No dicionário Estraviz, a palavra ‘negligência’ aparece definida primeiramente como ‘desleixo, incúria, descuido’; os seus sentidos associados, que aparecem nas seguintes acepçons, ponhem o acento na atitude vital que está por trás da acçom negligente: ‘preguiça, indolência’ e mesmo ‘desprezo, desatençom, menosprezo’. Daí deduzimos que por trás da pessoa negligente há umha mestura de nugalha e apatia que, nos casos mais extremos, pode lindar com o desdém por algo precioso, que devesse ser objecto de atençom.
Como vemos, no termo há todo um pequeno sistema de associaçons anímicas que remitem a um problema central: nom tratar com o respeito que merece umha questom, desconsiderar o valor real que esta tem. Na versom latina da Bíblia, a negligência aparece com o sentido de ‘culpa’, e os códigos penais adoitam incluí-la como umha infracçom leve cercana à imprudência, mas de menor gravidade. Existiria umha negligência médica, a mais conhecida, que pode derivar em danos irreparáveis para o paciente; umha negligência familiar, que consiste em desatender as crianças nas suas necessidades emocionais e educativas; e também umha negligência social, baseada em desatender os deveres com o colectivo. Nas sociedades de individualismo extremo como a nossa, esta chega por vezes a apregoar-se orgulhosamente e em voz alta, derivando em corruptelas pequenas e grandes, e sintetizada numha das sentenças mais ruins da sabedoria popular: ‘tu mira polo teu.’
No idioma galego há umha série de termos mui expressivos que se achegam a ‘negligência’ ou ‘desleixo’, e que em todo caso descrevem graficamente os resultados do que se fai com tal disposiçom de ánimo: trapalhada, chafalhada, chambonada, maravalhada, marfalhada, trangalhada, zarampalhada, som algumhas das referências a um trabalho feito sem tino. Nas culturas tradicionais labregas e artesás, como também na classe obreira industrial, existiu sempre umha devoçom pola tarefa bem executada, pola beleza e pola habelência na realizaçom, e é mui possível que este amplo leque semántico proceda dum perfeccionismo mui antigo no trabalho manual.
A crítica dos sectores conscienciados da nossa sociedade dirige-se fundamentalmente contra quem imponhem pola força os seus interesses privados, e isto é perfeitamente lógico, pois encaixa com a demanda básica da esquerda; também se orienta, muitas vezes, contra a passividade e a indiferença popular, argumentando que se os poderosos mandam tam impunemente, é porque a inibiçom da maioria lho permite. Curiosamente, fica fora da reflexom e da esculca a atitude negligente de tantas pessoas politicamente comprometidas. Se existe umha negligência médica, umha negligência docente, ou umha negligência familiar, podemos dizer que existe umha negligência galeguista, que leva a participar politica e socialmente mui por baixo dos estándares que exige umha tarefa como a nossa.
Na nossa juventude militante, era habitual a utilizaçom humorística da palavra ‘gualdrapas’ para qualificar o activista que chegava sempre tarde, incumpria os compromissos, nom pagava quotas ou plasmava malamente os acordos; a palavra, um castelanismo que remite a ‘pessoa vestida com farrapos’ e dá ideia de projecto mal traçado e sem entidade, sintetizava umha das nossas grandes preocupaçons: a negligência -junto a outros dous grandes lastros da nossa cultura política, o cissionismo e o medo- desacougava e tirava horas de sono, mas raramente era submetida a análise. Numha mostra evidente de preocupaçons distorcidas, nos documentos plasmavam-se enormes desafios estratégicos, enquanto ficavam desatendidos assuntos práticos de importáncia transcendental.
O que dá projecçom a umha luita é que esta tenha razons poderosas e evidentes, como a nossa tem, e que tais razons se acompanhem de acçons cuidadosas, bem desenvolvidas; mesmo guiadas por umha espécie de respeito e veneraçom por umha empresa que nos sobarda, e na que temos o privilégio de participar. Se umha razom inapelável se plasma em feitos pobres e mal apresentados, o seu trajecto é curto, e as emoçons que acorda som a desconfiança e o receio.
Obviamente, a extensom da negligência tem motivos: vivemos numha sociedade onde a noçom da responsabilidade individual é fraca, e nada mais difícil de superar que aquelas pejas pessoais que o grupo finge ignorar, ou mesmo consente e aplaude; um longo percurso de fatalismo galego, ao que o nacionalismo nom é alheio, parece marmuriar-nos ao ouvido que ainda que luitemos, nada se pode conseguir, polo que abonda com cobrir o expediente.
Como todo problema colectivo, este vai ser resolto só colectivamente: o nosso idioma -portanto a nossa tradiçom- tem antónimos para ‘negligente’, e portanto contra-exemplos da trapalhada: estes som ‘espilido’ e ‘vigilante’, ou em versom culta, ‘diligente’. Que é a diligência? No dicionário Priberam define-se como ‘atençom, cuidado, zelo, economia, poupança’. Leonardo da Vinci sintetizou-no numha das suas divisas vitais, ‘ostinato rigore’ (rigor obstinado), e escreveu-baixo o debuxo dum arado inscrito num óvalo. Nom se trata dum canto à força bruta nem à teima neurótica polo trabalho e a repetiçom compulsiva, senom umha combinaçom mui subtil de responsabilidade, capacidade resolutiva, agilidade, talento e planificaçom. A terra – no seu sentido físico e simbólico- pede-nos algo assim, tam elemental e à vez tam grande.