Neste mês de abril cumprirám-se 94 anos do nascimento de José Velo Mosquera em Cela Nova, umha zona do país com umha alta e infrequente densidade de arredistas e, ainda mais, de arredistas célebres. Urbano Rodrigues, um comunista português que foi solidário da causa galega retratou José Velo Mosquera como ‘cavaleiro da utopia’ num bonito artigo nas páginas de Kallaikia.

Nunca ouvíramos a expressom e, além de resultar-nos curiosa, pareceu-nos atinada. Urbano associava o de Cela Nova com a pureza e o ‘carácter quixotesco’, dous traços de carácter que nom podem ser mais impopulares nestes tempos. Se relacionamos alguém com a ‘pureza’, aginha nos vem a mente a ‘pureza racial’ predicada pola extrema direita, ou, no plano intelectual, a ‘pureza’ dogmática do esquerdista doutrinário que nom polui o seu pensamento com influências externas. E que dizer do ‘quixotismo’? Tempos pragmáticos os nossos, que relegam ao ostracismo qualquer plano demasiado movido pola afectividade ou pola ensonhaçom.

E porém, com todos os malentendidos que suscitarem estas palavras, ainda mantenhem a sua força. Urbano, um marxista-leninista que acredita numha interpretaçom científica da história, e também numha intervençom política controlada polo cálculo, deslindava-se ideologicamente de Velo no seu texto, mas ao mesmo tempo redigia umha homenagem cheia de respeito, quase veneraçom. A força moral, quando existe, é e será sempre tam enorme que enfraquece qualquer controvérsia programática.

Magnánimo

Em tempos como estes, dominados por certa tristura, é frequente que se extenda entre nós umha concepçom sombria da condiçom humana, e que as preocupaçons pola sobrevivência, ou por manter a pequena estabilidade vital da que dispomos, fagam esquecer umha outra dimensom possível das pessoas, aquela mais digna e mais inspiradora. Porém, se queremos achar a força que nos é tam necessária, nom a descobriremos apenas nos programas acabados e coerentes, senom na disposiçom anímica que é quem de criá-los e fazê-los possíveis. No mundo clássico, ‘magnánimo’ era o termo que descrevia estas pessoas fora do comum, que um um peculiar tempero de carácter fazia catalizadores de grandes energias colectivas. O celanovense foi um deles, e quem testemunhárom a sua poderosa oratória -plena de referências galegas e particularmente ourensás- sentírom umha vibraçom especial.

Velo foi dos militantes que nom aderiu a umha causa colectiva por especiais condicionamentos pessoais: a sua saga familiar enquadrava-se nas elites políticas locais da I Restauraçom; e se possivelmente salvou a vida no genocídio de 36 por estes mesmos vínculos, nom duvidou em secundar a resistência armada poucos anos depois. Já no exílio americano, puido reconverter o seu talento político ao desempenho artístico, ensaístico e literário – fenómeno habitual nos revolucionários da classe média, e crónico nos galeguistas ‘románticos e apáticos’, como ele os chamava-; ainda, sem renunciar à escrita nem à literatura, nom abandonou o empenho, literalmente em corpo e alma, de trabalhar polo derrocamento da ditadura. A empresa colossal do DRIL -que Celso Emílio Ferreiro qualificara de ‘formosa tolaria’- bateu com todos os impedimentos que puidéssemos imaginar: um contexto internacional adverso, infiltraçons policiais desde o início e, quiçá o que é ainda pior de todo, coincidência no processo com dirigentes megalómanos, e cujo antifascismo tinha muito de ambiçom pessoal. A realidade da degeneraçom interna das organizaçons de esquerdas foi pouco estudada, e porém tem umha importáncia capital para compreender muitos fracassos. Mas a integridade do celanovense nom lhe permitiu abandonar a luita com este pretexto, e nem sequer lhe deu excusas para um discurso queixoso ou cheio de rancores sobre a sua má sorte. Num momento de máxima tensom do sequestro do Santa Maria, nem sequer tinha relaçom fluída com Sotomayor, mas mantivo-se inalterado no operativo e no seu compromisso a vida ou morte.

Precursor

Em 2004, a Assembleia da Mocidade Independentista celebrava o Dia da Galiza combatente homenageando José Velo; o evento era, obviamente, umha primeira tentativa de espalhar a sua figura (sobre a que se escrevera bastante, mas que ninguém levara à rua ou aos centros de ensino). Mas antes disso, e de maneira capital, supunha a primeira tomada de contacto com um personagem que nascera mais de médio século antes que as novas geraçons militantes galegas. Por que esse encontro tam serôdio? José Velo foi um precursor, e o grande problema dos precursores é que, muitas vezes, chegam demasiado antes de tempo às suas atrevidas conclusons. Junto com Celso Emílio Ferreiro ou Fernández del Riego, Velo foi um arredista quando tal cousa era umha absoluta rareza na Galiza, e mesmo podia levar ao enfrentamento com a hierarquia do Partido Galeguista; a finais dos anos 50, quando os ex-nacionalistas de Ramom Piñeiro vegetavam na passividade política e parte do comunismo espanhol teorizava a ‘reconciliaçom nacional’ que nos levou ao Regime que vivemos, Velo propunha e desenhava a acçom mais contundente; e quando a guerrilha agonizava nos montes da Galiza, e ainda nom se concebia o ciclo insurreccional mundial que se ia desatar nos primeiros anos 70, o de Cela Nova participava na organizaçom da luita armada contra a ditadura. Ainda, no plano da cultura, antes da eclossom do reitegracionismo, nas vésperas da Galiza autonómica, chega às suas próprias conclusons sobre a unidade galego-portuguesa; exilado no Brasil, comentava a sua satisfaçom ao se sentir, lingüisticamente, numha ‘grande Galiza’, e as suas obras literárias de madurez estarám orientadas por esta filosofia de convergência.

Iconoclasta

Velo nom era um comunista ortodoxo num tempo histórico em que existiam poderosos condicionamentos para sê-lo; tampouco foi nunca um anarquista, apesar de que Sotomayor o acusara do fracasso do DRIL ‘polo seu apaixonamento e práticas anárquicas e paternalistas’. Certamente, foi um homem tam inclassificável e irredutível a etiquetas como leal de por vida à sua noçom de compromisso e militáncia. A sua inconoclástia pode mesmo resultar-nos incómoda aos independentistas de hoje, desde que o seu último ensaio político (Morra Espanha. Viva Hespanha!) parece ser umha emenda ao seu independentismo juvenil, e um canto à uniom peninsular que mesmo o Castelao final, decepcionado até o extremo polos espanhóis, quijo abandonar.

No entanto, e contra a nossa tentaçom de erguer autênticos santos e santons teóricos a salvo de todas as fissuras, é mui saudável a controvérsia intelectual e a abertura de espírito a teses que nos contradizem e nos fam sentir incómodos. Um dos desajustamentos da nossa tradiçom política reside na nossa incapacidade para o debate intelectual duro, sem confundi-lo com a ofensa pessoal ou com a traiçom de grupo.

José Velo, polo seu nome de guerra Junqueira de Ambia, foi um dos raros, quase milagrosos ‘cavaleiros da utopia’ de carácter férreo e pensamento independente que tenhem aparecido mui pontualmente na história da Galiza. Neste tempo que andamos, que preludia barbárie mas também, como efeito reactivo, novos ideários utópicos e propostas salvíficas, muitos e muitas ainda se poderám mirar no seu espelho.