As biografias militantes que adoitam chamar-nos a atençom associam-se a vidas azarosas e inçadas de perigos, compromissos de primeira linha, exílios ou prisons, cissons e purgas; se aludem a pessoas com perfil intelectual, procuramos nelas polémicas muito intensas, ou grandes revelaçons teóricas. E porém, se quigéssemos reescrever a história da nossa afirmaçom nacional apoiando-nos apenas neste tipo de experiências, umha parte importante do percurso contemporáneo da naçom galega ficaria oculta. Os heroísmos chamativos som possíveis por existirem milheiros de heroísmos modestos e invisíveis; e o pensamento alcança altos voos graças às redes de pequenos divulgadores silenciosos das nossas verdades elementais e primária: língua, terra, fraternidade, magistério.
Numha visom mais ampla e agradecida dos nossos últimos dous séculos terám o seu lugar pessoas como o estradense Manuel Garcia Barros, ‘Ken Keirades’. Neste vindouro 12 de abril cumprem-se cincuenta anos do seu passamento. Há justo umha década, a associaçom cultural Vagalume comemorou o seu cabodano com várias iniciativas de vindicaçom e espalhamento. O labor deste colectivo local fai com que seja possível aceder a parte da sua vida e correspondência online e os investigadores Garrido Couceiro e Loureiro Rodríguez tenhem publicado senlhas biografias. O próprio Garcia Barros, conhecido também como Ken Keirades polo seu pseudónimo mais popular, narrou em ‘Dos meus recordos’ alguns dos capítulos da sua vida. Hoje, levam o nome Garcia Barros um centro de ensino médio, umha rua e um certame literário estradenses, com o que em certa medida está presente na nossa memória colectiva; mas julgado a traços grossos como ‘escritor costumista’, pouco se sabe das peripécias que atravessou durante praticamente toda a ditadura para manter o facho da causa galega; praticamente só, na sua terra natal, rodeado dos verdugos que eliminaram vários dos seus companheiros, e submetido a vigiláncia estreita. Como o seu irmao Fernández Oxea, Ben-Cho-Sey, com o que se cartea no franquismo, foi um patriota leal de por vida, amigo do segundo plano, devotado a matinar formas de manter as redes informais do galeguismo nas condiçons sórdidas da posguerra.
Os inícios
De família labrega relativamente acomodada, nasceu na paróquia estradense de Berres na década de 70 do século XIX, precisamente quando em Ourense, Lamas Carvajal dava lume ao Tio Marcos d’a Portela, o jornal monolíngue que antecipa as ideias do agrarismo. Cria-se como um apaixonado da letra escrita e, como tantos galegos das classes populares da altura, forma-se intelectualmente roubando horas ao sono e compaginando cultivo intelectual com as labouras do agro. A assistência à escola mais próxima à sua paróquia, a de Moreira, fai-se em caminhadas de kilómetros; e o seu título de pedagogo nos tempos de mocidade conseguirá-o na Escola Normal de Santiago, à que acode também caminhando. Tais esforços, mesmo físicos, a prol da formaçom revelam umha fe no autocultivo absolutamente militante, e que hoje nos custa conceber desde os nossos tempos cómodos.
O galeguismo carecia nos finais do século XIX de estruturas organizativas sólidas, mas de um modo ou outro, as suas ideias espalhavam-se através do livro ou de redes de relaçom. Garrido Couceiro lembra a importáncia que tivo na primeira decantaçom galega de Ken Keirades o seu trato com Marcial e Avelina Valladares, os senhores de Vilancosta que cultivavam o nosso idioma, e que dam ideia dumhas classes intermediárias ainda ligadas à terra e à língua. Nos seus anos juvenis conheceu também Amador Montenegro, que dirigira em Lugo o jornal monolíngüe ‘A Monteira’, e durante toda a sua vida reconheceu a dívida que mantinha com o ‘Catecismo do Labrego’, um livro conscienciador e moralizador que inaugura um estilo de difusom massiva ao que ele será fiel sempre. Ainda na década de 50, quando o galeguismo cultural enceta o caminho da publicaçom da alta cultura, Barros enfatiza na sua correspondência que ‘cumpre fazer livros, e até folhetos, desses que andem de mao em mao, correndo decote, como andava o Catecismo da doutrina labrega em tempos que eu bem recordo.’
Imprensa e agrarismo
No debalar do regime do turno, quando a I Restauraçom agoniza, a Galiza prepara-se para entrar na era da política de massas, os sistemas de partidos, e a imprensa militante, com profundas raiceiras locais e constante apoio da Galiza emigrada. Na Estrada, com pouco mais de 20000 habitantes, durante o primeiro terzo do século XX editárom-se até oito cabeçalhos distintos. É um reflexo do que acontece em todo o país. Dumha alfabetizaçom em ascenso e dumha progressiva formaçom de critério político nascerá, na década dos 30, a eclossom associativa republicana que tam bem conhecemos. Garcia Barros preparou-se para esta jeira tam prometedora como todo o melhor da sua geraçom: nas páginas dos jornais ‘El Estradense’ (do que foi fundador e director) ou ‘El Emigrado’, e obviamente nas fileiras do agrarismo. Ainda que este movimento, mui contraditório, foi por vezes tutelado e dirigido por políticos ambiciosos, a sua deriva antiforal conduze-o por vezes ao enfrentamento com o Estado; por outra parte, a óbvia identificaçom entre problemática labrega e galeguidade nom fai difícil a evoluçom do agrarismo ao patriotismo, caminho seguido por jornalistas tam dotados como o cuntiense Blanco Torres. Na década de 20, um Garcia Barros já maduro, por volta dos seus corenta anos, deixa atrás a inspiraçom social-católica dos seus inícios e abraça já o nacionalismo integral nas suas teses risquianas, e pouco mais tarde estreia o pseudónimo Ken Keirades para esquivar possíveis repressálias da ditadura de Primo de Rivera. Jornalista prolífico e escritor volcado sobretodo ao relato breve (‘Contiños da terra’), Barros compagina o magistério na escola de Ancorados com o seu compromisso pro-estatuto, apoiado nas redes republicanas locais.
No exílio interior
Como era de esperar, os verdugos petam na porta de Manuel Garcia Barros naquele verao de 1936; o desabafo económico da sua família permite-lhe comprar a sua vida, pagando 20000 pesetas para que as esquadras fascistas nom o matem. Doravante, Barros vive no espaço terrível da zona gris, em vizinhança com os executores dos seus amigos e irmaos, rodeado da paralisia social causada polo pánico e -suponhemos- aturando o desgarro psicológico da sindrome do sobrevivente, que acompanha aquelas pessoas que vem morrer à sua volta os seres mais queridos em guerras ou genocídios. Seja como for, e bem sabedor do privilégio que lhe permitira conservar-se vivo, os trinta anos seguintes som dum denodado esforço por manter o facho aceso, e por tecer redes aquém e além mar que fagam sonhar com um futuro para a causa. Acolhe na sua casa patriotas estradenses perseguidos como o militante do PG Ramiro Castro Dono, que no seu agocho de doze anos continuará a escrever em galego, e a dar a lume o ‘Cara ao sol galego’, umha resposta às humilhaçons falangistas; repassa as novidades editoriais galegas em correspondência com Ben Cho Sey e continua a escrever poesia, relato e novela; propom ao pondaliano Bieito Fernández constituir umha organizaçom clandestina de galego-falantes, ‘cujos componhentes se obriguem a falar sempre e em qualquer banda galego, e que cada membro, novo ou velho, se obrique a trazer outros quatro no mínimo.’; adentra-se no ensaio -também clandestino- para desmentir as superstiçons do nacional-catolicismo; em 1952, contribui para a difusom em língua galega da propaganda das festas de Sam Jorge das Cacheiras e de Santa Margarita em Calhobre; ingressa na RAG e comprova decepcionado os incoerentes comportamentos lingüísticos dos seus membros.
Nom eram tarefas banais: ainda em 1955, com oitenta anos de idade, Garcia Barros é detido com Fernández del Riego o ex-carabineiro Domingo Lemos pola sua relaçom por correspondência com o galeguismo do exílio, e acusado de rebeliom militar por ter na morada revistas proibidas (‘diversas revistas comunistas editadas por roxos do exílio’, segundo reza o auto). Todos eles som enviados a prisom preventiva durante um breve período como advertência governamental: o seu activismo, ainda silencioso, era submetido a esculca.
Em 1972, mui perto dos cem anos, morre Manuel Garcia Barros, após mais de seis décadas de compromisso social organizado e trabalho incansável com a pluma, e cincuenta anos depois de abraçar a causa galega. Com a sua morte publica-se também ‘Aventuras de Alberte Quiñoi’, um retrato novelado da comarca e dos tempos que o vírom nascer, tam decisivos para a formaçom do que seria a sua trajectória posterior: discreta e constante, leal e com vontade de eficácia, guiada pola legenda que escrevia a Ben Cho Sey na década de 50: ‘Frei exemplo é o melhor predicador’.