Numha entrevista no digital Adiante, o pensador Carlos Taibo chamava a atençom sobre a dificuldade de encarar com o ánimo ajeitado um mundo crescentemente sombrio como o que estamos a viver: ‘Como devemos reagir (ante a iminência do colapso) com alegria ou com pesadume? É um debate interessante porque nom tem resposta singela. Se perdemos por completo a alegria, como imos transmitir algo atractivo? E se só estamos na alegria, que credibilidade tenhem estas teses? Nom tenho nenhuma resposta.’ A questom é tam funda que ocupa muitas cabeças, mesmo de geraçons e procedências intelectuais diversas. Na passada semana, a exitosa novelista catalá Eva Baltasar, autora do best-seller Mamut, explicava o fundado pessimismo da sua última obra em termos como estes: ‘acho que imos cara um precipício muito alto, imo-nos esfragar todos, e acho que há diferentes maneiras de ir: com umha venda nos olhos, disfarçados de entruido, e rindo como se nom passasse nada, ou ir muito conscientemente e com certa lucidez, e polo caminho tentar abrir-te, amar bem, acompanhar, tentar que o caminho seja o mais bonito possível.’
Tem-se dito com certo fundamento que, desde que os intelectuais tenhem as suas condiçons de existência garantidas e uns certos estándares de comodidade, é habitual recriarem-se em desacougos de futuro e problemas mui abstrusos, longe das ‘preocupaçons do estômago’ que condicionam a vida dos que estám por baixo na pirámide social. ‘Você pensa no peak oil -venhem a dizer os realistas – mas eu penso se o salário do mês me dá para encher o depósito do carro.’ Porém, trata-se só dumha verdade a médias. Nas classes populares, as consequências das disfunçons do sistema notam-se, já materialmente, por toda a parte: desde os gadeiros do norte de Portugal que tenhem que vender todas as suas reses pola seca persistente, até as vítimas de macro-incêndios, que já conhecemos na Galiza; passando polos imigrantes do leste da Europa obrigados a se proteger de caçatas de quadrilhas fascistas, ou essa porçom da adolescência do mundo abastado que confessa viver ‘na desesperança e na ansiedade’ por mor da crise climática. Por mui atada que estiver umha vida às exigências do salário, à cesta da compra e às preocupaçons mais prosaicas, sempre dedica uns minutinhos do seu tempo a alviscar o futuro, e a procurar certo alampo de esperança no que virá. Certamente, o mundo foi sempre um lugar duro, triste e violento para umha parte importante da populaçom; mas só em jeiras históricas mui determinadas esse presente de dureza foi ainda agravado pola falta de confiança no futuro.
Vivemos num tempo assim. Na cultura de massas, o último filme de sucesso chama-se ‘Don’t look up’, no que um meteorito potencialmente mortal vira metáfora do caos climático. A filósofa Marina Garcés dixo que a nossa é umha época da ‘cultura póstuma’: ‘desde o individual até o planetário, todo se fai e se desfai sob a sombra de um ‘até quando’?’ Perguntamo-nos que poder temos para manter trabalhos estáveis, relaçons estáveis, ubicaçons geográficas estáveis, quando todas essas mega-estruturas que nos acolhiam – da democracia liberal até os próprios ecossistemas diversos, passando polas relaçons laborais- semelham estar quase caducadas. E deste modo, ainda que na superfície todo aparente firme e estável, e os pilares do Regime continuem inalterados, correntes mui de fundo estám a alterar os estados de consciência. De partida, a extrema direita espanhola está a capitalizar todo o que de covardia, ignoráncia e sede de violência levamos as pessoas no nosso interior, o que sempre foi umha especialidade dos fascismos; e o movimento popular nom pode rivalizar com esta explossom anímica apoiando-se na melancolia, a erudiçom intelectual e o laio. Devesse ser, nom violento nem histérico, mas firme, férreo e seguro, sem medo ao que vinher; oferecer nom apenas razom, mas também emoçom, redes de pertença e lealdade de grupo; e combinar o idealismo com o pragmatismo. Viver por umha causa eleva e dignifica, mas além disso, a verdade é que só poderemos subsistir psíquica e socialmente num mundo inóspito, de crescente escassez e tensom, com ajuda mútua, a que permitiu o avanço da nossa espécie. Ajuda mútua significa trabalhar em equipa e produzir projectos, mas também ver-nos fisicamente e sem ecrans, escuitar-nos, socorrer-nos, aconselhar-nos, debater, pelejar e reconciliar-nos.
Para que a alegria que vindicava Carlos Taibo for possível -em delicado equilíbrio com a pesadume realista- temos que oferecer esperança palpável. Vivemos num recanto da Europa que ainda conserva umha rede de ocupaçom territorial racional e relativamente sustentável, sem enormes monstros demográficos, e a cidade nunca tem roto as pontes com a aldeia, com a que existe ainda um vencelho afectivo e material; há porçons da nossa terra a salvar da depredaçom, e velhas áreas deterioradas susceptíveis de restauraçom, aquelas que os especialistas consideram a melhor fortaleza contra o caos climático; os velhos saberes tecnológicos e convivenciais, ao igual que a cultura da contençom e do esforço, nom desaparecêrom de vez, e pervivem nos conselhos das nossas avôs; existe umha longa tradiçom de associativismo nacional com muitas expressons sectoriais e, particularmente, umha enorme experiência de décadas de luita arredista baseada em redes de irmandade, trabalho na adversidade e com mínimos recursos, ánimo disposto ante um inimigo poderoso.
Sabemo-lo, o nosso arsenal nom é grande cousa: mas é singelo e efectivo, realista e palpável, basea-se no que conhecemos a fundo, no que nos tem servido, individual e colectivamente, para sortear crises mui duras que ameaçárom a nossa existência nacional, e também a existência do nosso movimento. O que vem aí é provavelmente pior que todo o que conhecem as galegas e galegos de mediana idade para baixo. Tem muito de ‘apocalipse’, que no seu sentido etimológico fala de desfeita, mas também de revelaçom: de grandes verdades descifradas sobre o ser humano, sobre o nosso povo, e também sobre cada um de nós mesmos como pessoas singulares.
Estamos em fevereiro e já nom chove, as temperaturas diurnas som primaverais, nom há neve nos cúmios e as barragens estám-se baleirando; as cegonhas aninham permanentemente nas beiras das estradas e as previsons agoiram seca persistente; claro que temos gasolina e reservas energéticas, a comida barata está ao nosso dispor no supermercado, e se a economia doméstica o permite, há reservas de gas que aquecem as nossas casas à noite sem dificuldade; mas nom está demais recordar saberes de onte mesmo sobre a estaçom, no sentido real e metafórico: na cultura tradicional, o inverno obrigava ao recolhimento, ao convívio em espaços pequenos (muitas vezes conflitivo) e a umha certa introspecçom, ao encontro com nós mesmos. Mas também e sobretodo a cercania do inverno obrigava a planificar, aprovisionar-se do essencial, e mentalizar-se para as noites longas e os dias escuros. Nom se tratava de pessimismo nem de amargura, senom de racionalidade elemental, que é a única base possível da esperança.