Antes de se converter em dirigente guerrilheiro e desatar umha insurrecçom que colocou o Peru perto dumha guerra civil, Abimael Guzmán era um discreto professor de filosofia na universidade de San Cristóbal de Huamanga, em Ayacucho, doutorado com umha tese sobre Kant. Segundo lembra, arrepiado, o também historiador Josep Fontana (La historia después del fin de la historia), ofereceu ao seu alunado um curioso conselho de leitura nos anos prévios ao seu passo à clandestinidade: ante qualquer desafio que o estudante enfrentar, a chave estaria sempre nos clássicos do comunismo, pois a leitura de Marx, Engels, Lenine, Mao ou Estaline poderia resolver qualquer tipo de problema que se nos cruzasse nos caminhos da vida.
Desconhecemos a veracidade da anedota, mas em qualquer caso a afirmaçom define mui bem umha cultura política com a que nos temos topado, e também um modelo de militante com o que temos convivido. A verdade política, social, e mesmo íntima, pode pescudar-se num pequeno feixe de obras e de autores; e qualquer procura de orientaçom em referências exteriores merece rechaço, quando nom burla.
Desde que o socialismo real se caracterizou, entre outras cousas, por fomentar leituras recomendáveis e proscrever a livre discussom, estaríamos tentados de pensar que a ideia revolucionária viria associada com um tipo de encolhimento intelectual, e que portanto a dedicaçom em corpo e alma a um ideário conlevaria um pensamento tolheito, desconfiado e receloso. Felizmente, e subsistindo por baixo dumha longa tradiçom burocrática em defesa da idiotez, florescêrom atitudes de amor ao pensamento e a arte, no mesmo cerne das experiências de luita mais árduas.
Nelson Mandela nom precisa apresentaçom: abandonava a cadeia precisamente num mês de fevereiro de há quatro décadas, após 27 anos de reclusom por defender e dirigir a luita armada contra o apartheid. Numha dessas condenas inacabáveis que erode, deforma a personalidade e pode levar ao colapso mental, ele próprio reconheceu, como nom podia ser de outro modo, momentos de fraqueza e tentaçons de rendiçom. Quem o salvou, segundo as suas palavras, nom fôrom tomos de teoria política, senom um breve poema que recitou incansavelmente, até aprendê-lo de cor: titula-se ‘Invictus’, e redigiu-no o poeta vitoriano inglês William Ernest Henley. Henley foi um homem desgraçado que perdeu umha perna aos dezasseis anos polos efeitos combinados da tuberculose e a artrite, e que mais tarde assistiu ao falecimento da sua filha em plena infáncia; a doença juvenil impedira-lhe rematar os estudos, e a sua estáncia de anos em hospitais fijo com que o seu principal poemário se intitulasse precisamente assim, ‘In Hospital’. Nos quartos da instituiçom conviveu com a doença e a miséria que assolavam a classe obreira inglesa, além de aturar os seus próprios sofrimentos; mas com isso e contodo, um dos seus contemporáneos recorda Henley como a figura ‘dum moderno deus Pam’, robusto, burlom, humorista, dotado de ‘inimaginável fogo e vitalidade’, e o singular do seu carácter inspirou R.L. Stevenson para criar o personagem de Long John Silver n’A ilha do tesouro. Precisamente os versos de ‘Invictus’ reflectem umha disposiçom de ánimo extraordinária, a do homem envolto numha noite inacabável, desfeito polas ‘garras do destino’, que porém agradece ter umha alma insubjugável: ‘eu som senhor do meu destino /capitám da minha alma’, conclui o poema que animava Mandela nos seus momentos mais sombrios.
Henley nom era um esquerdista, nem tam sequer um liberal, senom um imperialista furibundo que se escandalizou -entre outras muitas cousas- com a possibilidade de concessom da autonomia à Irlanda, e de feito o seu poema motivacional, que virou hino popular, inspira também grupos da extrema direita ao longo do mundo. Mas este tipo de fascinaçom pola boa literatura e polas reflexons universais, muito além dos lindes ideológicos, nom é privativo de Mandela. Entre as leituras de cabeceira de Ernesto Guevara e Hilda Gadea estava o poema ‘If’, de Ruyard Kipling, que tantos paralelismos tem com o autor de ‘Invictus’: británico e imperialista, escreveu umha outra jóia do pensamento estoico contemporáneo, tam acaída para aquelas pessoas comprometidas com tarefas enormes: ‘se podes amorear todos os teus ganhos / e arriscá-los a umha só jogada; /e perder, e começar de novo desde o início / e nunca dizer umha palavra sobre a perda / (…) serás um Homem, meu filho!’, diz Kipling nos seus versos, que também inspirárom cançons e fôrom editados em centos de formatos.
A querência por este autor nom era casual, e fazia parte dum leque mui amplo de gostos culturais e artísticos. Um dos informes da CIA sobre Guevara, redigido em 1958, chamava a atençom, em certo tom supremacista, sobre a voracidade leitora do Che e a sua crença no poder da educaçom literária: ‘é bastante intelectual para ser ‘latino’. Leu bastante da literatura ‘latina’ e apreça os clássicos da literatura de outros países (…) Fijo que se trouxessem livros à Serra Maestra e lê-lhos aos soldados (…) Nunca foi visto lendo-lhe a Karl Marx nem a outros autores comunistas. Pola contra, os seus esforços por educar os soldados restringem-se à literatura (…) lendo-lhes obras de Charles Dickens e Alphonse Daudet, entre outros.’ (Rather, Steven Smith: How the CIA Killed Che. The Murder of a Revolutionary)
Segundo os seus biógrafos, aos doze anos Guevara tinha a cultura leitora dum moço de classe média de dezoito; os livros de Salgari, Verne e London conformárom na sua infáncia o amor pola nobreza, a viagem e a aventura; em carta à sua namorada após fracassar a tentativa guerrilheira do Congo, confessa ‘afixem-me tanto a ler e estudar que é umha segunda natureza, e fai mais grande o contraste com o meu aventureirismo’. Apesar dumha firmeza de ferro, nom lhe incomodava o paradoxo, e daí que se sentisse atrapado pola fondura filosófica do Quixote e a figura trágica, ridícula e heroica do fidalgo castelhano. Pouco antes da sua morte em Bolívia, despide-se dos seus pais aludindo precisamente à personagem de Cervantes: ‘de novo sinto baixo os meus calcanhos o costelar de Rocinante, e volvo ao caminho com a minha adarga ao braço (…) Agora, umha vontade que pulim com delectaçom de artista sosterá umhas pernas fláccidas e uns pulmons cansos’. (Pacarina del Sur: ‘Ernesto Guevara: una poética de la lectura’).
Numha sociedade, por riba de todo, feble e desorientada, todo isto ecoa mui ao longe, como se nos falassem num idioma estranho. A esquerda é ciente do repto, mas ante a epidemia de desánimo e padecimento mental, continua desconfiando da introspecçom e o autocultivo, que entende como concessons ao individualismo. Umha velha legenda defende hoje, com mais ênfase que nunca, que no canto de irmos ao psicólogo, nos filiemos a um sindicato. Obviamente que o sindicato ajuda a superar o malestar, como ajudam o partido, a organizaçom, o centro social, ou qualquer estrutura colectiva que assente na irmandade e num horizonte colectivo. Mas sabemos que todo isto nom abonda, e todas e todos temos, no nosso entorno mais próximo, um familiar, umha amizade, um irmao de luita, que apesar de estar organizada, precisa assistência psicológica. Por isso, quando as respostas colectivas às dores pessoais nom tenhem a força suficiente, como acontece muitas vezes, nom renunciemos à cura íntima nem à construçom de personalidades vigorosas. Fará-nos bem como indivíduos e fará muito bem aos nossos movimentos populares. Leamos e estudemos sem temor e sem cancelas, desfrutemos e cultivemo-nos com o tesouro imenso que está nos ensaios, nos versos ou nos aforismos das mentes mais brilhantes. Porque ao longo da história, nom existiu inspiraçom mais forte que a das melhores plumas e a dos melhores exemplos.