Quinze de dias fantasia foi a legenda escolhida para uma fotografia postada por mim nas RRSS quando ingressei, há um tempo, num hospital galego para passar por um procedimento de doação de medula óssea para meu pai. Além de aproveitar e fazer companhia para ele, nesse momento tão importante e decisivo de sua – nossas – vidas, evitava aplicar-me injeções, a mim mesmo – um tratamento necessário para liberar células mãe na corrente sanguínea.

No dia em que estava deixando as minhas roupas no armário, a mim assinado, e, vestindo o que seria a indumentária hospitalar, dessas duas semanas, a palavra fantasia veio à cabeça por conta do uso brasileiro, estritamente vinculado ao carnaval. Depois de alguns dias fora desse ambiente hospitalar, a fantasia penso que foi o tempo de imersão nesse mundo tão intenso.

Retomarei aqui algumas anotações que, de forma não sistemática fui tomando ao longo dos dias, em função dos múltiplos condicionantes cotidianos, as conversas com as enfermeiras, médicas, auxiliares assim como, as mulheres da limpeza.

Esta era a primeira imersão que fazia num hospital galego após mais de vinte anos, com o que as surpresas e curiosidades eram muitas, tratar de entender o processo de privatização da saúde pública, a abertura de novos hospitais com clara vocação neoliberal e, as condições de trabalhos decorrentes desse processo. Dos primeiros dias de hospital, algumas coisas me chamaram especialmente a atenção. A primeira é que a grande maioria do pessoal sanitário são mulheres. Dos dois homens que vi nos primeiros dias, um era hematologista, o outro enfermeiro. No andar em que passei esses quinze dias, e no trajeto que fazia todo dia até uma sala em que os acompanhantes tomam banho, usam o banheiro, e fazem as refeições, vi apenas um homem a mais. Este, estava aparentemente repartindo as bandejas com a comida.

Que aquele seja um espaço fundamentalmente feminino, é percebível em todo o ambiente, nas atenções, nos cuidados e nos afetos. Mas também, se percebe a rigidez e a hierarquia institucional, a importância do controle e das normas.

Que seja um espaço feminino não é somente visível na quantidade de pessoas que circulam aqueles corredores, o imaginário de cuidado e os símbolos, também, marcam aquele espaço. Cada quarto conta com várias chaves que podem ser acionadas pelos doentes caso se encontrem mal, o símbolo que aparece nessas chaves, é um círculo vermelho e dentro a figura de uma mulher vestida de saia. Considero esse tipo de marcas simbolicamente muito fortes, pois, reproduzem e reafirmam papeis sociais exclusivos, que neste caso o que fazem é reproduzir as formas de opressão machista histórica.

Me chamou muito a atenção o caráter e personalidade daquelas mulheres, pois, como ficou claro na acolhida que semanas atrás fizeram os sanitaristas à que era na época conselheira de sanidade no Hospital Cunqueiro em Vigo, não estão nada felizes com as suas condições. É preciso entender aquele ambiente de trabalho também como um espaço de luta política feminina.

Encontrei nesses dias, mulheres que mostram a todo momento o seu lugar, ratificam a sua posição, com firmeza e afeto.

Pode ser alçando a voz com as demais para que não lhes mexam em um computador, pode ser quando falam umas das outras, das parcerias e amizades que têm além do lugar de trabalho, pode ser do imaginário e das imposições de nosso modelo educativo lhes impõe.

A precariedade laboral desse setor é alarmante e isso também marca o cotidiano delas. Das dezenas de mulheres que trabalham como enfermeiras, apenas duas duplas têm a vaga e, há uma meia dúzia que estão com vagas temporárias e contratos de meio ou longo prazo e, as demais, em contratos que vão dos dias aos meses. A maioria dessas mulheres não consegue planificar as suas vidas, não consegue desenhar um plano de vida a seis meses vista, pois, a precarização do sistema sanitário faz com que elas sejam as suas vítimas, veremos isso mais adiante. Elas vivem com contratos semanais, sem possibilidade de planificar minimamente suas vidas e, seu trabalho é cuidar daqueles vivos.

Falamos, portanto, de um espaço eminentemente feminino e com suas particularidades próprias. No dia em que fui doar medula pra meu pai, tive que acordar mais cedo que o normal, e, por isso, transitei pelo corredor num horário que nunca o tinha feito.

Havia 3 ou 4 enfermeiras conversando sobre uma bomba de irrigação de jardins. Falavam de como os modelos novos de bombas não eram tão potentes quanto as mais antigas, que alguma delas sabia, assim como de capacidades e de pressão, número de irrigadores e tamanho de jardim. Ouvi algo também em relação a desbrozadora e animais.

Quando saí do banho, vi o carrinho de uma enfermeira no corredor. Se elas estão no quarto de um enfermo, os carrinhos ficam do lado de fora. Aí ficam somente os transplantados e para entrar, é preciso passar por duas portas para dar acesso a cada quarto, uma forma de evitar contaminações. Esses carrinhos contêm um computador onde as enfermeiras têm dados de todos os pacientes que atendem, cada computador tem um colante com o número de quartos e nas gavetas que vão até o chão, suponho que devem armazenar os materiais que vão subministrando quarto por quarto. Têm também esses carrinhos, na parte superior, uma área plana com algumas separações como se fossem um bandejão. Do lado direito deste, há um espaço para deixar o celular, e, neste as enfermeiras costumam deixar os seus aparelhos telefônicos.

Costumam também ter um som, baixo, que imagino lhes ajudará a se abstrair minimamente do ambiente de cada quarto, quando saem ao corredor e se encontrar com algo delas, um ambiente, nem que seja minimamente reconhecível e particular. Estas mulheres vivem nos turnos entre demandas dos pacientes que na maioria das vezes são avisadas de urgências mediante o acionamento de uma espécie de interfone que tem um som como o de um celular. Vivem entre demandas, e suponho que ao sair dos quartos, escutar o som que elas querem deve ser uma espécie de bálsamo. Ao mesmo tempo, é-lhes exigido que a cada paciente o tratem bem, de forma amável e amigável. O que não deve ser simples, pois, de um quarto para outro a realidade com a que se topam pode ir de uma pessoa que está numa fase avançada da doença, até pessoas que estão com picos de febre altíssimos que não conseguem controlar ou pacientes alegres que veem que a sua evolução está sendo favorável. Todas essas variáveis passam pelo dia delas, de uma hora para outra, de um minuto para outro.

Naquele dia, o som que me chamou a atenção era de Ses, o título da canção era: Canto aqui cantona Habana!. Canto que tem como temática a autonomia da cantora, ela canta onde quer, com orgulho, responsabilidade e firmeza. O considero uma bela metáfora do que vivemos nesses 15 dias, e representativo também de com quem convivíamos. Não me estranho, pois, Ses encarna uma linha nova de renovação da música galega, como ela mesmo diz: semente de liberdade!.

Eis com quem estamos a conviver aqui, com sementes de liberdade. Liberdade, este sim, que também tem medo e sofre, mas que está à frente de uma luta que não tem fim.

Na sala de aférese (um tipo de doação), novamente a mesma proporção: três enfermeiras, nenhum homem; quando a operação de extração de sangue começou veio o médico, desta vez sim, um homem e, mais uma hematóloga, mulher.

Foram cinco horas ligado a uma máquina, extrai sangue do braço direito, que passou por uma centrífuga que, segundo me contou uma das enfermeiras foi inventada no século XIX para separar a gordura do leite. Tecnologia que, como muitas das que usamos atualmente foram desenvolvidas no período da segunda guerra mundial.

Durante todo esse tempo estive acompanhado por uma enfermeira super atenciosa. Ela era a responsável por tudo durante a doação. Advertiu-me antes de começar o tratamento que seria bom passar pelo banheiro, pois, nunca se sabe o tempo que estaríamos ligados à máquina e durante o procedimento precisa-se estar imobilizado, principalmente os braços. Sequer coçar os olhos ou subir a máscara. Eu até tinha pensado que poderia ler num livro no formato digital, mas nem isso. Ainda bem que a outra enfermeira foi gentil e subiu para pegar os meus fones de ouvidos. A enfermeira que me acompanhou teve que ligar o meu celular, colocar o roteador de wifi, ligar a tablet e colocar a lista de reprodução por mim escolhida no aplicativo de som. Coloquei uma lista de mais de 3 horas que finalizamos instantes antes de terminar a coleta. Essa lista estava também influenciada pela escuta da enfermeira, neste caso uma lista de reprodução de Guadi Galego, outra referência muito interessante.

Ao longo desse procedimento, as enfermeiras puderam me explicar algumas coisas, batemos papos interessantes de nossas vidas e, também, da relação contratual que elas têm com o hospital. Novamente a precariedade e as condições profissionais dantescas. Uma delas já é funcionária de carreira, já tem a sua vaga. A outra leva também desde que abriu o hospital, mas, a sua situação é diferente, ela tem uma vaga, mas não está consolidada, então precisa continuar se apresentando às vagas definitivas que há dentro do hospital para tentar consolidá-la. Dá-se a casualidade que não estamos falando de uma profissional que faça isso há pouco tempo, leva mais de 10 anos se dedicando à hematologia, primeiro no banco de doadores de sangue doutro hospital, fazendo vários tipos de tratamentos – diferentes e, claro, especializados. E agora, há seis anos na unidade de afêrese deste hospital. Enfim, é uma lástima que todo esse conhecimento e dedicação sejam assim tratados. Nesta mesma linha nos contava uma jovem enfermeira que esteve mais de dois anos trabalhando fora da Galiza e que já faz mais de quatro que está de volta na sua terra. Desde esse tempo está vinculada a unidade de hematologia, no entanto, nunca teve contratos que superassem três meses de duração. Dizia aflita, que ela não consegue planificar nada de sua vida, se comprar um carro, uma casa, ou empreender outros projetos pessoais. Planejar se faz inviável. Afirma que todas as compras que faz são feitas por elas sempre e quando tem a quantidade de dinheiro que precisa, se não, não as acomete.

A saída ao setor particular era uma possibilidade que ela e outras companheiras, diz que sempre debatem. A esses contratos mensais, há que se agregar a possibilidade de pro-rateio das condições de finiquito (fim de contrato) e férias que fazem com que essa situação seja ainda mais vexatória.

As novas instalações em que estas mulheres trabalham já entraram dentro do projeto de privatização da saúde levada adiante pelo partido popular.

Dos cuidados ao consumo, poderia ser o título de outro ensaio, este é um processo que foi por todas elas vivido, instaurado e pulsante, atual. Não interessa que essas mulheres mostrem com os seus feitos cotidianos o que a saúde poderia ser se fossem bem tratadas, elas, de fato, o demonstram a cada dia, a cada turno.

Essas mulheres e todo o pessoal sanitário, foram convertidos, no entanto, com o passar dos anos em consumidoras, essa não é uma categoria minha, se não de uma das responsáveis pela limpeza do quarto do meu pai nos dias que estivemos por lá.

Essas mulheres foram convertidas pelas mudanças do sistema sanitário em dependentes. Ao não terem as suas vagas garantidas, perdem dias, semanas e meses de suas vidas indo às academias de ensino particular que lhes ajudam a preparar as oposições (concursos). Mais de 100 euros por mês para isso.

Fizeram um hospital novo, novíssimo na área de Vigo e resulta que não conseguiram mensurar a capacidade de veículos particulares que precisam ser estacionados dia após dia no hospital. Fizeram um estacionamento ridículo, com um número de vagas revoltantemente pequeno, para que esse pessoal sanitário alugue por mês uma vaga do estacionamento geral. Se não querem chegar tarde e ter lugar onde estacionar que paguem, isso sim, tudo bem alinhado com um discurso de que para os que ali trabalham têm descontos mensais. Pelo menos mais 40 euros mensais.

Em vez de nos sentirmos donos daquele espaço, com o passar dos dias ia ganhando espaço nas narrativas uma categoria a princípio estranha, a concessionária. Seria essa mão perversa do capital que está marcando de forma profunda a relação que usuários e profissionais temos com um serviço até então pensado como público? Assim o nome das grandes corporações do Estado iam ganhando também presença no pessoal nomeado de forma excludente como não-sanitário.

Dessa forma a fantasia, agora ganha uma centralidade, naquele dia não pensada por mim. A fantasia é uma vestimenta usada para alguns dias, é uma ficção temporária, datada. A saúde, os direitos e as conquistas históricas são de fato lutas incansáveis.

Gostaria para finalizar – porque há muito tempo que lhes devo este texto de agradecimento – fazer uma breve reflexão tendo como interlocutora a autora Vandana Shiva e um texto dela intitulado: Recursos Naturais. Nesse texto, a autora nos mostra como o capitalismo fez para que os recursos naturais e a natureza deixassem de ser considerados fontes de vida e passassem a ser vislumbrados como uma mercadoria, como algo que é possível transformar, vender e lucrar. Pergunta a autora quando e como é que a natureza deixou de ser considerada mãe, para poder ser mercantilizada.

A fantasia foi, pois, um processo duro de convivência datado pra mim, mas contínuo para aquelas mulheres que cuidam dos demais, que também são mães e, que são tratadas pelo Estado e pela Xunta como força de trabalho, maltratadas sistematicamente. Diziam, e com isso finalizo, que nos dias em que acontecer os exames para serem funcionárias públicas, os hospitais ficarão sem enfermeiras, pois, todas estarão opositando, examinando, para muitas das vezes, continuar – sem ser reconhecidas ou nos postos que não lhes corresponde – cuidando, sarando, dando carinho e afeto para seres que, como meu pai, sofrem não só com a sua doença, sofrem com elas pela precariedade à que são submetidas, pelo mau trato sistemático com a que a administração – e aqui pode estar outra chave se pensarmos na dicotomia proposta por Shiva (Estado/mercado/masculino – afeto/vida feminino) – que é masculina, como o presidente, o conselheiro de saúde, etc.

Quiçá, as Sandra, Encarni, Puri, Beatriz, Yolanda, Merche, Conchi, Charo, Pilar e tantas e tantas outras pudessem aqui expressar melhor o que é a fantasia de suas vidas ou como fazem para sorrir, cantar, animar e apoiar aos doentes. Sem elas isso não seria possível.

Sirva este escrito como minúscula mostra de agradecimento!