No intre de te sentires anoxado, nom esqueças que é indigno do homem deixar-se arrastar pola cólera, e que a paciência e a doçura som as qualidades a um tempo mais humanas e mais fortes. Indicam vigor, coragem e energia, e nom se pode dizer o mesmo da cólera e o despeito. Quanto mais se achega a paciência à impassibilidade, maior é a sua força. Se a tristura é um signo de fraqueza, a cólera é outro.’

Marco Aurélio, Meditaçons.

Há umha certa linha da tradiçom revolucionária que teorizou sobre a hostilidade, e chamou a incorporá-la como combustível para as luitas. ‘O ódio é um factor de luita; o ódio intransigente ao inimigo, que impulsa além das limitaçons naturais do ser humano’, dixera Ernesto Guevara na sua conhecida mensagem à Tricontinental. ‘Organizemos o ódio’, proclamou Malcom X, para converter em movimento popular todo esse sentimento de xenreira difusa que acompanha o feito de ser oprimido; e na Argélia anticolonial, o psiquiatra Frantz Fannon defendeu que a violência defensiva era melhor terápia para os párias desprenderem-se de paralisias e complexos. Estas posiçons nascêrom na década de 60 e 70 com as armas na mao, mas ainda tivérom um longo percurso verbal em forma de cultura política nas décadas seguintes que se plasmou em simbologia, música e consignas.

Por outro dos paradoxos da história, no momento em que os direitos recuam, e quando os níveis de justiça social e a soberania das naçons encolhem mais e mais, a bandeira da raiva e do ódio nom flameja nas fileiras revolucionárias, senom nas elites e nos seus círculos de apoio. Enquanto a esquerda, mormente afincada na classe média, nos figurins virtuais e nos mundos académicos, vindica o sorriso e a vulnerabilidade, os novos extremismos de direita inflamam as redes e os meios com proclamas de guerra e valentia. Hoje, no Estado espanhol, as redes sociais de conhecidos criadores de opiniom cercanos a Vox celebram o patriotismo policial com fotos de antidistúrbios esbatendo votantes cataláns e a legenda ‘proibido render-se’; na França, venhem de descobrir-se chamados informais a um golpe de Estado ‘contra a invasom islámica’ por parte dum sector do exército. Nos Estados Unidos, umha das figuras de massas da nova vaga reaccionária é Jocko Willinck, um ex-navy SEAL reconvertido em motivador empresarial, que pretende aplicar as estratégias bélicas ao mundo profissional e dos negócios: ‘Despreza a fraqueza; nom importa que estejas num gabinete de informática, que sejas um transportista ou um obreiro: desde que te ergues, pensa que estás implicado na missom’, enardece a audiência nos seus exitosos podcasts, onde compara as técnicas de avanço empresarial com as fórmulas que permitírom aos norteamericanos tomar o foco insurgente de Ramadi.

A diferença de há três décadas, e graças à neurobiologia e à difusom científica em formato de massas, o público pode conhecer com mais precisom do que falamos realmente quando falamos de ódio; sabemos por exemplo, desde o contributo de há três lustros do Laboratório de Neurobiologia do University College de Londres, que os circuitos que o activam estám mui perto dos que ponhem em andamento os circuitos do amor, e daí o enorme potencial de ambos para mobilizar a acçom, tendo a capacidade de amortecer a dor; descobremos aliás que existe um ódio frio, silencioso, que nom neutraliza -a diferença da paixom romántica- as áreas cerebrais que regem o juízo, e isso explica os elaborados planos, muitas vezes calmos e estratégicos, que o maquiavelismo trama para maltratar e eliminar. Mas também se nos revela – e isto é especialmente importante- que existe um outro ódio mui cercano ao medo, impulsivo, e propenso à irracionalidade. No pior da história da Europa acha-se este sentimento, que foi chave na explicaçom do ascenso dos fascismos. A Erich Fromm, um dos intelectuais que consagrou a sua obra a entender que acontecera naqueles anos sombrios, resultou-lhe chamativo que umha populaçom descrida, alheia a lealdades fortes e desestruturada, pudesse ser ao mesmo tempo, paradoxalmente, crédula e infantil na sua adesom a credos absurdos. Mas o certo, escreveu, é que ‘o homem impotente ante umha massa caótica de dados espera com patética paciência que o especialista ache o que se deve fazer; este tipo de influência produz um duplo resultado: por umha parte, cepticismo e cinismo frente a todo o que se diga ou escreva, e por outra, aceitaçom infantil do que se afirme com autoridade. Esta combinaçom de cinismo e ingenuidade é mui típica do indivíduo moderno.’ (Fromm, A vida autêntica)

O grande rendimento eleitoral, mediático e político do ódio, que é o resultado natural do medo, poderia levar-nos a promocioná-lo com entusiasmo. E porém, antes de que as sofisticadas ferramentas da neurobiologia escaneassem os nossos cerebros e nos advertissem dos seus efeitos tóxicos, todas as tradiçons filosóficas e espirituais advertírom contra o ódio e a sua derivaçom em enfado e incontinência do carácter. Também a sabedoria popular nos dá pistas importantes: ‘cegado pola ira’, diz a expressom, aludindo à nulidade cognitiva que nos domina ao odiarmos em excesso; ‘estava fora de si’ é a frase que explica muitos comportamentos extremos e fora do previsto; ‘a verdade é que nom era eu’, conclui a típica sentença exculpatória com a que um justifica os seus acessos irracionais.

Certamente que de nada vale disfraçarmo-nos de anjos. Somos seres humanos, e ao cabo um feixe de contradiçons na procura difícil de equilíbrio. Sentimos ódio, como sentimos inveja, ciumes, nervosismo ou medo. Mas ao contrário que certa esquerda e o seu canto à fraqueza, nom pensamos que devamos abraçar as nossas eivas, senom poli-las e mantê-las a raia com cuidado e tesom. As energias morais semelham decair nestes tempos, e para reverter a situaçom imos precisar, por impossível que pareça concebê-lo baixo nuvens tam negras, alegria: ‘o que aumenta a potência de obrar’, escreveu Spinoza, captando mui lucidamente o vencelho entre acçom e ledice. Com significado concomitante, topamos a palavra ‘amor’, que certamente foi devaluada polo seu uso comercial. Para evitarmos associaçons molestas, podemos recorrer ao termo grego ‘agapé’, que se referia à querência universal que ultrapassa a parelha, a amizade ou a vizinhança, e que também servia para denominar um convívio comunitário arredor da mesa do jantar. Paulo de Tarso, que passou do ódio da inquisiçom à esperança da predicaçom, expressou-no naquelas palavras que alimentárom até hoje o pensamento messiánico: ‘o agapé é paciente, é serviçal; nom é invejoso, nom fai alarde, nom fachendea, nom procede com baixeza, nom procura o seu próprio interesse, nom tem em conta o mal recebido, nom se alegra da injustiça, senom que se regocija com a verdade. Todo o desculpa, todo o cre, todo o espera, todo o atura. Nom passará endejamais.’