Se hoje tivéssemos que dar nomes representativos de pessoas comprometidas na sua profisom por transformar o mundo, viriam-nos à mente gentes que erguêrom a sua trincheira em hospitais, factorias, centros de ensino, leiras ou computadores; mas a nossa memória teria que fazer muito esforço para citar jornalistas profissionais, dependentes de empresas mediáticas, que tomam a pluma como ferramenta de combate e estám dispostos a jogar-se um posto de trabalho em defesa de ideias nom submetidas aos grandes conglomerados empresariais.
Ainda que semelhe umha realidade remota, na nossa Terra existiu esse tipo de jornalista, filho do associativismo emigrante e agrário do primeiro século XX, e fortalecido na curta experiência republicana. Um dos seus melhores representantes foi Roberto Blanco Torres, um cuntiense de palavra afiada, polemista consumado, que chegou a ser umha das figuras públicas da Galiza dos anos 20 e 30, antes de que o fascismo decidisse varrê-lo deste mundo, e da nossa memória, assassinando-o numha cuneta no sul de Ourense. Envolvido num permanente nomadismo por causa da precariedade laboral e da sua insubordinaçom política a distintos patrons do jornalismo, impulsionou e dirigiu alguns dos mais importantes cabeçalhos daquela Galiza em efervescência; acompanhou com a cabeça e o coraçom os movimentos agrário e nacionalista, e mantivo-se toda a vida firme ao seu ideário essencial: o republicanismo, que concebia como proposta de regeneraçom de pessoas e valores.
Há 23 anos, Blanco Torres foi homenageado no Dia das Letras, o que serviu para dar certa dimensom popular à sua figura; um ano antes, vinha a lume Hipertensión cívica. Aproximación á vida e á obra de Roberto Blanco Torres (Juan Blanco Valdés), completo repasso biográfico que escolma aliás a sua obra. Em 1999, Marcos Seixo edita Blanco Torres. Xornalismo irmandiño, umha panorámica da sua produçom na imprensa.
Cultura e emigraçom
Na semana passada resgatávamos neste portal o mestre galeguista Manuel Garcia Barros, que pode ser considerado a figura prototípica do docente que elevou o amor polo própio na Galiza rural; pois precisamente a poucos kilómetros da Estrada de Ken Keirades, no vizinho Cúntis, nascia quinze anos depois Roberto Blanco Torres, protótipo à sua vez do jornalista conscienciador dos tempos republicanos. Com apenas 15 anos, em 1906, orfo de pai e mae, marcha a Cuba, o grande foco da galeguidade consciente na altura. Procedia dumha família abastada de ideias republicanas e estava familiarizado com a cultura, mas é o contacto americano com Antom Vilar Ponte e Ramom Cabanilhas o que o fai descobrir a questom galega. Conhece Basilio Álvarez e fica prendado da personalidade vigorosa do abade de Beiro, que em certo modo lhe é afim, pois ele também se opom às formas moles e ao desejo de agradar a todo custe.
Com o pseudónimo ‘Fray Roblanto’, ganha fama em cabeçalhos da emigraçom como Suevia, ou Galicia. Partilhava com muitos dos seus contemporáneos o talento na escrita; sobressaía, porém, por traços de carácter pouco frequentes. Nom temia a controvérsia dura e nom gostava do servilismo, tampouco do que se utiliza como forma de promoçom em meios jornalísticos. Um dos seus companheiros no Centro Galego da Havana recordava tempo depois que ‘se tivo defeitos, nom fôrom desses que abrem caminho ao bem estar ou ao posto com honores. Ele nom aprendeu bem a ser canalha. (…) Passava muitas noites em claro, lendo e escrevendo, para comer mal e vestir pior, quando outros que entendem melhor a agulha de marear (…) campam como querem e conquistam estima.’
Volta à Terra
Em 1918 temo-lo já de volta na Galiza, como tantos, baixo a influência intelectual de Vicente Risco, mas identificado com as ideias de participaçom eleitoral e pactismo da Irmandade corunhesa. É um dos sessenta persoeiros galegos que se reune na I Assembleia Nacionalista na cidade das muralhas, em plena pandemia de gripe. Foi toda a sua vida um galeguista de coraçom, se bem nom assumiu com todas as consequências o princípio de auto-organizaçom. A partir de 1931, gravitará sempre organizativamente no republicanismo de obediência estatal (nom no nacionalismo). As suas proclamas independentistas -que existem- som porém circunstanciais e mais bem tacticistas: ‘autonomia ou nada (…) ou bem se nom se quer dar o pouco, exigir o muito, é dizer, a independência’, escreve n’A Nosa Terra em 1931; como muitos correligionários, entende o arredismo como umha forma de pressom verbal na procura de mais atençom espanhola.
Dirigiu os cabeçalhos mais salientáveis daquela Galiza que saía da Restauraçom com um nacionalismo reorganizado, e com umha rede de quadros políticos e intelectuais de grande altura, forjados no agrarismo e na imprensa local. Topamo-lo com postos de responsabilidade em La Zarpa, Galicia, El Pueblo Gallego ou El País de Ponte Vedra, mudando de localidade, escrevendo sobretodo de política, mas também de actualidade, filosofia ou literatura. Moveu-se numha ampla área do sul do país, em funçom das exigências profissionais. Ao contrário que a maioria dos seus companheiros de causa, Torres era um namorado da urbe, e confiava numha grande metrópole como elemento reitor da Galiza do futuro. Se Vigo chega a incorporar o ‘vigor espiritual’ ao vigor mercantil que já tinha, afirma Blanco Torres, ‘fará-se a futura grande urbe atlántica.’
A sua mobilidade geográfica tem também a ver com as muitas desavinças que provoca a sua personalidade insubmissa. Já em Cuba, nom duvidara em denunciar as corruptelas no Centro Galego, e de volta na Galiza, aponta imisericorde aos cabeçalhos que se fam ricos com o negócio da emigraçom; como hoje a imprensa servil subsiste subvencionada louvando extractivismo energético, na altura engordava as suas arcas dando espaço às grandes consignatárias. Em carta a Blanco Amor, Torres escreve: ‘no meu livro De esto y lo otro, poderá ver, ao pé dum capítulo sobre a emigraçom, um acréscimo em que se descobre a atitude moral de quem por umhas pesetas, mesmo sem precisá-las, som cúmplices dos negreiros que em combinaçom com as casas consignatárias recrutam carne humana para embarcar a Cuba. Portela Valladares, a quem rejeitava profundamente por oportunista, foi um dos seus cavalos de batalha, e a tensom verbal chegará a tal ponto que Torres será condenado por injúrias ao magnate galego, e condenado a um pequeno exílio em Ourense. Também em 1934, no ronsel dos feitos revolucionários, o governo direitista obriga-o a pagar umha curta condena de prisom polos seus artigos.
Moral de ferro
A moral de Blanco Torres era elevada na dupla acepçom do termo: a produçom e nível de actividade da sua curta existência demonstra e capacidade de trabalho; e a firmeza com a que se finca nos seus princípios dá ideia dumhas conviçons muito profundas; nom foi, nem de longe, um radical em política, mas foi, como muitos republicanos, um radical na moral. ‘No nosso conceito, o principal problema da Galiza é um problema de moralidade -escreveu nas páginas de Galicia- (…) Por sobre o sentido da moralidade -que é o cimento das grandes e fecundas ideias e o faro luminoso das mais singelas belezas- ponhemos os galegos, nas nossas relaçons e nos nossos feitos, a cativa condiçom da necessidade, e miramos para o estômago como único objectivo, qual único ideal. Todo no retábulo da nossa mora regional é falso, hipócrita, pequeno e probe. As conviçons nom determinam as condutas das pessoas.’
Em formato jornalístico, Torres está a plasmar o pulo que animará também o seu famoso poema de Orballo da media noite, ‘Loitador non te deteñas’, onde chama a nom definhar, a olhar o céu, com a consciência de que a ambos lados do caminho topará os ‘pinchos e rebos da estultícia e da inveja’, os ‘ladridos dos cans famentos.’
Num desenvolvimento menos traumático dos feitos, Blanco Torres possivelmente combinaria o seu magistério jornalístico com altas responsabilidades políticas, e de feito o governo republicano concedeu-lhe o posto de governador civil de Palencia e, posteriormente, a chéfia do gabinete de imprensa de governaçom. Nada disto puido consumar-se porque os ‘pinchos e rebos’ que ele antecipara no seu poema, em futuro hipotético, eram na realidade ánsias homicidas; e os ‘cans famentos’ que aparecem nos seus versos eram umha esquadra de falangistas que, obviamente enviados polas autoridades judiciais e militares, o fôrom sequestrar à prisom-mosteiro de Cela Nova, para tiroteá-lo num lugar impreciso entre Lóvios e Entrimo, e deixar o seu cadáver semi-espido, o 3 de outubro de 1936. Espalhava-se o pánico e soterrava-se um homem, umha trajectória vital impecável, e umha concepçom militante do jornalismo que o nosso país tardaria décadas em redescobrir.