Na passada semana, um ar africano extemporáneo cobriu os céus galegos de cor laranja, e as chuvas miúdas que o seguírom deixárom umha pequena película de lodo sobre os carros e os telhados. As televisons emitem continuamente imagens da desfeita na Ucraína, o preço dos combustíveis roça os 2 euros por litro, a greve dos transportistas provoca os primeiros (e por enquanto pequenos) problemas de desabastecimento, e os efeitos psicológicos da incerta postpandemia mostram-se em todo tipo de dores íntimas. Por exprimi-lo em termos suaves e mui comedidos, todo resulta estranho.

Numha fileira da compra, um grupo de mulheres de mediana idade comentam, por trás das máscaras e com um tom de desacougo mui sincero ‘o raro que está todo’. Umha declara com convencimento que ‘basta já’, que ‘somos como ovelhas’, e que é hora de parar ‘os políticos’ polas boas ou polas más’. Tem o ar enardecido que tradicionalmente exibiam as pessoas reivindicativas de esquerdas, mas loze umha grande bandeira espanhola na sua máscara; a sua interlocutora é mais comedida e céptica, duvida que nada se poda solventar, e menos ainda com balbordo; mas toma nota, e nom descarta ‘marchar com as filhas a umha casa que tem na aldeia’. Desligar a televisom e racionar o móbil, ‘que abafam’, e ser um pouco mais autónomas: ‘Dios nom queira, pero ainda vamos ter que volver à vida de antes’, conclui.

‘Pelejar’ e ‘fugir’ som duas respostas universais das pessoas a situaçons de estrês e agressom; dam-se nos animais e nos indivíduos humanos considerados isoladamente, em pequenos colectivos politizados, e em sociedades em toda a sua ampla dimensom. Se umha presença hostil me ameaça e quero ser livre, ou luito ou lisco; também o debate das últimas décadas no seio dos movimentos populares tem escorado – por plantejá-lo de modo simplista, em brancos e negros que na realidade nom existem – entre esses dous extremos. O independentismo viviu há umha década, quando a crise global apenas se alviscava, confrontos apaixonados sobre isto.

O que antes era um debate entre pessoas lidas e politizadas circula agora na rua, nas redes e em todos os nossos contornos: devemos pelejar até a morte, e nom aguardar a soluçom dos nossos problemas até umha verdadeira viragem no poder, ou as perspectivas de vitória som tam remotas que só cabe um progressivo desacomplamento dos valores, as formas de vida e as instituiçons que nos trouxérom até aqui, com o consumismo e as citas eleitorais como principais dinámicas nocivas. Bem sabemos hoje que a política nom se presta a divisons binárias, e quer o ‘ataque’, quer a ‘fuga’ tenhem transformado o mundo na jeira contemporánea. Algumhas transformaçons sociais profundas e aceleradas dos séculos XIX e XX tivérom lugar depois de processos abruptos de insurrecçom violenta, tomada do poder e revoluçom estatal, liderada por organizaçons político-militares hierárquicas. A força moral do comunismo, ainda trinta anos depois da queda do socialismo real, reside precisamente na sua dose de realidade e materializaçom frente a especulaçons no vazio: pois nenhum outro movimento introduziu, num prazo histórico tam curto e em pontos do globo tam distantes, efeitos tam reais; pola contra, outros processos, mais lentos e invisíveis, acontecêrom após somarem milhons e milhons de gestos quotidianos em forma de batalhas de valores, pequenas desobediências e movimentaçons transversais e difusas. O feminismo, que tantas cousas mudou no mundo occidental, pode ser um paradigma disto último, mas também o galeguismo que, apesar de nom se dar achegado nem de longe a um poder estatal, foi quem de produzir ideias, símbolos e dinámicas hegemónicas sem as quais hoje nem existiríamos.

Os tempos que caminhamos verám, com muita provabilidade, combinar ambas as formas de resistência, a ofensiva e defensiva, a fúria e a retirada, a acçom e a inibiçom, o clamor e o silêncio. Porém, mais do que preocupar-nos por quanto há de um ou outro polo, devêssemos preocupar-nos pola qualidade anímica que move ambos. Se a fúria nasce do medo, se é cega e prescinde da análise, facilmente desabará na perseguiçom do bode expiatório e na defesa do ‘dirigente salvador’ dos fascismos, como assim começa a acontecer; e se a retirada é puramente pessimista, individual, hostil à organizaçom e temerosa da adversidade (parte da esquerda leva lustros a cultivar a fraqueza de ánimo na teoria e na prática), será apenas retirada de certos sectores privilegiados e cépticos, que se pode permitir atrincheirar-se em espaços seguros enquanto a sociedade recua e esboroa.

Albergar esperanças ingénuas ou negar toda esperança som duas atitudes com umha nota em comum: evadir a responsabilidade pessoal nos rumos da sociedade; no primeiro caso, depositando a confiança num líder ou elite salvadora que com mao de ferro vai resgatar-nos do infortúnio; no segundo, apoiando-se na ausência de saída para justificar toda demissom dumha causa colectiva. Cabe dizer a ambas posiçons que nom pode existir o amor à liberdade que elas apregoam sem a assunçom da dura carga que lhe vai aparelhada. ‘A liberdade nom é a última palavra’, dixera Victor Frankl, o psiquiatra judeu austríaco que sobrevivera aos campos e reflectira todo o resto da sua vida sobre as possibilidades de dar a volta à adversidade: ‘A liberdade apenas é umha parte da história e a metade da verdade. A liberdade nom é mais do que o aspecto negativo de qualquer fenómeno, cujo aspecto positivo é a responsabilidade.’