Um homem novo senta no escritório co olhar engurrado e apanha a caneta. Com génio, toma umha folha de papel. Ainda nom chegou aos 24 anos, mas o gesto decidido e as olheiras de velar mil preocupaçons avelhentam-no décadas. Ele é o encarregado de responder a missiva que o andaluz que comanda o Exército de Libertador de Galiza lhe redigiu à Junta do Governo Galego. A mao voa sobre o branco deixando um ronsel equilibrado coa habelência de quem leva anos na prática fluída da angueira. As queixas do militar sobre a suposta falta de apoio do governo galego para justificar os seus fracassos na toma da Corunha e de Ferrol acirram-lhe o sangue como o cheiro a lobo a um grinhom da Capelada. A contençom de Solis, a sua reticência ao enfrentamento coas forças leais ao governo de Madrid que ainda resistiam no Norte do país, os seus antigos companheiros, colocava-os numha situaçom complicada. Sobretodo agora, que um novo exército penetrava na nossa terra desde Castela ao mando do carniceiro José de la Concha. O gaditano limitara-se a esperar diante das duas cidades a que se lhes somassem às suas tropas berrando-lhes consignas. Unicamente quando o destemido Manuel Buceta, o seu segundo ao mando, se adiantou cos seus homens em Betanços, dispararam fuzis e capturaram 110 prisioneiros dumha coluna inimiga. Solis nom queria pelejar.
Defraudado, o executivo revolucionário galego ordena-lhe agora ao andaluz, pola mao do moço em traço rejo, unir-se aginha ao outro corpo do Exército de Liberaçom de Galiza no Sul e deter as forças invasoras em Ourense. O raparigo enche-se da autoridade que lhe outorgava a “representaçom de dous milhons de almas” e o valor que demonstrara como miliciano na batalha de Sigüeiro e escreve: “Esta Junta acha-se já bem persuadida de que a contenda em Galiza só se vai poder decidir a baionetadas.” Acabada a carta com data do 21 de Abril de 1846, assina como secretário do governo galego canda o saúdo habitual em toda a correspondência do executivo: “Pátria e liberdade!”.
“Todo para Galiza!”
Aquela mesma mao escrevera que Galiza tinha que atingir a “nacionalidade” oito meses antes, no penúltimo número do periódico que dirigira e que a censura do regime moderado espanhol fechou ao pouco. Em 1845, isso só significava umha cousa e que no mesmo artigo tentou comunicar bulrando o olho constante e repressor do regime de Narváez: “contemplando o vasto país que os suevos figérom independente… perguntamo-nos por quê este corpo robusto e vigoroso via passar os anos deitado num leito de flores sem provar nunca a pôr em açom os seus fortes braços e sem dar saída à energia do seu espírito”. Em 2015, Francisco Rodríguez citava num artigo para o Terra e Tempo um texto da imprensa madrilenha (El Clamor Público, 19-10-1845) para falar do nosso escritor novinho. Nele expressa-se o próprio moço rebelde ao mês seguinte de que lhe encerrassem o periódico que dirigia, aquele que sob o cabeçalho se proclamava Revista da Mocidade Galega: “TODO PARA GALIZA. -Escrevéramos à frente de El Porvenir, e este lema novo e atrevido, este berro contra essa impúdica Babilónia, que num só festim consome os produtos de dous milhons de galegos… era assemade umha fórmula e um símbolo: fórmula do que devem propor-se os homens pensadores da nossa província, símbolo dumha luita, nom pacífica, doutrinal, lenta, senom contundente, incessante; agitadora, de propaganda… Nom pretendíamos imitar o O’Connell, como dixo com sarcasmo El Conciliador, senom seguir as pegadas de Espartaco… À Irlanda apenas lhe cumpre que umha sacudida do continente leve para o desconcerto à metrópole para afogar o colosso cos seus fortes braços. -Galiza escuitava por primeira vez palavras de emancipaçom… que ecoavam nos seus ouvidos harmoniosas, como um rogo, elétricas como um hino… Quando o convencimento dumha grande inquedança fosse popular… havia-se desfazer como pó esse velho alcáçar ergueito polas maos de Leovigildo.”
Existem paralelismos claros nos dous artigos, escritos com dous meses de separaçom, Agosto e Outubro de 1845, que se complementam num discurso evidentemente independentista mália a censura. No primeiro também evoca a Babilónia quase coas mesmas palavras: “um vasto plano de guerra contra essa impúdica Babilónia que nos nega até o restrobalho dos seus festins.” Babilónia é o referente bíblico para a potência estrangeira que submete o povo elegido, símbolo da corrupçom e a decadência moral dos invasores. Porém, no segundo artigo identifica-a com claridade: aquela que lhe rouba ao povo galego os seus recursos, a que construiu o rei godo Leovigildo. Este monarca germánico foi o responsável de anexar o reino suevo de Galiza à Hispánia visigótica e por isso a historiografia espanholista o situava como fundador da naçom espanhola, o “alcáçar” que “cumpria desfazer como pó”. Pola mesma, a referência aos “fortes braços” de Irlanda para afogar a sua metrópole encontram o seu paralelo nos “fortes braços” que Galiza deveria pôr em açom no primeiro texto. A referência a O’Connell, o independentista irlandês pacifista que tentou anular a ata de anexom ao Império Británico por vias legais, confronta-se coa luita armada de Espartaco como modelo. Em El Porvenir tampouco faltam equivalências a Irlanda: Galiza é a “Irlanda da Península” (El Porvenir 28-08-1845). Noutro escrito, ainda mais direto, o moçote sentenciara que Madrid representava um “garamelo em que constantemente pom a cabeça algum povo para ser decapitado” e que o berro que devia dar Galiza era o dos independentistas de Polónia contra o império russo. Em El Recreo Compostelano também se laiara de que a divisom localista do país nom nos permitisse ser umha naçom e de que essa fragmentaçom tinha que superar-se numha unidade galega para que “o nosso nome seja um título de orgulho… de nacionalidade e de cultura” (El Recreo Compostelano pág. 374 e 296)
O 2 de Abril de 1846 produziu-se o pronunciamento militar progressista em Lugo que procurava a prevalência do infante Enrique de Borbón como candidato à mao da rainha nena Isabel II. Fracassou e ficou reduzido a Galiza. Porém, estendérom-se as juntas progressistas por todas as cidades e vilas da nossa terra. Se calhar, a crise da peste da pataca, que iniciou em 1845 e que conta entre umha das causas da revoluçom de Maria da Fonte desse mesmo 1846 no Norte de Portugal (também da Primavera dos Povos de 1848), tivo muito a ver. Assim no-lo assina-la La Oliva dez anos despois: “A fame fai mal, e por isso dizia Carlos III que coa fame nom queria rem. Que o digam se nom os motins de 1846 em todas as vilas do litoral da Galiza mália a pressom militar que daquela se experimentava e o carácter dócil e pacífico dos seus habitantes.” A aplicaçom de dous novos sistemas tributários análogos nos dous Estados peninsulares coincidiu coa epidémia do tubérculo que arrasou aquele mesmo ano a Europa atlántica, com Irlanda como caso estremo e paradigmático. Só o descontente popular pode explicar a desmesurada participaçom civil e durante tanto tempo num movimento encetado com um pronunciamento militar sem apoio no resto do Estado. X.R. Barreiro, em El Levantamiento de 1846 y el nacimiento del galleguismo, fala de que os rebeldes civis detidos ao seu termo saturárom os cárceres de todo o país. A reforma de Mon-Santillán duplicava a quantidade que Galiza lhe pagava em impostos ao Estado espanhol e castigava duramente as classes populares da nossa terra em tempo de fame. Isto havia marcar totalmente o rumo do levantamento para convertê-lo numha verdadeira revoluçom.
O dia 10, a Junta de Compostela reclamou-se preferente no processo como capital de Galiza e, chamando-se soberana, legislou um artigo único: “Anulam-se todos os atos do Governo de Madrid desde o dia 2 deste mês”. Nesta Junta de Santiago participava hegemonicamente toda a geraçom de “provincialistas” co nosso moço escritor como referente. Cumpre, chegados aqui, clarificar este término. “Provincialista” é a denominaçom que nas cortes de Cádiz, só três décadas antes, se empregava para designar, de jeito despectivo, os representantes latino-americanos que demandavam auto-governo, justo antes das suas independências. Algo equivalente ao “separatistas” atual. As histórias que tencionam reduzir as demandas soberanistas deste momento à simples anulaçom das quatro províncias com base na nomenclatura do movimento ficam assim mirradas até a caricatura. Entre 1810 e 1812, ocupada a península por Napoleom, em Colômbia, Venezuela, Ecuador e as Guianas apareceu um feixe de constituiçons que promovérom a articulaçom federal do império hispánico, mas Cádiz desprezou-nas e acusou de “provincialismo” e “provincialista” qualquer aproximaçom a elas em nome da naçom única espanhola transcontinental.
Francisco Rodríguez com outra cita madrilenha do momento (El Español 29-4-1846) deixa-o em evidência no seu artigo: “Certamente, o secretário da junta provisória da pátria dos suevos é o senhor Antolim Faraldo; que após deixar dito abaixo coas regras, escolas e mestres, continua agora querendo botar abaixo outro anaco de cousas, salvo o espírito do provincialismo, que, como se fosse de bom progressista e radical e humanitário, proclama em alta voz como remédio dos nossos males, nom querendo sem dúvida dar-se por entendido de que um dos maiores para a nossa naçom é o estar composta dumha agregaçom de reinos.” Reparemos, além da ridiculizaçom da constante referência do revolucionário à recuperaçom da independência sueva frente à Hispánia goda, no emprego de “provincialismo”, análogo ao uso atual de nacionalismo como pensamento separador e anti-progressista por parte do espanholismo. Mas, sobretodo, no sinalamento explícito de Faraldo como cabeça da revoluçom galega e como reconhecido subversivo. Francisco Fernández del Riego também viu a necessidade de aclarar a confusom que provocava “provincialismo” no livro que lhe dedicou ao nosso personagem: “província, como já dixemos, nom queria significar nada parecido à circunscriçom administrativa inventada polo centralismo de importaçom francesa, senom que equivalia, pola contra, à totalidade galega como unidade diferenciada por riba da artificiosa divisom que lhe fora imposta.”
“Luita nom pacífica”
O homem despe-se da levita, acalorado por umha carragem súbita, e alouminha o beche hipnotizado pola lámpada de óleo. A caneta repousa sobre umha moreia de papéis sangrando tinta. As pupilas perdem-se nos nomes dos estudantes que ele mesmo alistou como milicianos à frente da Junta Permananente de Recrutamento. Lembra entom Sigüeiro numha tempestade de choiva e vento como custava recordar outra. Era a segunda vez que as forças revolucionárias se encontravam coas leais ao governo espanhol na ponte daquela vila, porta de Compostela. A primeira encenaram-na os soldados pronunciados e os fieis a Madrid cinco dias antes. Puig Samper, comandante dos leais ao governo espanhol, fora Capitám Geral da Galiza e superior direto de Solis. Recobria-o umha auréola progressista que fazia sonhar os militares rebeldes com umha mudança de bando, definitiva para a sua causa no país.
Fora o 8 de Abril. Solis, cumprindo as ordens da Junta de Santiago, avançara cara a Sigüeiro, onde ficavam apostados os lealistas de Samper para os expulsar para a Corunha, cidade obediente ao governo espanhol e sede da Capitania Geral de Galiza sob o mando de Juan de Villalonga. Esse primeiro choque acabou em pantomima de camaradaria entre soldados espanhóis cantando o Hino de Riego e dando os dous bandos vivas a Isabel II. O velho brigadier das forças lealistas McCrohon, desdendente de refugiados irlandeses, mesmo protagonizou umha cena surrealista confundindo o inimigo coas suas tropas e inserindo-se nas mesnadas rebeldes durante umha arenga aos soldados. Solis deixou-lhe voltar ileso e retrocedeu para Compostela após acordar umha trégua com Puig Samper em que este ia cavilar sobre a sua anexom ao pronunciamento. Do Porto narra-nos assim a reaçom da Junta de Compostela quando soubo a notícia (pág. 71): “Um ajudante de Solis correu a Santiago para participar verbalmente do sucesso da entrevista em Sigüeiro. Universal desgosto produziu esta nova, já que aguardavam outros resultados mais positivos. Sabemos que o presidente da Junta D. Pio Terraço, ao avistar-se co comandante general, e ao fazer-lhe presente a estranheza que lhes causara semelhante convénio, concluiu a sua recriminaçom coas seguintes palavras: Solís, isto perdeu-nos para sempre!“. Aquele colegueio irresponsável provocara que, ao termo do cessamento de hostilidades, o dia 10, Puig Samper chegasse a tomar Compostela enquanto a Junta de Santiago se vira obrigada a retroceder para Caldas de Reis.
Porém, o general ocupante nom contava com que Vigo, Ponte-Vedra e as vilas de toda a sua província se unissem ao levantamento. Um exército muito maior que o perseguidor avançou ao dia seguinte para reconquistar a cidade do Sar e situar de novo a Junta de Santiago no seu solar. O responsável de semelhante troco fora o extraordinário Manuel Buceta. Um brigadier da Guardia Civil natural de Portas que estivera a observar os passos dos rebeldes até daquela. O dia 9 decidiu-se finalmente a fazer parte da movimento e avançou cos seus homens sobre Ponte-Vedra. O Galicia Diplomática, no seu número 42 do 23 de Abril de 1883, narra assim aquela fundamental mudança de tornas:
“Ao chegar a duas léguas de Ponte-Vedra luitando com inumeráveis pensamentos, (Buceta) adiantou-se só coa cavalaria e encontrou a porta em estado de defensa e guardada por algumhas companhias. Saiu da cidade decontado e encontrou a sua coluna já misturada na ponte com um povo numeroso. Ao nom lhe poder dar ordens aos seus soldados por este motivo, apenas berrou: -Soldados! Tendes confiança em mim? -Temos, senhor! Respondérom. -Havedes fazer quanto vos mande? -Havemos, senhor. -Havedes responder os vivas que eu der?-Havemos, senhor. Daquela dirigiu-se ao oficial e apenas lhe dixo: -Conto também com você. E pondo-se à frente da sua coluna berrou com voz enérgica: -Viva a Junta de Santiago! As forças de Segóvia e carabineiros tomárom as armas. O povo correu sem saber por onde. Corrérom também os soldados dum e doutro bando para a Ferraria. Com tal velocidade, que preparárom as armas ao mesmo tempo num corredor do convento de Sam Francisco cruzando as baionetas dumha e outra parte por riba do pescoço do cavalo de Buceta.
Rendido o Paço de Governo (daquela a sede da Deputaçom estava no convento de Sam Francisco), saiu Buceta à praça para reanimar o espírito público. Mas a sua surpresa foi grande quando o provincial de Segóvia fechou as portas do convento e corrérom os soldados cara às fendas de disparo do muro. Em tam críticos momentos, só o povo de Ponte-Vedra deu salvado o temerário Buceta. O concelho declarou pronunciada a capital, e já enquanto se redigia o bando se constituiu a Junta. Ao pouco tempo aderiu-se toda a guarniçom.”
Buceta, incorporando as tropas de Ponte-Vedra, dirigiu-se ao dia seguinte a Vigo para reproduzir a mesma manobra. Porém, às duas da tarde, antes de chegarem, a cidade já se aderira ao movimento. A participaçom popular galega transformou desde este dia o pronunciamento progressista “por la reina libre” dos militares espanhóis na Revoluçom Galega que recordamos. Assim no-lo lembra de novo o Galicia Diplomática: “Desde o momento em que o povo galego tomou parte direta na revoluçom, variou o seu programa dum jeito essencialíssimo.”
Mas, o dia 12, Solís dera de novo mostras de apoucamento e permitiu que as tropas lealistas de Zendrera, general enviado desde Ourense, cidade ainda fiel a Madrid, pudesse fugir sem combater. Encontrava-se apenas a 25 kms da sua posiçom. Aquilo nom podia volver acontecer. O moço dá a cabeça e repete o enunciado besbelhando sem afastar o olhar da lámpada de Argand. O dia 13, o exército revolucionário de irregulares avançou diante de Solis para Sigüeiro coa intençom de assegurar-se do cumprimento das ordens da junta revolucionária de Compostela. Nom houvo palavras ao chegarem à ponte, só disparos. O rapazolo avelhentado estivo ali à frente. O seu nome nom figura como oficial miliciano nas listagens, só soldado (La Revolución Gallega de 1846 de Tettamancy y Gaston). Ainda que apenas dous dias depois fosse eleito secretário do governo revolucionário de Galiza. R.M. Martínez López evoca-o idealizado em El Pueblo Gallego do 3 de Novembro de 1926: “A figura de Antolim Faraldo, à frente do Provincial de Zamora na ponte de Sigüeiro cos cabelos revoltos e em cada mao umha pistola, dando vivas à liberdade e alentando as tropas, tem para nós umha fundíssima simpatia e pregamos-lhes a todos os moços da Galiza que se lembrem dela por um intre.” O artigo calca as informaçons doutro, escrito por Antonio Lago Pereira para El Compostelano em Julho de 1924. Porém, neste inicial, os vivas de Faraldo incluem “o povo soberano”.
Na batalha de Sigüeiro, o 13 de Abril, os lealistas contavam com duas peças de artilharia, um obus e umha posiçom defensiva assentada para evitar que os revolucionários atravessassem a ponte. Durante quatro horas, de 13:00 a 17:00, disparárom-se mutuamente, com tentativas contínuas de cruzar a ponte os revolucionários e que detinha sempre o fogo dos canhons. Na metade, às 15:00, Puig Samper já enviara um mensageiro à Capitania Geral da Corunha pedindo muniçom e reforços porque nom iam resistir muito mais. As tropas lealistas sofreram mais de 40 deserçons no entanto recuavam para Sigüeiro desde Padrom e umha trevoada histórica deixara-os enchoupados e aterecidos pola friagem na fugida cara ao passo estratégico que travava a avançada revolucionária sobre a Corunha. Mas Solis ordenou o cessamento do fogo às 17:00 e acamparem na ribeira do Tambre, ainda coa esperança de que se lhes unissem os soldados inimigos e arrepiado com tanto sangue deitado. A tormenta de frio e choiva continuava e quijo convencer os alçados de que tentariam umha incursom noturna. Porém, os dous exércitos retrocedérom essa mesma noite, o rebelde para Compostela e o lealista para a Corunha parando em Ordes.
O passo para o Norte ficava aberto. Por isso o Capitám Geral Villalonga lhe proibiu o acesso à Corunha a Samper ao dia seguinte, já que correra a voz de que foram derrotados e a sua entrada na cidade confirmaria-o coa conseqüência dumha insurreiçom popular a favor da revoluçom. A Corunha era a cidade mais progressista do país e o próprio pronunciamento fora concebido ali, na casa da arçuá Joana de Vega, feminista e revolucionária. O Brigadier McCrohon tentou justificar a retirada em carta a Villalonga alegando que os rebeldes eram muitos mais e que temiam que os arrodeassem atravessando as outras pontes do Tambre. Puig Samper apresentou a sua demissom no primeiro informe que chegou à Capitania Geral. Atrás ficavam mais de cem mortos e feridos.
“Nom queremos ser mais que galegos”
O cheiro a aceite queimado mistura-se co da pólvora daquele dia no caletre do moço. Corpos afuracados a balaços ou desfeitos polos canhons entre um balhom bíblico. Já nom havia volta atrás. Sigüeiro resultou determinante para que as juntas locais revolucionárias se acabassem de constituir por todo o país. Os olhos do rapaz percorrem umha longa listagem na sua lembrança: Muros, Noia, A Póvoa do Caraminhal, Ortigueira, Ribeira, Rianjo, Vilagarcia, Cangas, Baiona, Padrom, Caldas de Reis, Redondela, A Guarda, Tui… Era possível. Aquilo que começara como fracasso dum pronunciamento espanhol, limitado à nossa terra, convertera-se na revoluçom nacional que ele tanto predicacara. Cumpria determinaçom para levá-la ao seu fim.
O dia 15 produziu-se, de feito, o acontecimento mais determinante para o que seria o soberanismo galego futuro. A Junta de Compostela convocou as principais juntas locais revolucionárias de Galiza a umha assembleia naquela cidade. Só se ausentou Lugo, onde iniciara Solis o pronunciamento, quiçá molesta pola centralidade compostelana e polo rumo que os provincialistas lhe estavam a imprimir ao movimento. Endebém, justificou a sua ausência como protetora do Leste do país frente a qualquer incursom do governo espanhol desde Castela e submeteu-se à autoridade que daquele histórico encontro emanasse. Debruçado no escritório, assim que aquele dia lhe raparece nas mentes, a xenreira polo avougamento dos seus generais esvai devagar do nosso homem. “Estas medidas, precursoras doutras muitas, grandes e benéficas, ham-lhe infundir ao povo galego a segurança de que coa revoluçom do 46 se inaugura a segunda época da sua história.” -deixara escrito no manifesto daquela data ele mesmo.
Menos de 40 anos antes, durante a ocupaçom napoleónica da península, coa abdicaçom de Fernando VII, autoconstituíram-se por todos os territórios do império hispánico juntas soberanas que davam vivas ao monarca nos seus manifestos. Sem rei, o poder passava aos velhos reinos e aos vice-reinatos americanos temporalmente. Galiza salientara daquela neste processo com umha institucionalizaçom e organizaçom súbita que lhe permitiu manter relaçons internacionais e organizar um exército. As independências americanas som continuadoras deste primeiro instante constituínte. Nelas, os independentistas também subscrevérom a lealdade ao rei caído em troca da soberania plena que aquilo lhes concedia na prática frente ao Madrid ocupado por França. Aliás, a configuraçom inicial das suas forças e sociedades nom permitia dar passos formais mais aventurados, o objetivo era fortalecer aquele poder independente constituído.
As narrativas românticas que identificam inverosímeis consciências nacionais massivas prévias a aquele momento nom som mais que relatos justificadores a posteriori para consolidar os estados-naçom recém nados. Co tempo, assim que Espanha assumiu a sua perda definitiva, também os partilhou como sinais da impossibilidade doutro rumo para a sua própria narrativa e identificaçom nacional dentro das fronteiras que lhe restavam. As identidades nacionais do novo tipo de Estado capitalista que se implantava no XIX precisavam mapas claros cos que insuflar pertença, imagens sólidas, predestinadas. Dum ponto de vista independentista, a assembleia do 15 de Abril de Compostela seguiu aquele rego americano da soberania de facto inevitável na altura.
O texto que aquela assembleia aprovou contém duas partes bem diferenciadas. Por umha banda, um manifesto mui conhecido que tenta harmonizar as proclamas iniciais do pronunciamento militar do dia 2 coas demandas populares e pronvincialistas. Nele encontramos desde reivindicaçons da rainha e consignas históricas do progressismo espanhol até definiçons de Galiza como colónia da corte espanhola ou apelos à pátria dos suevos. Mas a segunda seçom, muito mais importante para a praxe da revoluçom, compom-se dumha listagem de medidas legisladas pola que desde esse dia passa a proclamar-se Junta do Governo de Galiza. Este órgao compunham-no membros das juntas das principais cidades que assistírom. Mas o seu presidente era Pio Rodríguez Terraço e o secretário, o nosso moço referencial, ambos senlheiros provincialistas. Quer dizer, o nascente galeguismo hegemonizava o poder civil próprio que se acabava de constituir soberanamente e subsumia as demandas militares e a sua legitimidade como iniciadores. Os fuzis resultavam imprescindíveis para assentar o seu poder.
Porém, nas medidas percebemos a repetiçom da jogada independentista americana. Estando a rainha “seqüestrada”, como noutrora seu pai Fernando VII, o governo galego constituído assumia a representaçom da soberania de Galiza até que o pronunciamento militar se estendesse polo resto do Estado espanhol. O primeiro artigo legislado foi a repetiçom do artigo único que a Junta de Compostela emitira o dia 10: “Anulam-se todos os atos do governo de Madrid desde o dia 2.” O segundo, a assunçom da representaçom de todas as juntas locais de Galiza neste governo central. Quer dizer, aquele que preconizava a conquista da “nacionalidade” para Galiza poucos meses antes agora fai parte dum governo galego revolucionário que declara a independência de facto. A manobra nom passou desapercebida para o bispo auxiliar de Compostela que naquele mesmo 1846 escreveu: “No Programa os pronunciados davam vivas à nossa rainha Dona Isabel II; mas pessoas de alta influência e por motivos fundados asseguram que projetavam República e Convençom como a francesa.” (Fr. Manuel María de Sanlúcar de Barrameda , Obispo de Cidonia y auxiliar de Composlela, autor de Recuerdos Saludables de la España Católica sobre su Apóstol Tutelar Padre y Pailón Santiago el Mayor.—Santiago 1846 ; pág. 167).
“Abolir a propriedade”
Endebém, o resto dos preceptos aprovados ainda descobrem com mais nitidez a vontade nacional-popular que adoptara o movimento. Suprimírom o sistema tributário contra o que clamavam as classes populares esfameadas e, além de condenar os funcionários que desobedecessem a pagar quatro vezes o que recadassem, declararam-nos “traidores à causa nacional”. Rebaixárom o prezo do sal, tam importante naquele momento como hoje o do combustível. Ordenárom a expropriaçom de todos os capitais do banco estatal espanhol de San Fernando para as juntas revolucionárias em cada localidade e advertírom: “Quem contravinher esta medida, além de ficar comprendido no art. 19 (traidores à causa nacional), há responder cos seus bens ou os dos seus fiadores das quantidades que retiverem ou entregassem aos funcionários do ex-governo de Madrid”. Criárom umha comissom na Universidade de Compostela para renovar a educaçom em Galiza e pô-la “em harmonia coas boas doutrinas do livre ensino”. Suprimírom a polícia e dérom-lhe as suas funçons aos alcaides das localidades. Formalizárom as forças militares sublevadas no “Exército de Liberaçom de Galiza” com dous comandantes em xefe, Solís e Leoncio Rubín. Submetidos assim às decisons do Governo Galego. Contodo, tentárom fortalecer a nova instituiçom militar e galeguizá-la. Destarte, ordenárom que “todos os licenciados do exército que residirem na Galiza se ham organizar em batalhons que tomarám o nome de Defensores do Povo. As Juntas ou concelhos ham dispor o preciso para que podam tomar as armas quando o determinar esta Junta, momento desde o que ham receber quatro reais diários e umha dose de pam.” Criárom um esquadrom de cavalaria em cada província para o que expropriárom “todos os cavalos e bestas de alçada de sete quartas coa rebaixa de quatro polegadas.” Disolvérom a Guardia Civil, fundada dous anos antes, para aderir todos os seus membros a um novo corpo, os Guías da Liberdade, “imediatamente às ordens do general em xefe das tropas de Galiza”.
Sobre o manifesto, Honorio Ferreiro Delgado na sua tese Contexto histórico-político en Galicia en la primera mitad del siglo XIX, de 1977, afirma: “Cumpre salientar este sentido social do manifesto: meta que aparece por primeira vez, repetimos, num manifesto revolucionário peninsular. As doutrinas do cristianismo social de Bonald e Lacordaire, assim como as doutrinas dos primeiros socialistas -Saint-Simon, Fourier, Owen, etc.- eram conhecidas e aceitadas por Antolim Faraldo e os seus companheiros.” De facto, Faraldo cita a Fourier em El Porvenir de Julho de 1845: “Jesus Cristo, ao morrer entre dous ladrons, sancionou o roubo e aboliu a propriedade”. Mas nom só, engasta-o co neocatolicismo de Lamartine, a teologia da liberaçom do século XIX. Até remata: “Lembrade a Socrates… a Cristo… a Fourier!” Nom em vam, pronunciou umha palestra sobre o seu socialismo na Academia Literária de Santiago, onde se reuniam os provincialistas. X. R. Barreiro nom pode mais que afirmar com contundência no número 13 da revista Grial de 1975: “A relaçom entre a geraçom galega de 1846 e o socialismo utópico é demasiado evidente para deter-nos a prová-la. Pense-se que Fourier foi objeto de estudo na Academia de Compostela e que o mesmo Faraldo deu umha conferência sobre as suas realizaçons.”
Ramón de la Sagra resulta aí umha peça fundamental, está considerado um dos primeiros socialistas do Estado espanhol. Mas também é o mestre da geraçom provincialista, as suas obras eram consultadas na biblioteca da Sociedad Económica de Amigos del País polos moços provincialistas que debatiam na Academia Literária de Compostela com Faraldo como referente (X. R. Barreiro. Grial T. 13, No. 50. 1975, pp. 413-428). O proto-anarquista corunhês manifestou o seu contato co grupo num artigo em La revista de los intereses materiales y morales de 1844. Até tal ponto estabeleceu relaçom com eles, que se converteu num dos redatores de El Porvenir ao ano seguinte. Em Junho de 1845, o periódico de Faraldo publicou umha comunicaçom sua: “Parto para o estrangeiro onde hei poder consagrar o seu periódico que levo canda mim (…) Vim com gosto que nom faltam eco para as suas doutrinas: há-lhes chegar a sua época. (…) A sua valentia surpreendeu a vários dos meus amigos de Paris e de Bruxelas cos que me vou entreter amavelmente.” Ao mês seguinte enviou-lhes umha carta aos moços provincialistas de Lugo que publica este periódico de referência: “Os moços de Lugo, como todos os de Galiza, podem contar connosco, pois juramos dentro do nosso coraçom luitar sem acougo, coa palavra, coa caneta e mesmo co braço até conseguirmos que Galiza alcance o lugar para o que está chamada… polas suas tradiçons, pola sua situaçom geográfica e pola sua organizaçom…até que os párias sejam homens!” Nom falava em vam, de la Sagra participou ativamente na organizaçom do pronunciamento progressista galego de Abril do ano seguinte (X. R. Barreiro. Grial T. 13, No. 50. 1975, pp. 413-428). A sua figura iluminou a reivindicaçom social da revoluçom galega através dos seus dirigentes. Três anos depois seria expulso de França acusado de socialista por participar co precursor do anarquismo Proudhon na revoluçom de Paris de 1848. Em 1855 denunciou o emprego de galegos como escravos nas plantaçons espanholas em Cuba. Dous anos antes conhecera em Paris a Marx e Engels.
Quem manda aqui?
Até que ponto este governo galego independente hegemonizava o movimento? Avonda com ler a correspondência entre Solís e a Junta do Governo de Galiza que todos os historiadores atribuem a Faraldo. O dia 22, diante das novas queixas de Solís, ao que se lhe ordenara unir-se a Rubín no Sul e parar a de la Concha, o executivo galego respondeu-lhe:
“Junta Superior Provisória do Governo de Galiza,- Excmo. Senhor: Com gram surpresa soubo esta Junta da manifestaçom que a Sua Excelência lhe dirigiu no dia de hoje. A dureza da sua linguagem e a injustiça dos seus cargos poriam este Corpo na necessidade de demitir os seus poderes. Se a sua abnegaçom em favor da liberdade nom for tam completa como merece a mais nobre e santa das causas. Comprendemos todo o grandioso da sua missom, por isso esta Junta nom cessou um momento em despregar todos os meios dos que dispom para facilitar novas ao seu exército dos movimentos e operaçons dos inimigos, ditou medidas económicas e administrativas, as mais poderosas para apanhar as simpatias do país; decretou a organizaçom dos licenciados e a requisa de todos os cavalos; dispujo a centralizaçom de todos os fundos em Lugo, Compostela e Ponte-Vedra; mantivo coas juntas a correspondência mais ativa e sustivo, ao cabo, o espírito público. Para isso, ditou-lhe ordens mais terminantes às pessoas encarregadas de cumprir as suas disposiçons, para a exata e rápida execuçom. Os números do periódico ofical La Revolución, som o mais eloquente testemunho da sua conduta, e cos que há responder ao país do jeito em como cumpriu a sua encarga.
Se a Sua Excelência nom obtivo o resultado que se que se devia prometer dumha divisom tam bizarra e entusiasta, a esta Junta baixo nengum conceito corresponde fazer-lhe cargos por isso. Atribua-se-lhe à desgraça ou à covardia dalguns maus cavaleiros, e nom se culpe esta Junta que, distante 15 léguas (62 Kms) de ambas as divisons, tivo o civismo ou a temeridade de ficar nesta cidade sem mais apoio que o seu prestígio.
A Junta cala o sentimento que lhe produzírom nela algumhas frases da sua exposiçom; afoga as queixas às que se puder entregar ao ver a injustiça com que a Sua Excelência qualifica a sua conduta; mas havia faltar ao seu decoro e à sua dignidade, se se esquecesse de que representa dous milhons de cidadaos; se nom lhe manifestasse à Sua Excelência que se tiver o sentimento de ler outra comunicaçom como a de hoje, abandonaria o seu posto e dirigiria o país para a mais clara e explícita manifestaçom das causas que a isto o moveriam.”
Ao dia seguinte produziu-se a batalha de Cacheiras. Leóncio Rubín, ciumento por compartilhar o mando supremo militar com Solis (ele possuia maior graduaçom no exército espanhol) atraiçoou a revoluçom e nom acodiu a combater as tropas do general de la Concha coa divisom do Sul do exército galego. Quase lhe franqueou o passo para Compostela desde Ourense. Solis enfrentou-se ao Governo Galego propondo esperar em Compostela o ataque e confiar na chegada de Rubín. A Junta revolucionária queria evitar um massacre de civis na cidade (do Porto pág. 176), como se deu depois, e, aliás, nom tinha novas da divisom do Sul, da que desconfiava. Ordenárom-lhe ao comandante do Exército de Liberaçom de Galiza preparar a defesa diante da cidade organizando umha retirada para Padrom e salvar assim a populaçom de Compostela. Naquela vila dispujeram artilharia e polo caminho podiam-se defender facilmente nas montanhas, contando já que Rubín nom ia aparecer. Solís submeteu-se à decisom aparentemente. Porém, às doze da noite, o andaluz acabou por desobedecer à calada, tirou a tropa que protegia a rota de saída pola ponte da Rocha cara a Padrom e avançou para Cacheiras colocando as defesas em Ponte Pedrinha para umha possível retirada e fortificaçom dentro de Compostela. O cândido comandante confiava ainda na chegada de Rubín. Desconcertado, o Governo Galego observou à meia noite como o seu exército avançava para Cacheiras. Solís tomara essa decissom a partir de informes incompletos das juntas locais que só olharam passar umha parte das forças espanholas e achou que estava em vantagem. O executivo de Faraldo, quando descobriu a intençom do comandante, “reprovou abertamente a sua conduta e a sua ida para aquele lugar sem nengum consentimento e, prevendo a catástrofe que ia acontecer, continuou a sua viagem e dirigiu-se cara a estrada para seguir o caminho a Padrom” (do Porto pág. 185). Toda a província de Ponte-Vedra continuava fiel à revoluçom e desde ali poderia artelhar-se um contra-ataque. Amais, era importante salvaguardar Compostela dum arraso escusado na caça do governo revolucionário.
Foi em vam. Solis, ultrapassado, retrocedeu para a cidade, mália que Manuel Buceta, o seu segundo, o brigadier de Portas que sublevara Ponte-Vedra, teimou ainda em irem para Padrom. Morrérom 500 pessoas no assalto que de la Concha ordenou sobre a nossa capital. Compostela resistiu rua a rua o ataque do exército espanhol. A cidade foi saqueada, algo insólito na Europa da época. Numha casa da Praça do Pam, um Manuel Murguia de 13 anos presenciou a morte dum dos revolucionários refugiado ali e aquele dia jurou lealdade à causa galega. Arrecunchados em Sam Martinho Pinário, noutrora lugar de reuniom da Académia Literária de Compostela, Solis e Buceta discutírom sobre a rendiçom. O galego queria fugir para o Pedroso, fazer guerrilha e unir-se às forças revolucionárias que ficavam em Ponte-Vedra. Solís estava farto e entregou-se. A possibilidade dum fuzilamento sem juízo em Carral nom lhe passara pola cabeça. Mas Villalonga sabia que se os prisioneiros entravam na Corunha a sublevaçom estava garantida.
Assim e todo, ao Governo Galego ainda lhes restavam forças para responder e triunfar. Detalha-no-lo o arquiveiro de Compostela Bernardo Barreiro no número 43 do Galicia diplomática de 1883: “Salvárom-se do sítio de Sam Martinho sete oficiais que ficárom ocultos dentro do mosteiro (entre eles Manuel Buceta) e como uns 400 soldados que nom entraram nele, e que fugírom para se incorporar à segunda divisom que já constava de 2500 homens, ao mando do brigadier Rubín. Aliás contava a revoluçom com várias companhias de provinciais em Vigo e Ponte-Vedra, 400 licenciados organizados pola Junta de Tui; 700 homens da guarniçom de Lugo e várias partidas soltas, contigente que se havia achegar muito aos 5000 combatentes.” Porém, Leoncio Rubín, comandante da divisom do Sul do Exército de Liberaçom de Galiza, num último ato de covardia, abandonou de noite as suas tropas em Sam Jurjo de Sacos e fugiu em barco desde Vigo para Portugal, na mesma manhá do 26 de Abril em que fuzilavam a Solís. Alguns oficiais revolucionários perseguírom-no enquanto escapava e disparárom contra ele sem sucesso. Ausente de mando o segundo corpo do Exército de Liberaçom, já nom cabia possibilidade de resposta.
Aben Humeya
Um homem engaranido incorpora-se no leito e tosse sangue no penico. Fica um intre olhando os gorgulhos vermelhos de vida que se lhe vai. Toma alento e guinda a mirada para a fiestra. Escurece sobre a Alhambra e as montanhas da serra tornam-se violetas engordinho. “Aben Humeya” repete num borborinho. Aquele fora o seu alcume em numerosos artigos da imprensa compostelana, um pseudónimo perfeito. Em 1562, Fernando de Córdoba y Válor recuperou o seu nome árabe Aben Humeya, dirigiu a revolta dos mouriscos das Alpujarras e independizou de novo o reino de Granada. Foi em verdade o derradeiro rei de Al-Andalus, o libertador dos que nom queriam falar castelhano nem vestir-se como cristaos, dos que fartaram da conquista de setenta anos que os escravizava e os negava. Juan de Áustria venceu-nos, massacrou-nos e vendeu as mulheres como escravas. Em 1609, meio milhom de andalusis tivo que abandonar a sua pátria. O betanceiro pensa agora na sua, à que lhe está vedado voltar desde a amnistia, ao igual que ao resto de dirigentes da revoluçom fracassada. Nom pode morrer no seu país e contenta-se com deixar a vida na terra daquele que admirou e imitou.
Após os fusilamentos de Carral, o exército espanhol bombardeou Lugo, a cidade iniciadora do levantamento, ainda resistente. Milheiros de civis fôrom encadeados por toda Galiza até rebordar os cárceres. Eles, os líderes revolucionários exilárom-se para Portugal seguindo a velha via que, desde Pedro Madruga chega a Antom Garcia Matos, passando polo presidente da República Galega Alonso rios ou Moncho Reboiras. Ali prendérom-nos na ilha prisom de Peniche e, abandonada a esperança independentista, procurárom o apoio do progressismo espanhol com numerosas cartas, como nos conta Carlos Pereira num artigo para o Terra e Tempo de 2014, excelente resumo desta última etapa de derrota vital em textos.
Ainda assim, desterrado em Madrid, Faraldo jamais abandonou o seu povo. Pouco antes de morrer figura, canda os outros provincialistas banidos na capital espanhola, entre umha iniciativa de ajuda para a Galiza, vítima da terrível fame de 1853 (El Católico, 21-4-1853). E, porém, gostava de Andaluzia. Longe de qualquer atlantismo supremacista posterior, citava os árabes como inflluência positiva na conformaçom da naçom galega nas páginas de El Porvenir. Em 1848, os progressistas de Córdoba elegeram-no representante diante de Espartero, engaiolados pola sua aura de revolucionário. Mas já antes, em 1845, umha das primeiras publicaçons feministas da península, El Vergel de Andalucía, pedira-lhe que escrevesse na suas páginas. Esta revista é hoje estudada polas historiadoras do feminismo no Estado e o seus editoriais enchem as antologias do movimento na península. Era o primeiro homem ao que se lhe outorgava semelhante encarga. El Porvenir de 28 Agosto de 1845 dá conta da invitaçom do seguinte jeito: “Convidado o nosso amigo Faraldo pola sua diretora, a senhorita Adela García, para fazer parte da redaçom da revista cordobesa, ham-se consagrar ele e Rua Figueroa a defender (as maiúsculas som do original) A EMANCIPAÇOM COMPLETA DA MULHERES; como um dos artigos do nosso catecismo social.” De feito, aquele fora um dos temas que debatera a Academia Literária de Compostela: a plena igualdade de sexos. Barreiro sinala-o assim em El Levantamiento de 1846 y el nacimiento del galleguismo: “destaca o papel que se lhe outorga à mulher e a defesa que se fai do feminismo, herdança direta do fourierismo”.
Antolim Faraldo morreu em Granada o 20 de Junho de 1853, o ano da fame em Galiza. Morreu pobre e longe do país que quijo libertar. Hoje, a sua tomba fica sem localizar no cemitério do Generalife daquela cidade. O jornal granadino La Constancia descreveu-na o 30 de Maio de 1854: “Na aba do Cerro del Sol, nom longe do Generalife, sobre as cinzas de tam virtuoso como malogrado patriota, só se vê umha humilde lousa de jaspe com este epitáfio; SICUT ABIS, SICUT NAVIS, SICUT UMBRA. Antolín Faraldo, eminente escritor liberal.” Antes da pandemia pugem-me em contato coas autoridades do campo-santo coa intençom de situá-la valendo-me dos arquivos. Mas um incêndio destruiu os desta época no século passado. A funcionária indicou-me, contodo, que poderia ser doada de encontrar pesquisando no próprio lugar. O Concelho de Betanços aprovou em 2004 repatriar o corpo do seu filho predileto, mas ali segue.
Sobre Faraldo caiu o mito romántico de Solís e os mártires de Carral engenhado por Murguia, que temia a sombra imensa do revolucionário betanceiro sobre a sua. Chegou mesmo a acusá-lo do fracasso do levantamento e de traiçoar a Galiza por ir morrer a Andaluzia. As pegadas do homem de Rosalia som seguidas por Tettamancy e Barreiro. Porém, a mitificaçom da parte militar e o silenciamento da civil provincialista provenhem já de Juan do Porto, um advogado compostelano, que na sua fundamental Reseña histórica de los últimos acontecimientos políticos de Galicia, publicada no mesmo 1846, estabeleceu os marcos do relato. Acabavam de fuzilar os mandos militares do pronunciamento e a morte heroica do guerreiro nom deixa espaço para o povo em pé na mentalidade romântica da altura. Para justificar a verosimilitude da versom militar e progressista espanhola de Juan do Porto, muitos historiadores, mesmo Barreiro, apontam que pudo ser um pseudónimo dum provincialista. Alguns assinalam com certeza a Rua Figueroa e outros a Vicente Manuel Cociña. O caso é que Juan do Porto foi um advogado real vinculado às altas esferas do progressismo espanhol. Assim aparece no Boletín Judicial de Galicia do 15 de Março de 1858. Ali anuncia-se o seu nomeamento como membro da comissom para a reforma hipotecária polo ministro de Gracia y Justicia. Também aparece como advogado em Compostela na categoria de representante do Conde de Gimonde no seu testamento de 20 de Dezembro de 1853.
Tettamancy, na sua La Revolución Gallega de 1846 de 1908, identifica a Faraldo co regionalismo da sua própria época. X. R. Barreiro, em El Levantamiento de 1846 y el nacimiento del galleguismo de 1977, com um federalista, como os pinheiristas da sua. Contodo, a imprensa do XIX nom duvidava em situá-lo como o primeiro independentista galego. Risco e Castelao também o ham lembrar assim.
O Concelho de Betanços decretou este ano de Faraldo para celebrar o segundo centenário do seu nascimento. Porém, lembramos os militares espanhóis fuzilados em Carral ou a derrota de Solís em Cacheiras no canto da proclamaçom de independência de facto do 15 de Abril ou da vitória das forças galegas sobre o exército espanhol em Sigüeiro. Desconhecer Faraldo, nom diferenciar o pronunciamento militar da Revoluçom Galega, condena-nos aos lindes da narrativa espanholista, tanto como acreditar no inventado reino medieval de Astúrias. Cumpre racharmos o paradigma historiográfico sobre o XIX co que nos adoutrinárom espanholismo e autonomismo pinheirista, descolonizá-lo, ou seguiremos a ser reféns das suas lampanas.
Bibliografia:
X. R. Barreiro. El Levantamiento de 1846 y el nacimiento del galleguismo. Pico Sacro. 1977.
X. R. Barreiro. Grial T. 13, No. 50. 1975, pp. 413-428
Pedro Cano Borrego. In the Service of the King: The other story of the libertadores. Academia Letters, Agosto 2021
Blasina Cantizano Márquez. La mujer en la prensa femenina del XIX. Universidad de Almería. 2004.
Francisco Fernández del Riego. Antolín Faraldo, o gran soñador. Edicións Xerais de Galicia, 1998
Honório Ferreiro Delgado. Contexto histórico-político de Galicia en la primera mitad del siglo XIX. Revista de Estudios Políticos. 1977, Nº 12.
Mario Hernández Sánchez-Barba. Provincialismo, regionalismo, independentismo: Una mentalidad acumulativa en la crisis de la Independencia Hispanoamericana. Universidad Complutense. 1984.
Manuel Murguia. Los precursores. La Voz de Galicia. A Corunha. 2004.
Juan do Porto. Reseña histórica de los últimos acontecimientos políticos de Galicia. Madrid. 1846.
María F. Sánchez Hernández. Evolución de las publicaciones femeninas en España. Localización y análisis. Universidad Rey Juan Carlos. 2008.
F. Tettamancy. La revolución gallega de 1846. A Corunha. 1908.
Para as publicaçons periódicas galegas dos séculos XIX e XX: biblioteca.galiciana.gal
Para El Vergel de Andalucía: biblioteca.cordoba.es