Para Cris Rodrigues, pola sua afouteza frente ao que tivo que aturar.
“Ao escrever esta obra, procurei dividi-la em cinco capítulos, correspondentes à Terra, à Água, ao Lume, ao Vento e ao Vácuo, a fim de expor as peculiaridades de cada um, bem como as suas vantagens.”
Livro das cinco esferas
Miyamoto Musashi
Seguindo zouponamente o exemplo do inimitável Musashi, tentarei traçar umha imagem da atual crise sanitária em cinco partes: luita pola hegemonia do sistema-mundo, luita civilizatória, luita de classes, luita política e luita de liberaçom. Velaqui a derradeira.
Luita de liberaçom. Vácuo
Transcorreu muito tempo entre as quatro primeiras partes desta série e esta que escrevo. A espera por um horizonte de saída na crise sanitária que permitisse enxergar mais claramente o cenário posterior foi a culpável. Rematávamos a anterior preludiando esta derradeira do seguinte jeito: “O que Espanha menos deseja é que demos erguido um espaço independentista aberto e habitável que coordene num discurso plural o soberanismo de base. Um lugar que convide a participar a toda pessoa que quiger construir alternativamente e combater frontalmente o Regime do 78 além de etiquetas. Ela aguardará que repitamos leias por pirâmides de mando focadas ao institucionalismo ou o cainismo dos vanguardismos frikis co que tam bem nos marginaliza. Por isso toca surprendermo-la enquanto o olho de Sauron nos ignore. Nisso andamos.”
Um dos problemas mais importantes cos que batérom os movimentos anti-coloniais dos S. XX foi o emprego das ferramentas teóricas do opressor, dos marcos epistémicos e de valores metropolitanos: supremacistas, classistas e próprios do patriarcado burguês cristao. Os resultados dérom em aplicaçons miméticas dos moldes que se lhes impugeram aos povos subalternizados mas geridas polas classes médias nacionais para novas ou velhas potências estrangeiras. Isso sim, indentificando em si mesmas como classe os valores prestigiadores que lhes insuflara o colonialismo durante geraçons. O calco das instituiçons é, se calhar, o exemplo mais evidente. Umha greia de novos Estados-naçom a imitaçom dos europeus esmagou a organizaçom e os sentidos comuns autóctones por todo o mundo colonizado. Assim, ao cabo, o neocolonialismo imperou assobalhante entre os independizados após a II Guerra Mundial. Também entre os que se proclamaram socialistas.
De feito, a interpretaçom limitada que a escolástica soviética realizou de Marx, submetendo toda superestrutura sociocultural e ideológica a umha estrutura de produçom económica, deu num fracasso clamoroso. Já Gramsci apontara a interrelaçom entre umhas e outras, como hoje sabemos que também entendera o próprio Marx. É certo que a economia determina as formas culturais e políticas, mas também que estas determinam a evoluçom dos sistemas de produçom. E por suposto, nom, nom mudam todas as opressons do capitalismo de seu em redençons várias por trocarmos o modelo económico. Cumpre um cámbio civilizacional, alicerçado numha nova ética, que recolha as pautas para acabar com todas essas dominaçons e cos dispositivos sociais que as justificam. Quer dizer, nem a independência é um fim em si mesmo nem o socialismo um mecanismo rígido com manual de instruçons centenário.
A elaboraçom dumha narrativa ideológica própria com base nas necessidades e demandas concretas e atuais é a chave de qualquer movimento vitorioso. Contra isto bate o ideologismo que repete o mimetismo do modelo teórico abstrato e atemporal e o possibilismo que vem e vai coas marés do imediato. Pola mesma, cumpre umha ética post-capitalista que se manifeste numha conduta nova e predique co exemplo dentro dos espaços arrapanhados ao inimigo. A ideia do primeiro cristianismo de que o reino de Deus já medrava entre eles, nas suas pequenas comunidades, sob o novo marco moral, permitiu umha expansom tam rápida como a do Islám e o seu novo código comportamental interno. Já dizia Marx que daquela “a crítica da teologia se virava crítica da política”. As mudanças históricas combinam a apariçom do novo em espaços emancipados contra o velho canda a pressom nas tendências mais avançadas deste para produzir o cámbio estrutural.
No concreto, o nacionalismo institucionalista, o BNG, constitui neste momento a segunda força política em Galiza, com mais apoio eleitoral do que nunca gozou em toda a sua história um partido galego. Após a crise de Ámio e umha marcada travessia polo deserto, soubo aproveitar os fracassos dos vários pactos do beirismo coa “esquerda” espanholista. Esse pouso anti-regime que medrou fora do socairo bloqueiro na geraçom do 15-M canalizou-se finalmente em chave nacional nos comícios. Mas isto nom só aconteceu pola ineptitude organizativa do beirismo e a chafalhada neo-carrillista de Podemos. O BNG soubo renovar o seu discurso eleitoral em chaves rupturistas desde um autonomismo quintanista constitucional, velho, que o lastrava. A construçom dumha fasquia diferente, mais urbana e menos acomplexada, bebeu sem dúvida também de experiências alheias e novos referentes. A pegada dum laclausismo à galega na elaboraçom do liderado de Ana Pontom e a “nova imagem” resulta inegável para quem tiver olhos na cara. Outramente, o contrapeso “radical” para equilibrar e alargar o envolvimento bloqueiro assentou-se em três piares. Por umha banda o discurso independentista e duro de Nésto Rego em Madrid, claramente diferenciado do do Hórreo. Por outra, o MGS e a sua reinvençom em Movimento Arredista, coa pretensom de atrair o independentismo, a monte fora do BNG, para dentro. Em último lugar, Via Galega, enéssima tentativa aglutinante da UPG, que nom só emprega a linguagem e os símbolos tradicionais do independentismo histórico que antes condenava, senom que também usa os seus quadros conversos. “Um anel para todos governar”
A pretensom de abranger absolutamente todo o soberanismo galego num composto orgánico monocorde de direcçom única é umha antiga ambiçom que sacraliza o velho Partido Galeguista numha narrativa infantil e, decerto, classemedieira (Pobre USG!). Nesta altura do capitalismo e do regime, resulta ingénuo pretender a governança absoluta de todos os agentes de mudança numha estrutura de partido eleitoral e as suas ramificaçons. Endebém, o trabalho na administraçom do regime que se combate leva à necessidade dumha outra força de cámbio nom dependente dos ritmos mediáticos e institucionais desse sistema. As duas velocidades de transformaçom em andamento complementar para superar candansua debilidade. Umha é doada de isolar e anular como alternativa sem a segunda. A outra é fácil de corromper e integrar no lógica do sistema sem o contrapeso da primeira. Trata-se simplesmente de ter umha perspectiva em chave de país e de movimento: a estratégia dos dous ritmos com um mesmo horizonte que tanto repetimos nesta série. A construçom da República Galega precisa da pluralidade radical para ser hegemónica, mas também da unidade de açom estratégica de todos os agentes sociais quando cumpre. 40 anos demonstram que o partido eleitoral como vanguarda nom avonda para a angueira, Catalunha ratifica-o co Procés. Precisamos novas instituiçons próprias e populares, nom apenas um partido para votar e apresentar iniciativas e moçons nas do inimigo ou governar em coaligaçom.
Qual deve ser daquela o papel do independentismo para além do BNG? Pois elaborar umha nova narrativa superadora do nacionalismo eurocéntrico do XIX, que ainda nos enchoupa, e protagonizar sem exclusons a construçom das instituiçons populares e próprias. Como se fai isso? Já acontece em bruto, de jeito disperso e pouco coordinado, dilapidando esforços em espontaneísmos voluntaristas mas resistindo e até avançando ainda assim. Mantem-se um independentismo popular participativo que assume todas as luitas de liberaçom e mesmo aplica as suas lógicas internamente, nom só as consignas como slogans valeiros. Essa força social que convive coa base bloqueira no trabalho de a pé precisa de ser articulada para converter-se em efetiva e multiplicar exponencialmente. Porém, o seu próprio caráter local e assemblear impom a forma de rede flexível, mas rexa, para o seu funcionamento.
Umha história recente ateigada de luitas fraticidas por micropoderes insignificantes escorrenta a quem ainda retemos a esperança. O vanguardismo piramidal do século passado, que tantos sociopatas atrai e que tanto gosta de foçar na lameira da marginalidade, é um ferrancho velho e contraproduzente. As suas dinámicas maquiavélicas e esteticistas nom permitem a convivência, antes bem consolidam a hegemonia do regime encarnando a caricatura do nós satanizado ou ridiculizado. É o formato em que se especializárom os serviços de inteligência para controlar alternativas políticas usando-os de tapom. Nom cumpre nem nomear organizaçons deste tipo, mesmo casos presentes, para que todas saibamos que se convertem em trituradoras de militantes, assassinas da esperança e propagadoras do medo. Umha estrutura reduzida e controlável, previsível, minoritária, crédula no interno e desconfiada na contorna, marginal, anti-estratégica por definiçom. Por isso nom se pode conciliar com quem chapuza no xurro, porque nos arrasta ao seu terreio até afogarmos. Repetir por enésima vez as batalhas de listagens testosteroides por siglas e postos em vanguardas autoproclamadas sem que nem sequer médie debate político, a esta altura, mais que trágico é fríki. Hoje, a demanda de espaços habitáveis para a participaçom de todas é reconhecida maioritariamente e leva à juntança de base e a coordenaçom entre iguais em qualquer movimento social. Demonstrou-no Nunca Mais como paradigma e corroboram-no as forças políticas quando se querem nutrir de nova militância e realizam processos aglutinantes: Novo Projeto Comum, Galiza Pola Soberania, Movimento Arredista e até Via Galega. Porém, a assembleia acaba co monopólio da informaçom interna do gerifalte de café e chamada telefónica delongada, por isso a temem os medíocres de toda cor e até se aliam co demo contra ela. Nesse sentido, paralisar processos como foi o Trevinca para somorgulhar-se no sudre da liorta interna com sociopatas maltratadores e orcos de Saruman por medo ao corte cirúrgico só serve para legitimá-los e retroceder à marginalidade. O CNI fregará as maos satisfeito, o efeito tapom há evitar de novo a expansom potencial do independentismo reforçando a imagem relegada, hostil e cainita.
Nom se pode conviver na nova sociedade com quem pretende exercer privilégios de qualquer tipo sobre nós e mesmo recorre a toda caste de sujeiras para os conservar. Nom se pode construir em comum com quem emprega as ferramentas de todas para os seus fins contrapostos a consciência. Nom se pode conciliar nem debater com quem agride nem tolerar a filtraçom a sabendas por pánico escénico ou alangreio. Nom se pode deter o que cumpre por medo a perder o que sobra nem “botar vinho novo em odres velhos”. Prolongar o dessangrado por temor à amputaçom quando se sabe inevitável e compreensível para todas nunca foi bom para a saúde de nengum corpo vivo. Enrolar tripulaçom em barcos de adegas furadas e ratas gigantes a sabendas também é um crime. A fábula do escorpiom de Esopo é mais velha que a fame e velaí que sempre aparece quem guinda risos de babeco ao repeti-la.
A potencialidade dum discurso de rutura consequênte para além das instituiçons e em paralelo ao nacionalismo eleitoralista estarrece o statu quo até a cerna. É o outro pé que cumpre na dialética da liberaçom nacional, o que permitiria artelhar ferramentas de representaçom popular próprias canda o soberanismo maioritário. Umha ponta de lança ao serviço das causas concretas sem ritmos nem dependências mediáticas e institucionais para escrachar corruptos e ocupar despachos culpáveis. Mas cumpre vontade e generosidade, umha simples rede que coordene nacionalmente pontos plurais a nível comarcal e local, sem líderes alfa e com espaços habitáveis. Necessitamos que sejam as oprimidas de todo tipo quem desenhem as normas do lugar em que participemos todas, começando polas mulheres, como resulta óbvio, e nom polo ego dos privilegiados por género, classe ou raça.
O movimento soberanista galego no seu sentido amplo tem a obriga estratégica de sair fortalecido da crise. Máxime quando a contradiçom da rutura co regime se vai visibilizar mais que nunca em chave nacional no Estado espanhol. Os resultados eleitorais em Catalunha e em Madrid e as medidas liberais impostas pola UE que vai adoptar o Governo espanhol assinalam ainda com mais folgos nesse sentido. A nova Transición que tenciona consolidar o regime avança co apoio de todas as forças políticas espanholistas e vam-na realizar contra as classes populares e as naçons sem Estado.
Num momento de troca de hegemonia no sistema mundo, abre-se a oportunidade para os novos projetos nacionais que se aliem coa nascente potência preponderante. Cumpre saber diferenciar, contodo, alianças geoestratégicas de modelos políticos para nom cair no pailanismo coitado. Frente à submissom ao Banco Central Europeu e ao FMI pró-ianqui que o regime espanhol nos oferece, cumpre umha República Galega viável que se alie com China e Rúsia para defender a sua soberania sem mimetismos pueris. A crise económica que se achega, com rotundidade para a economica turistificada espanhola, vai ter na soberania alimentar e no setor primário umha das suas vacinas mais contundentes. Por isso precisamos também dum reforço da volta ao agro desde o independentismo, tanto no ideológico como no organizativo. Na crise económica que aguarda, os sindicatos vam ter um papel axial no Estado espanhol. Como justificadores das medidas regressivas dos governos os oficiais e como esteios de ajuda mútua e combatividade os anti-regime. Afortunadamente, o sindicalismo galego mantém-se forte ainda que precise adaptar-se a umha realidade de guerra de classes no canto da negociaçom coletiva keynesiana para a que evoluiu. Velaí também um campo de batalha em que cumpre a confluência decidida de todo o soberanismo e a sinérgia sindical com todo o tecido associativo e asistencial galego. O peso na açom e na decisom de desempregadas e precárias, a mocidade, resulta pois inesquivável e deve ser a bandeira da atividade independentista nas centrais de trabalhadoras.
O mundo está a sofrer a mudança mais importante desde a queda da URSS. Encontramo-nos num período de transiçom e parálise. O regime espanhol vai-se tentar recompor aproveitando o cenário de excepcionalidade e fortalecer a II Transición frente ao perigo catalám. É momento de arrufarmo-nos como povo num projeto soberano de país, apegado à materialidade, real. Precisamos mais que nunca de todas as nossas capacidades para deixar atrás as cangas que nos apoucam e infantilizam e guindar de novo a “afirmaçom inteira e mais baril.” A história nom aguarda nem se corrige de seu.