Houvo um tempo em que ser de esquerdas implicava nom comer no McDonald´s. As suas hamburguesas podiam ser mais ou menos saborosas, baratas, cómodas e estar na moda, mas essa empresa representava a forma de viver, de trabalhar, de produzir e de comer contra a que se militava. Por que será que Facebook nom provoca hoje o mesmo rechaço?

A identificaçom da “comida lixo” como símbolo do que se combate levava implícita umha verdade profunda: muito mais do que um sistema económico, o capitalismo é mais bem um projeto antropológico, no que economia e política constituem apenas os pés e a cabeça do monstro. A sua força formidável reside na sua capacidade de se tomar necessário para a realizaçom do ideal de vida de quem o padece, dissolvendo e reconfigurando continuamente os modelos sociais e culturais do nosso tempo. O capitalismo do século XX venceu o socialismo real, entre outras muitas cousas, porque conseguiu que a classe obreira sonhasse mais com o turismo, a Coca-Cola e o Rock-and-Roll do que com a justiça social. Pois bem: já ninguém pode ignorar que a cibernética e as novas tecnologias da comunicaçom constituem a infraestrutura económica, política e cultural do capitalismo do século XXI.

Do ponto de vista económico, a virtualizaçom da vida e a sua gestom mediante redes sociais privadas e centralizadas permitiu a mercantilizaçom dos aspetos mais íntimos do ser humano, até o ponto de que hoje os principais ícones da oligarquia mundial nom fam as suas fortunas extraindo petróleo ou fabricando carros, mas digitalizando e vendendo os nossos gostos, as nossas ideias, as nossas emoçons ou as nossas amizades. Baixo o paradigma do chamado “capitalismo da atençom” o que lucra o sistema nom é apenas o tempo que passamos a trabalhar, mas também –e cada vez mais– as horas que consegue que canalizemos o nosso lazer e as nossas relaçons sociais através das suas plataformas. O conceito de alienaçom capitalista deve ser, por isso, atualizado: deshumanizam mais oito horas de trabalho ou outras tantas alimentando com a nossa intimidade os algoritmos dumha empresa de Silicon Valley? Se o primeiro tipo de exploraçom podia degradar-nos à funçom de bestas de carga, o segundo equipara-nos a macacos ou ratos de laboratório.

A digitalizaçom experimentada nas últimas duas décadas nom só supom a conversom em matéria prima dos aspectos mais íntimos da vida humana, mas também a sua degradaçom e pauperizaçom qualitativa. A adiçom às redes sociais e aos dispositivos tecnológicos é já umha pandemia inquestionável, com sintomatologia bem identificada. Entre os danos psicológicos som comuns a ansiedade, a dependência, a dificuldade para a concentraçom, o insómnio ou a hiperatividade; entre os sociais, som evidentes o isolamento, a superficialidade, o sensacionalismo, o extremismo ideológico, ou a precarizaçom dos vínculos reais. A mercantilizaçom integral da vida das pessoas tende a converter as relaçons humanas em relaçons entre produtos. As amizades digitais som tam saborosas e tam pouco nutritivas como a “fast-food”: é impossível gerar vínculos, compromissos e comunicaçom verdadeira sem a presença física, o tempo e até o esforço que requerem as verdadeiras relaçons humanas. E se a alteraçom das formas de socializaçom afeta todos os níveis da vida coletiva, a participaçom política também se vê necessariamente afetada. A que fica reduzida a militância sem vínculos, compromissos e comunicaçom autênticas? É urgente explicarmos às novas geraçons que, antes dos “chats” e as videoconferências, o grosso da política nom se construía nas reunions, mas nos cafés, nos vinhos, nas viagens e nos encontros de antes e de depois (como substitui a propaganda digital as horas de conversa e experiências que alguns tivemos colando cartazes ou fazendo faixas?). Se noutro tempo as relaçons militantes se construíam sobre o modelo da família (com “camaradas” e “irmaos”), a cibersociedade líquida fai-no sobre o do videojogo online e o reality-show. A própria atividade política fica presa das exigências da espetaculosidade, velocidade e sensacionalismo que impom umha forma de entender e construir o social baseada no marketing.

O que do ponto de vista económico e social se apresenta como “capitalismo da atençom”, do ponto de vista político constitui-se como capitalismo da vigilância, ou diretamente cibertotalitarismo. Nunca na história um tirano sonhou se quer com ter tanta informaçom dos seus súbditos como a que manejam os donos do mundo de hoje. Cumpre nom deixar de insistir em que se as redes sociais que utiliza a maioria som gratuitas é porque as empresas que oferecem o serviço vivem de elaborar perfis psicológicos, sociológicos e ideológicos dos seus usuários e vendê-los ao melhor postor (sem importar se o comprador dos dados quer vender aspiradores, cambiar intençons de voto ou perseguir homossexuais). Por um módico preço, Facebook ou Twitter permitem-che sabê-lo todo de umha pessoa, ou de um país. A combinaçom de dados numha quantidade, profundidade e continuidade temporal nunca imaginadas, com capacidades insólitas de processá-los e interpretá-los, resulta na possibilidade aterradora de predizer e influir de forma massiva os comportamentos políticos e sociais da cidadania. Se a informaçom é poder, estamos a dar aos grandes monopólios tecnológicos o maior poder da historia da humanidade.

Por todo isto, resulta alarmante a ingenuidade ou a rendiçom ideológica da esquerda ante o processo de digitalizaçom da nossa sociedade. Quando se debate sobre esta questom, acostuma-se a dizer que a tecnologia é apenas umha ferramenta (que pode ser utilizada para o bem ou para o mal), mas nom é exato. Devemos entender a tecnologia mais bem como umha infraestrutura –igual que o AVE ou um centro comercial– cujo impacto físico, social e cultural dana umha forma de vida para favorecer necessariamente outra. De facto, a relaçom entre o que fazemos com o telemóvel e os câmbios que se produzem no mundo é cada vez mais estreita e evidente: a precariedade laboral transita os caminhos que abrem Amazon ou Glovo, o mercado da vivenda transforma-se da mao de Airbnb, e a minaria de terras raras surge como resposta à demanda imparável de dispositivos móveis. A identidade também se vê alterada polas relaçons que potenciam as redes sociais, onde as línguas menos faladas som um obstáculo, e os algoritmos e “trending-topics” fam que nos sintamos mais concernidos polo que preocupa em Madrid do que polo que preocupa no Porto. A adesom acrítica –e amiúdo entusiasta– a esta forma de construir o mundo por parte daqueles movimentos que começárom o século reclamando que “um outro mundo é possível”, recorda aquele apelo irresponsável de Tierno Galván “a colocar-se” nos anos 80, quando certa esquerda entendeu que a drogadiçom era umha forma de libertaçom.

A digitalizaçom da vida, a cibernética e a Inteligência Artificial prometem transformar as sociedades humanas dumha maneira tanto ou mais profunda do que o fixo a Revoluçom Industrial. As posiçons a respeito daquela definírom o pensamento político e os movimentos sociais dos séculos XIX e XX, e é igualmente obrigado que os movimentos que pretendam influir no mundo que se desenha neste século XXI pensem em profundidade e se posicionem a respeito da presente revoluçom tecnológica. Cabem críticas mais “reformistas” ou mais “radicais”. As primeiras deveriam, como mínimo, defender umha democratizaçom das tecnologias das que depende a vida da cidadania (seguindo os princípios do software e o hardware livre), e conceber os serviços digitais como serviços públicos (promovendo iniciativas populares ou empresas públicas que ofereçam o mesmo que Google) e fazer bandeira do direito à privacidade. As críticas mais ambiciosas e valentes alertarám de que a autoestrada cara a digitalizaçom completa da vida é umha infraestrutura perigosa, desenhada para dissolver o mundo que conhecemos e construir um bem pior, e defenderám as formas de vida “analógicas” como umha bandeira de humanidade e sociabilidade, entre causas tam arcaicas e tam necessárias como a agricultura de proximidade ou os direitos laborais. Seja como for, o urgente é abandonarmos de forma militante Facebook, Twitter, Google ou Amazon, com a mesma convicçom com a que os nossos pais rechaçavam o McDonald´s. Superemos a vertigem que nos provoca o ficar fora do mundo desenhado e controlado polas principais empresas do capitalismo mundial, e reconstruamos um projeto de pais livre no que as relaçons sociais e a participaçom política nom estejam tuteladas polo inimigo que dizemos combater.

Miguel Garcia é preso independentista galego e experto em privacidade digital.