Chega carta dum irmao preso, e, entre várias anedotas carcerárias, escreve umhas linhas que nos deixam pensativos. A distáncia obrigada da rua e os ritmos lentos da prisom sempre dam lugar a matinaçons que os ritmos do exterior nom permitem:

Há umha ideia que tenho bastante clara, e que penso que humildemente devemos reconhecer sem problema. Nós (os que temos pagado cárcere, os que temos dado muito do nosso compromisso militante) nom somos ‘os que mais temos feito polo país’. A generosidade, a entrega e o sacrifício militante computam numha coluna, mas os resultados contam-se numha diferente, polo quem mais dá nom é quem mais fai. Muitas pessoas, com a sua militáncia cómoda, tenhem achegado para a construçom nacional bem mais e melhor do que eu, e nom me custa nada – todo o contrário- reconhecer e aplaudir o seu trabalho. O ‘heroísmo’ nom predica nada dos resultados, senom que exalta umha disposiçom subjectiva e umha entrega pessoal louváveis (…) polo que tanto um país como um movimento nom podem querer ter só heroes. Um país que só tenha soldados nom ganhará nengumha guerra, sem labregos que alimentem essas tropas. E como haverá temperamentos naturalmente inclinados cara a aventura e a batalha, enquanto outros estám cara a laboriosidade ou a iniciativa empresarial, um país e um movimento terá que saber aproveitar as virtudes de cada um no lugar que lhe corresponde.’

A combinaçom de virtudes adoita ser um dos reptos mais difíceis das pessoas consideradas individualmente, pois o exercício de umha virtude tende anular a outra. Como acontece no desporto, ser veloz vai em detrimento de ser resistente; o impulso enérgico e decidido tende a neutralizar a acçom cerebral; e a criatividade renhe mal com o cálculo; também nas equipas, o equilíbrio entre achegas diferentes resulta ser umha das conquistas mais raras e valiosas. Por isso, num movimento que fracassa – ou quanto menos, que nom arreiga com suficiente madurez- os desequilíbrios som a norma. Certas potências aparecem agrandadas, enquanto outras dimensons permanecem encolhidas.

Podemos dizer que as tradiçons revolucionárias, e entre elas o independentismo, tenhem-se alimentado de três fontes da excelência humana: a eficácia, a emoçom e a entrega. Por utilizarmos arquetipos -sempre simplificadores, mas ao cabo úteis para a compreensom- estas três dotes encarnam-se em três figuras, que podemos chamar o organizador, o poeta e o soldado. Arquetipos que fôrom masculinos e, portanto parciais e insuficientes; e que, como todas as virtudes, quando sobre-enfatizadas viram em defeitos.

Organizadores

Um dos maiores atractivos do movimento obreiro do passado século foi a sua eficácia extrema. Junto com a noçom de ideia justa e nobre, que estava presente também na tradiçom liberal, no romantismo, ou no socialismo utópico, o proletariado organizado trouxo consigo umha ‘ciência’ da organizaçom, um sentido da planificaçom estratégica e da mediçom de objectivos. O historiador Eric Hobsbawm afirmou que o leninismo supujo umha novidade nas técnicas de engenharia social dumha envergadura tam grande que podemos compará-lo a outros fitos históricos, como a invençom do monacato medieval. A figura do militante é, nesta dimensom das cousas, fundamentalmente, a figura do organizador, aquela pessoa capaz de reverter umha situaçom de desigualdade de forças abismal valendo-se dumha disciplina estrita e dumha obsessom monotemática pola conspiraçom; eis a razom de que todos os corpos policiais – eles também filhos da ciência da organizaçom contemporánea – se preocupem até o desvelo com os colectivos revolucionários, por minúsculos que eles forem, e nom descansem até desarticulá-los; pois a experiência histórica de luita diz que grandes transformaçons sociais começárom a levedar em grupos como estes.

Quando o meio vira em fim, e a organizaçom começa a ser o sentido de todas as cousas, e a chave das nozes para resolver os problemas humanos, esta virtude degenera em defeito. Muitos ex-revolucionários, fascinados com o poder das técnicas organizativas para a execuçom de planos, mas bastante insensíveis ao fim apregoado, reconvertêrom as suas carreiras para a gestom empresarial, e daí as frequentes biografias que ilustram a passagem dum passado rebelde à direcçom capitalista. Outros, socializados desde muito novos nos protocolos culturais das grandes organizaçons hierárquicas, confundírom a política com a fonte de sustento, e fixérom da lealdade à mega-estrutura (independentemente da orientaçom política que esta tomar) o motivo central da sua vida. O organizador transforma-se assim em burocrata. Está ainda por escrever umha história do nosso nacionalismo que tiver em conta o peso desmedido dos aparelhos profissionalizados, e das pessoas mediocres sem mais ofício que as liberaçons de por vida, na tomada de grandes decisons estratégicas, especialmente as mais coniventes com o poder.

Poetas

Nenhuma organizaçom ou causa perdura muito tempo sem um poderoso mito mobilizador, plasmado em imagens e palavras; até a empresa mais prosaica, afincada na sede de lucro, tem um logótipo e tenta recriar umha génese familiar num relato de seu, nunca desprovisto de alusons morais. ‘Poetas’ nom som neste sentido quem escrevem versos, senom quem transmitem sentido. Podem ser músicas, teóricos com o dom da palavra, publicistas, oradoras ou novelistas. Nom conhecemos muitas ou muitos nacionalistas que sentiram fortes emoçons patrióticas lendo ‘O atraso económico’, mas si muitos que abraçárom a causa ao passarem pola experiência do ‘Sempre en Galiza’ (teoricamente pobre, mas emocionalmente forte) ou ‘Com pólvora e magnolias’. A mae simbólica da Galiza-naçom contemporánea é umha poeta, Rosalia de Castro, e se perguntássemos ao galego ou galega do comum nomes que encarnam o sonho da Galiza soberana nom nos diriam nomes de políticos puros, generais nem frios estrategas: citariam-nos a poeta compostelana, ao Daniel Castelao ou Uxio Novoneyra. A mais recente vaga de orgulho nacional propiciárom-na umhas pandeireteiras, no imaginário popular aldrajadas por Espanha num festival televisivo. Mas como o independentismo sempre soubo, o discurso literário é só o detonante primeiro dum processo colectivo, que para prender precisa organizaçom, cálculo racional e disposiçom a perdurar numha dinámica de confronto sostida no tempo. Quando a proporçom relativa de ‘poetas’ é demasiado alta, e a vaguidade dos símbolos ocupa muito mais espaço que a planificaçom racional, um movimento deriva em formas nebulosas e escapistas, que historicamente, e de maneira já quase coloquial, denominamos ‘culturalismo.’

Soldados

Estruturas colectivas bem engraxadas, fortes emoçons mobilizadoras plasmadas em discurso e, finalmente, disposiçom a jogar o jogo até o final. Esse, é nom outro, é o significado da palavra ‘soldado’, que nom tem porque aludir a umha pessoa que maneja armas. Houvo e há soldados pacíficos, como Moncho Valcarce, e até mesmo soldados pacifistas, como Luther King, como houvo e há soldados com fusil, como Moncho Reboiras, e todos eles enviárom a mesma mensagem ao poder e ao povo: a luita que se livra, livra-se de verdade, polo que cumpre emprestar-lhe a devida atençom. O independentismo tivo de ambos os tipos, muitos deles mulheres, e sem medo a cairmos na fachenda, podemos dizer que tivo os melhores, que ocupam por méritos próprios as grandes páginas da nossa afirmaçom nacional. Porém, e como diz a carta do companheiro ao outro lado das grades, muitas vezes a excelência moral tentou dissimular a ineficácia, por vezes derivando mesmo numha certa censura moral dos compromissos mais laxos. Na verdade, esta censura nom é mais do que umha forma de impotência que vela a verdadeira carência; pois em contraposiçom com a abundáncia de soldados sobressalientes, o arredismo tivo umha carência histórica de grandes organizadores, comprometidos com o longo prazo dos processos, e capazes de gerar umha cultura política da eficácia e a confiança mútua.

‘O verdadeiro heroísmo consiste em trocar os anceios em realidades e as ideias em feitos’, deixou escrito Castelao. Um homem que, sendo ‘poeta’, deu o passo a organizador nas fileiras do Partido Galeguista, e canalizou todo o seu grande potencial para comover na forma dumha estrutura política, primeiro na Terra, logo no exílio. Há no heroísmo, portanto, tanto um fundo de moral como um fundo de utilidade, e é essa combinaçom quase milagrosa a que o fai um bem tam escasso e tam prezado.