Disque o Merdeiro foi um popular persoeiro do entruido viguês do século XIX e princípios do XX, e que a memória dele quedou incorporada à tradiçom e liturgia da festa coma um nome local para o Meco, o homem de palha que ao queimar a quarta de cinzas leva as culpas dos descarreirados nos dias de festa e permite voltar à comunidade à rotina. Secassim hoje todo isto som línguas mortas para o comum. O carnaval segue, mas os significantes mudárom e deslocárom-se na transformaçom da própria comunidade e da vida quotidiana na cidade.

Vigo vive hoje o seu grande entruido nestas páscoas do Natal. Nestas semanas a cidade une-se ao gram plotach global do consumo que começa no Black-Friday e tem como pre-cuela o carnavalinho do Samaim, especialmente dedicado aos mas cativos. A evoluçom nas últimas décadas dos usos e costumes associados a esta gram farsa dam medida das possibilidades materiais e dos referentes culturais da nossa cidade, que passou por foliadas tam significativas coma a vaga de mascletás populares e fogos de palenque trás dos sinos de noitevelha, ou a universalizaçom entre a mocidade do smoking e o traje-de festa-como disfarces de gradaçom da noitevelha. Estas folias e ruadas, junto com dúzias de atos sociais menores como o intercâmbio de memes e brincadeiras polas redes sociais, ou os tradicionais burgueses andar-a-ver e deixar-se-ver de caralhada polo Casco Velho ou qualquer bairro nodal da cidade, sinalam as efemérides da gram esmorga tardo-capitalista na que Vigo fai parte, fachendosa da sua própria mitologia de cidade-industrial-desenvolvista. Porém, desde há uns anos nota-se umha aceleraçom do processo e mesmo um câmbio de fundo, pois um Concelho reduzido a persnoalíssima Alcaldia está a converter-se no principal agente desta transformaçom, institucionalizando a festa e monopolizando o espaço público com o alvo de privatizar e mercadeiar até a último folgo da vida social e comunitária da cidade.

O Merdeiro do velho entruido viguês era um personagem incómodo para a cidade, pois tais eram quem valeiravam os poços negros e carregavam com os refugalhos orgânicos para estercar as fincas do amplo alfoz urbano, as mesmas leiras que -de volta- alimentavam a cidade. Assim que o Merdeiro era fundamental para manter a salubridade cidadá, mas também um permanente aviso da porcalhada que acompanha a humanidade. Por tanto o Merdeiro era umha pessoa marginada acotio que -na revolta dos usos sociais que representada o carnaval- ocupava as ruas zorregando urbanitas com peixes podres e outros desperdícios, recordando o que lhes passaria se ele nom estivera para sacar da cidade as varreduras.

Na aparência, a urbanizaçom e industrializaçom desaparecérom aos Merdeiros da vida da cidade e mesmo das ruadas do entruido, mas nom o lixo nem a necessidade de que alguém o saque e se faga cargo. Ao contrario, a urbanizaçom e industrializaçom multiplicárom os lixos a e ainda nos voltárom extremadamente venenosos, tanto que ao simples contato matam campos e águas. Assim que neste tempo, o Merdeiro foi-se também industrializando ele mesmo, levando o lixo cada vez mas longe, abrindo vertedoiros no próprio alfoz, agachando baixo as ruas da cidade rios de merda para desbotá-los à ria, fazendo a recolhida à noite para evitarmos à vizinhança o fastio de nos cruzar coa nossa própria sucidade, e revestindo-se ele mesmo coa roupagem da técnica e a eficiência. A última fase do processo iniciou-se nos anos oitenta com o encapsulamento dos lixos dos fogares nesses ubíquos depósitos plásticos de vivas cores e nos herméticos camions de recolhida. Até entom, as bolsas de lixo -o polvo, dizia-se naquela altura num afetado castelhanismo- deixavam-se nas ruas para serem retiradas por camions abertos do Concelho que as vertiam no vertedoiro do Zondal, onde as amoreavam e queimavam. Ainda por entom miravam-se também polas ruas chatarreiros e cartoneiros privados que recolhiam estes refugalhos para seu reciclado; eles fôrom os derradeiros Merdeiros ao velho jeito. Poucos anos após desta modernizaçom da recolhida do lixo começou a demoradíssima construçom da depuradora do Lagares para tratar os vertidos fecais da cidade. Assim que já na entrada do presente século corrérom os primeiros marmúrios triunfais de que vivíamos numha cidade limpa e formosa.

Hoje os vigueses mantemos a fiçom de modernidade e sustentabilidade sobre cloacas que vertem as águas residuais -disque depuradas- no fundo da ria e vertedoiros fora da nossa vista, de jeito que mesmo perdemos a pista ao Merdeiro, disque um arcano persoeiro de tradiçom. Secassim o Merdeiro nom desapareceu, como todo na cidade mudou muito, profissionalizou-se e progressou muito também, de feito muito mais que a cidade. E o certo é que o Merdeiro já nem é vigués. A madrilenha FCC é a empresa que desde há mais de quarenta anos retira os residuos sólidos urbanos da cidade, com umha singular discreçom do seu fazer, em tanto o Concelho intermédia. A relaçom da cidade com este moderno Merdeiro segue sendo bem desigual, mas invertiu-se em bom grau. Mália os seus camións e dúzias de empregados recorram cada dia a cidade para assegurar um dos mas indispensáveis serviços públicos municipais, no mirar de FCC, Vigo nom é mais que outro apontamento contável -disque mediano- dumha longuíssima quenda de lugares e negócios. E dos nossos refugalhos líquidos ocupa-se Aqualia, parte do gigantesco conglomerado empresarial do mexicano Slim, velho amigo de Felipe González e habitual nas listas de ricachos globais. Abofé, Aqualia e FCC fam parte dum mesmo entralho de interesses económicos, e um genro de Slim tem assento no conselho de Administraçom de FCC. FCC também participou na construçom de Vialia, a última gram hipoteca das administraçons públicas para meter-nos no futuro e a modernidade. O Merdeiro mudou em potentado global, e recolher lixo em todo o mundo, empaquetá-lo e transportá-lo, vender-nos a água limpa dos rios e cobra-nos pola suja que desbotamos aos mares formam parte dum feixe de negócios que som a infraestrutura da nossa modernidade e urbanidade.

O Merdeiro e hoje um membro da elite mundial e já nom reside na cidade, converte-se num persoeiro demasiado importante, porém, tem agentes no Concelho que defendem bem seus interesses. Na mesma porta da Casa consistorial locirom por anos as vasoiras de oro, vasoira de prata, vasoira de platino coas que o Merdeiro premiou regularmente à cidade, disque pola extraordinária política de saneamento. Ao que parece, para a Alcaldia estas quincalhas seriam o máximo motivo de orgulho municipal e como tal as amostrava, pero de certo som a prova da submisom que vivemos. Nesta festa rachada tardo-capitalista, som as empresas privadas quem concedem prémios ás cidades polo seus bons cuidados ambientais e civismo exemplar.

Desde há catorze anos ocupa a Alcaldia de Vigo um velho economista do PSOE que na altura da Transiçom -outra gram foliada de transformismo político- atingisse certa sona intelectual impugnando a teoria de valor marxista e defendendo a de Piero Sraffa, afamado autor de Mercadorias por mercadorias. Agora, aos setenta anos cumpridos, já como alcaide, este velho socialista está a arrendar os últimos restos do espaço público e social de Vigo para transformá-los em mercadorias, conforme a esse fetichismo de «pôr em valor» que calou coma um credo nas administraçons públicas e mesmo na sociedade. Em resumo, nesta cultura tardo-capitalista a ideologia de «pôr em valor» equivale a rendibilizar, é dizer, extrair rendas para pagar logros de verdadeiro valor coma os prémios vasoira de oro, vasoira de prata e vasoira de platino. Assim que o próprio Concelho age como agente do Merdeiro enfastiando polas ruas aos vigueses para fazer gasto, consumo, desperdício; para pormos «em valor». O Concelho encarrega-se de compartimentar, requalificar e privatizar os espaços de tránsito e socializaçom para a sua exploraçom como concesons mercantis, para que «rendam». O próprio Concelho tala as ruas para por corredoiras mecánicas de acceso a centros comerciais, urbaniza as prazas como terrazas para o consumo, seca as fontes e fecha serviços, desatende reclamaçons vizinhais ou mesmo reprende iniciativas nom mercantis com açons policiais e burocráticas, marginando as zonas de passeio livre a redutos afastados, ilhados e hiper-regulados; em definitiva, torna a vida cidadá pobre, insolidária e cara.

As políticas de assédio a pequena escala, por bairros, rua a rua, enxertam numha política de segregaçom que ilha a cidade do seu entorno imediato para convertê-la em terminal dum sistema económico com seus centros mui longe de nós e lógicas alheias. Os hiperbólicos desaforos deste alcalde ao situar o Natal de Vigo num plano de competencia com Nova Iorque nom deixam de responder a este interesse por alienar a atençom pública do nosso entorno e realidade imediata, dos nossos vizinhos e do nosso país. Nesta política enquadram a insolidariedade e os conflitos permanentes com os municípios da contorna que o alcaide ativamente promoveu na sua açom política e no seu desleixo administrativo -como foi a política de total sabotagem ao desenvolvimento da área metropolitana-, no entanto doutra banda promocionava todo tipo de conexons a longa distancia por mui irrelevantes ou fantasiosas que resultaram. Por isso e alcaide paga a publicidade de avions de Ryanair voando de Londres a Berlím com a mesma alegria que celebra a abertura dumha estaçom de AVE para nos conectar com a gram capital madrilenha através dum centro comercial, berrando que ali encontraremos a sustentanbilidade.

A vizinhança sabemos que o alcaide fai permanente auto-parodia dele mesmo, mas com esta entruidada permanente danos conta da ingrata realidade. Fazendo apologia nos meios de comunicaçom do seu narcisismo no nome do viguismo, o alcaide ridiculiza-se ele mesmo e bulra-se de nós, vestindo seus desmandos e abusos de bufonadas. Todo semelha umha brincadeira, mas os danos que agocham som bem reais. Na teoria de Piero Sraffa o prezo monetário é independente do valor, de jeito que na teoria mesmo as vasoiras de ouro, prata e platino poderiam perfeitamente cumprir essa funçom de moeda; isto também podemo-lo tomar a chacota, mas de feito ali estám, bem guardadas numha vitrina do Concelho. Também o reparto de benefícios e salários som questons acessórias, inecessárias e mesmo supérfluas à criaçom de valor, mas por suposto isto também importa e muito ao Merdeiro e aos seus agentes, que som quem administram o trebelho. Para nós quedam as chanças, as parodias e as ruadas. Ao desmontar e negar qualquer movimento cidadá que nom poda instrumentalizar como parte da sua permanente campanha eleitoral, o alcaide vai estreitando as vias da vida social e política da cidade, e aí encontra as sinergias com o Merdeiro. Ao tempo que o alcaide parece fazer-se ubícuo em qualquer evento da cidade, a socializaçom e lazer das novas geraçons viguesas já tem lugar de forma preferente nos centros comerciais e a través do consumo. Apenas contamos com alternativas sociais que nom passem polo gasto ou pola presencia do alcaide como histriónico padrinho, e nom só temos menos alternativas canto mais pobres somos, a dependência destas formas mercantilizadas fai-nos mais pobres, em tanto estám pensadas para rendibilizar-nos, reducir-nos a produtores de rendas alheas.

Esta é a questom: que todas as alternativa da vida social e cultural da cidade (e por suposto também as políticas) passem ou nom polo consumo maciço. Certo que neste tardo-capitalismo global as forças puxando para converter as nossas relaçons sociais em sistemas de extraçom de rendas som enormes, mas para isso temos instituiçons públicas e cidadás, para criar alternativas e espaços de liberdade, nom para acelerar e reforçar essa mercantilizaçom social. Nom queda outra. Este cotroso carnaval tardo-capitalista que nos quer impor a Alcaidia/Concelho nom é um modelo inevitável nem desejável. há alternativas. mas se queremos reverter esta situaçom, ampliar e enriquecer as vias de socializaçom, abrir espaços de liberdade, recuperar a riqueza comum, devemos tomar responsabilidade conjunta das nossas próprias merdas e a relaçom com o entorno inmediato. Devemos recompor relaçons sustentáveis com os vizinhos e recuperar o controlo dos serviços municipais mais básicos. Ao fim e ao cabo essa é das primeiras liçons e trabalhos que aprendemos na vida: comer e cagar, saber onde e como fazê-lo.