No primeiro destes dous artigos oferecia um paralelismo entre a revoluçom agrícola verde do século passado e o atual boom das energias renováveis. Faltou-me por adicionar outros elementos fundamentais onde, acho, encontrar semelhanças entre umha e outra.
Protegidos pola suposta necessidade de produzir mais, ninguém dixo entom que por trás daquela “revoluçom agrícola verde” haveria tantas vítimas. O conceito de soberania alimentar surgiu entom, precisamente, como umha resposta a essas “externalidades” nunca antes visibilizadas. Se na nossa margem, com a chegada de ingente maquinaria sofreu-se um êxodo camponês para as cidades, por outro lado, organizavam-se guerras pola apropriaçom do petróleo que as moveria. Se os povos daqui ainda choram a sua solidom, territórios soberanos como o Saara, ricos nos fertilizantes que a indústria agrária requere, sofrem umha ocupaçom imperdoável com a cumplicidade da comunidade internacional. Que a Galiza seja umha potência na produçom de porcos depende da importaçom de soja para alimentá-los e, portanto, depende dos incêndios na Amazônia ou do Cerrado no Brasil…
E da mesma forma, devemos alertar que o fato de que aqui, na Europa, as turbinas dos moinhos de vento rodem para produzir energia verde está diretamente relacionado ao câncer de pulmom que, em Antofagasta (Chile), atinge um 10% da populaçom, porque desde umha distância considerável, quatro horas de carro, chegam metais pesados polo ar de umha das maiores minas a céu aberto do mundo. Em Chuquicamata, umha cratera de quatro quilômetros de diâmetro e um quilômetro de profundidade, é extraído o cobre necessário para as turbinas eólicas e o cabeamento para transportar a energia elétrica por elas produzida, bem como o cobre necessário para as baterias, bobinas e motores dos carros elétricos ‘superecológicos’ que o usam.
Metais pesados no ar, nas águas dos rios e no sangue e na urina de cerca de três milhões de indígenas do Peru, um Estado tóxico, cujos povos estám muito próximos das inúmeras minas –também de cobre– do chamado Corredor Mineiro do Andes. Durante as 24 horas do dia, as minas estám ativas e o trânsito de camions nom para, rachando as suas casas e espalhando nuvens de poeira tóxica sobre as colheitas destas famílias. As terras tornam-se áridas, a água deixa de ser potável, as lhamas morrem bebendo dela ou alimentando-se das pastagens também contaminadas… e um modo de vida sustentável torna-se numha vida insuportável. De fato, no Peru, as doenças respiratórias da populaçom som responsáveis dumha taxa de mortalidade por coronavírus superior à média.
O mesmo ocorre no chamado Silicon Valley das terras raras, na província chinesa da Mongólia Interior, que converte a este país no primeiro país a extrair esses minerais, com mais do 70% da produçom mundial. “No Ocidente queríamos metais, mas nom o custo ecológico de obtê-los, de certa forma, deslocamos a poluiçom para a China e assim podemos dizer que estamos fazendo uma transiçom energética ecológica”, explica Guillaum Pitron no seu livro La guerra de los metales raros (Península) para representar os efeitos desta “poluiçom exportada”.
O próximo livro de Alfons Pérez, Pactos verdes em tempos de pandemia, recolhe umha lista mais longa de conflitos relacionados a estas matérias-primas críticas para a tam esperada revoluçom da energia verde: as condiçons de trabalho quase escravistas denunciadas polos trabalhadores na mina de cobalto de Bouazar (Marrocos); a poluiçom de águas e ecossistemas pola mineradora Glencore-Katanga, no Congo, com ameaças e violência contra ativistas (assista ao documentário Machini); as chúvias ácidas e emissons de dióxido de xofre também causadas por Glencore na Zâmbia; as luitas do povo indígena Karonsi’e Dongi contra a mineradora Vale, S.A., na Indonésia; e, desde logo, em maiúsculas, o conflito geoestratégico aberto polos recursos de lítio na salina de Uyuni (Bolívia), onde empresas como Tesla, líder em tantos negócios ‘limpos’ que exigem desse mineral, estám detrás, segundo declaraçons de Evo Morales, do golpe do ano passado. Acrescentemos a esta lista a expansom mineira também na Península Ibérica.
Por último, tendo em consideraçom as dimensons dos moinhos ou dos parques eólicos, também vejo semelhanças co gigantismo da revoluçom verde agrária. Do minifúndio improdutivo, tivemos que passar para o latifúndio; do latifúndio a grandes plantaçons e já temos, mais ou menos, o 80% de todas as terras do mundo convertidas em monocultivos e o 70% administradas por apenas um 1% de todos os seus proprietários. Dos animais a pascer nas leiras ou na horta da casa, passamos a granjas de 50 animais que crescérom até centos de animais, mas dizem que ficárom pequenas e agora temos, multiplicando-se por toda a península, megagranjas de milhares de animais que nom som nada comparadas às supermegagranjas de 12 e 14 andares da China, como arranha-céus de porcos. Do carro tirado por vacas ao trator, e dali aos megatratores com a largura de duas pistas de autoestrada; de umha pequena barragem no rio próximo a cada vila, às usinas hidrelétricas das multinacionais e os seus matons (digo-o abertamente por causa dos muitos assassinatos de defensores da terra), que som risíveis se as compararmos com a barragem das Três Gargantas na China, umha usina de ‘energia renovável’ que expulsou mais dum milhom de pessoas que viviam de forma sustentável.
Cada um desses moinhos inseridos como estacas na terra remete-me a imagens de poços de petróleo nos Estados Unidos que conheci polo cinema ou os documentários. É verdade que o barulho dos moinhos nom deve ajudar-me a avaliar as muitas diferenças entre uns e outros. Mas é claro que continuamos a sentirmo-nos donos da Natureza e, como aconteceu com a chegada dos combustíveis fósseis, continuamos sem questionar até que ponto é natural industrializar o natural. Quantas árvores, quanta vegetaçom, quanta flora e fauna matamos na ocupaçom do território tomado polos moinhos e os seus caminhos? Sinto cada moinho como a muleta que sustenta umha humanidade supercivilizada, mas coxa de sentimentos e emoçons.
A soberania alimentar, a medida que foi desenvolvendo o seu discurso, entendeu claramente que, além de exigir politicamente o controle social da agricultura e da alimentaçom e denunciar as injustiças Norte/Sul, devia posicionar-se firmemente a favor dum modelo produtivo, neste caso a agroecologia, que nasce da visom tradicional da agricultura camponesa. Nom é sustentável consumir produtos doutros lugares, ou de fora de temporada, mesmo que sejam ecológicos. Nom podemos assumir como sustentáveis os produtos locais se forem recolhidos por mãos maltratadas laboralmente. Nas luitas pola descarbonizaçom da atmosfera e pela soberania energética, como também aponta Pablo Bertinat, engenheiro elétrico, é central esta reflexom dum modelo e perspectiva global. “Nom é apenas encontrar um estilo de desenvolvimento menos intensivo em termos de energia e materiais, mas também romper esse esquema de forte desigualdade. Isso significa que há pessoas que tenhem que consumir mais, outras menos e todas consumir de forma diferente. Temos que encontrar processos para satisfazer as necessidades com menos. Resumindo, como ser feliz com menos matéria e energia. Com a desigualdade no centro”.
Do Saara ocupado polas suas riquezas como a pesca ou os fosfatos (aliás, extraídos da mina de Bucraa com energia eólica instalada pola empresa Siemens Gamesa), o poeta Luali Leshan desafia-nos com estes rotundos versos anatômicos:
A linguagem com que eles gritam
os intestinos do Sul
é um enigma nos ouvidos do norte.
Enigma? Alguns meios de comunicaçom escondem dados, a publicidade empresarial oculta rostos, é verdade, mas será que tanto esforço por reclamar as energias renováveis deixou a nossa consciência tam limpa que nos esquecemos de pensar?
Artigo publicado no blogue pessoal do autor. Traduçom do galizalivre.com