(Imagem: El País) 1. Em 1919, o ferrolao Severiano Martínez Anido, militar de 52 anos, chegava à Barcelona da Restauraçom, chamado pola federaçom patronal, as forças vivas da cidade e a pujante direita nacionalista de Cambó, para se fazer cargo do governo civil. O objectivo declarado era ‘combater o pistolerismo’, segundo o nome que recebia em círculos do poder a acçom directa violenta dos anarquistas. A pretensom de fundo era banir a CNT, pontal dum movimento obreiro que mudara a correlaçom de forças entre classe obreira e capitalistas dum modo tam profundo, que mesmo fazia pensar no fim da sociedade de classes. Anido tomou possessom diante dos seus valedores com estas palavras:

‘Estivem em Cuba e Filipinas. Teria que estar em África. O governo envia-me a Barcelona e obrarei como se estou em campanha’.

Anido pulou pola sindicaçom obrigatória, integrando numha nova central obreiros e patrons, e antecipou o modelo corporativo do fascismo; impujo a censura telefónica, política e da imprensa, pola qual os meios nom podiam informar sem permisso das medidas contra o movimento libertário; lançou detençons massivas de obreiros sindicados, sob acusaçom de serem cúmplices com o ‘terrorismo’; impujo a lei de fugas, da que a imprensa nom podia dar detalhe, que consistia em tirotear militantes pola rua baixo o pretexto de se resistirem ao ‘alto’ policial; dispujo um corpo alegal de sicários que executavam extrajudicialmente líderes obreiros, como Salvador Seguí, e que mesmo tiroteou alguns cenetistas justo ao sairem de prisom; também se recriou em mostras públicas de crueldade e desprezo: no enterro de F. Layret, um advogado laboralista que socorria o sindicato, as cárregas policiais chegam a bater nos portadores do féretro e a deitarem o morto polo chao.

Anido recebia amonestaçons institucionais da esquerda moderada, e na ditadura de Primo de Rivera tivo que escuitar duras críticas do socialista Manuel Besteiro. Porém, umha parte importante da sociedade barcelonesa aderiu às suas teses, pois achava que a crueldade e a ditadura de facto eram a única receita ante o ‘terrorismo’ e o caos da luita de classes.

2. Três lustros depois, nos primeiros dias do golpe, Severiano voltava do seu exílio francês, ao que se vira abocado na jeira republicana e Franco punha nas suas maos o Ministério de Governaçom. Outro Martínez Anido, o seu neto, amossava orgulhosamente em 2014, em reportagem publicada no diário corunhês ‘La Opinión’, a carta de demissom do seu antecessor, e vindicava a sua fasquia mais tenra e mais humana. O veterano militar deixava o seu cárrego acusando duramente o ditador de propiciar umha repressom sem limites em território golpista. Os incontrolados impunham a orde à margem das autoridades policiais, dizia Anido, e chegavam a ajustiçar ‘personas principalísimas’. Temos razons mais que suficientes para duvidar de qualquer sensibilidade deste general, e para pensar que por trás da sua renúncia há outros motivos, mais ligados com as luitas polo poder que com a ética.

E porém, se algo surprendia este consumado repressor, é porque algo realmente novo estava a acontecer. As vítimas do poder nom eram já ‘seres humanos de segunda’, habitantes das colónias ou obreiros libertários. Como explicava em recente entrevista o historiador Xabier Buxeiro, ‘o acontecido em 1936 racha por completo com os modelos e ritmos que tinham acontecido nas décadas anteriores. Jamais passara umha cousa assim, jamais.’ Muitos militantes políticos e sociais, mais reformistas que revolucionários, rejeitaram fugir e defender-se num primeiro intre. Pola sua cabeça nom passava a ideia dum possível extermínio físico. Os centos ou milhares de representantes das classes médias, muitos em posiçom de poder, os mais de ideário moderado e alguns católicos praticantes, nom conceberam um cenário como esse nem nos piores pesadelos.

No juízo que condenou a morte a Alexandre Bóveda ficou testemunha desta visom das cousas, e da perda absoluta de qualquer sentido da medida política ou moral por parte dos repressores: Bóveda, que com toda lógica expunha o seu papel na defesa da legalidade republicana, era paradoxalmente acusado de ‘rebeliom’; e o galeguista, que de coraçom expunha as suas conviçons federais e o seu rechaço de todo arredismo, era culpável de ‘querer rachar Espanha’. Rivero de Aguilar, que se promocionou profissionalmente em processos como este, replicava assim ao dirigente do PG:

‘que quede claro que no se nos puede venir ahora con equívocos regionalistas. Lo mismo decían los catalanes para obtener su Estatuto, y sin embargo, señores del tribunal, fue claro su separatismo en la revolución de octubre, a la que por cierto el señor Bóveda estuvo adherido’.

3. A inícios dos 2000, nos parlamentos e cámaras representativas do mundo capitalista, no ronsel dos ataques do 11S, a questom da liberdade e dos direitos volveu submeter-se a consideraçom global. Longe da tam recorrida lenda negra hispana, dum passado de fraccionalismo, guerras civis, genreiras e discórdias, e cronologicamente mais perto de nós, topamos outra política e outros políticos. Um tom, como se diz hoje, calmo e nom crispado. Um dos seus representantes, bem afamado na outra banda do Atlántico, chama-se Michael Ignatieff. Foi líder do Partido Liberal do Canadá, novelista, guionista, apresentador de rádio, e hoje professor de Leis e Ciência Política na Universidade de Toronto. Em entrevista em ‘El País’, declara-se seguidor de Isaiah Berlin e defensor da sociedade aberta; compreensivo com o nacionalismo, se bem nom simpatizante, e inclusive partidário dumha achega ‘em chave de diálogo’ ao independentismo catalám, fenómeno de massas que, polas suas próprias palavras, ‘nom se pode obviar’.

Em 2005, Ignatieff deu a lume a obra ‘The Lesser Evil’ (O mal menor) para responder à pergunta, entre metafísica e política,‘como derrotar o mal?’. No século XXI, diz o autor, o mal encarna-se na forma de terrorismo, designadamente islámico, mas em qualquer caso ampliável a toda oposiçom fora da lógica democrática. Para derrotá-lo, Ignatieff propom partir do seguinte axioma: ‘derrotar o mal requer actuar fora da lei’.E do axioma desprende-se um decálogo de acçom tam claro como arrepiante: ‘a legitimaçom dum regime ou dumha força nom é o mesmo que a sua legitimidade’; isto é, por vezes é necessário derrubar estruturas que contam com apoio popular; ‘a acçom justificada pode causar danos a inocentes se isto evita um mal maior’; entre o repertório para perseguir os refractários à lógica democrática estám ‘a detençom massiva e indefinida, a tortura, a morte selectiva, sempre a partir da análise do custe-benefício’. Como remache, e para arredar a suspeita de qualquer deriva ditatorial, Ignatieff precisa que a ilegalidade é exercida por pessoas legalmente ratificadas: ‘a violência antiterrorista deve estar baixo o controlo de instituiçons livres e democráticas.’

4. Nesta semana que remata, conhecíamos que, via recurso da fiscalia, a perseguiçom legal contra Causa Galiza e Ceivar nom rematou nos tribunais espanhóis, e continuará nos próximos meses; inteiravamo-nos também de que um rapeiro comunista era enviado a prisom por utilizar a música como denúncia política; e víamos as imagens dumha rapaza que perdia um olho por um disparo policial depois de se manifestar na rua a prol da liberdade de expressom na arte e na política.

Os amantes da extrema precisom recordam-nos sempre que nom cumpre abusar da história em analogias arriscadas; que nom estamos no tempo em que as diferenças políticas se dirimem com sangue, que por muita força que a extrema direita mantenha no Reino de Espanha, o pluripartidismo marca a pauta, e que as soluçons de ferro de liberais como Ignatieff aplicam-se mais bem contra inimigos remotos, de outras latitudes e outras crenças. Congratulamo-nos de que o conflito político se civilize e reconhecemos como um logro que a polícia política ainda tenha algum limite na censura e na utilizaçom da violência. Mas queremos recordar também que os avanços sociais que nos fixérom mais pacíficos, fixérom-nos também mais brandos, mais ingénuos, mais propensos ao auto-engano. Tradiçons sinistras como a de Anido, como a dos genocidas de 1936, ou como a dos excepcionalistas do ‘mal menor’ seguem, cada umha com a sua força relativa, vivas e actuantes, dotadas de instituiçons, grupos mediáticos e sectores sociais de apoio. Todas elas, aliás, som minimizadas e desconsideradas por quem, por razons geracionais ou biográficas, ainda nom sofrêrom nenhuma rabunhada da tirania.

Por isso, quando o poder pete na porta dum amigo, dum companheiro, dum vizinho, ou de nós mesmos, o pior seria ficarmos congelados a pronunciar a velha consigna da impotência: ‘a mim nom pode suceder-me.’