflitiva com os pares; um processo socializador em redes virtuais, onde o êxito social se mede cada vez mais em termos de publicidade dos próprios sentimentos (for como felicidade eufórica, for como estado ansioso-depressivo); e finalmente, umha educaçom doméstica de limites difusos e ausência de sançom, o que priva da experiência de automaduraçom e choque com a autoridade.
O desenvolvimento da madurez psicológica e social do ser humano tem certos paralelismos com o desenvolvimento do nosso sistema imunológico, que nos fijo tam perduráveis e resistentes: é a través da exposiçom medida e cautelosa a um amplo leque de comidas, bactérias e mesmo parasitos como o nosso corpo genera os recursos para sobreviver às ameaças naturais; dito de outro modo, é a exposiçom a pequenas doses do nocivo como alcançamos a saúde. Espiritualmente, só depois do nosso percurso por terra incógnita é quando somos capazes de organizar e viver umha terra acolhedora e habitável. Nom, a militáncia nunca foi nem será um espaço seguro. É um espaço incerto porque se desenvolve em cenários sempre imprevisíveis, enfrenta um inimigo impiedoso, e no seu interior, ainda guiada por impulsos nobres, os seres humanos ponhemos em jogo os incontáveis claro-escuros que bolem no nosso interior, por esquerdistas que sejamos: o impulso a favor do protagonismo e de poder, as dificuldades de escuita ou o medo, com todos os efeitos que tem na distorsom das percepçons e nas relaçons entre pessoas; sermos quem de detectar o mal que pode haver em nós (como colectivos e indivíduos) sem virar-lhe as costas e luitando por emendá-lo, seria um sinal de maduraçom enormemente convincente. Mas a cultura do vitimismo e da híper-sensibilidade com o contorno impede esta abordagem, confinando-nos ao círculo vicioso da culpabilizaçom dos outros e a fugida de compromissos e de grupos, num ciclo inacabável de frustraçons e de queixumes.
O autor de origem libanesa Nassim Taleb acadou fama por acunhar a poderosa imagem dos ‘cisnes negros’, esses fenómenos imprevistos que fam tremer as sociedades sem nenhum aviso prévio e mudam as regras de jogo, obrigando a tomadas de posiçom mui decididas. Nem cumpre dizer que desde que Taleb popularizou a sua tese em 2007, os feitos semelham confirmar que os ‘cisnes negros’ pairam sobre nós com maior frequência e impacto. Menos conhecida é a ideia complementar, argumentada polo autor em 2012, e que aponta à necessidade da construçom de pessoas e estruturas ‘anti-frágeis’ para viver na incertidume. O frágil, diz Taleb, tem a feiçom dumha pezinha de porcelana, há que sobreprotegê-la porque escacha ao menor impacto, e as suas dúzias de anaquinhos nom permitem reparaçom; o anti-frágil, pola contra, precisa dos embates para alcançar novas formas mais consistentes. Continuando no terreno das metáforas, o pensador afirma que umha forte ventolada apaga umha candeia, mas aviva um bom lume. Teremos que decidir colectivamente se pretendemos ser candeias ou fogueiras.