Vivemos um carnaval suspendido, o mais estranho das últimas décadas pola alerta sanitária, e ante a tristura generalizada e o temor a perder esta festa ancestral da liberdade e o desabafo, é umha boa ocasiom para repassar os muitos atrancos que ao longo da história esta celebraçom, a popular por excelência, foi quem de superar para chegar até hoje em dia. Precisamente por superarem-se séculos de vigiláncia e censura ainda há quem hoje berra ‘viva o entruido’.
A relaçom do Entruido com o poder é conflitiva de velho, e também nas naçons baixo domínio do Reino de Espanha. Já em 1523, o emperador Carlos V proibia as máscaras e os disfraces em todos os seus domínios, sob condena de açoutes e desterro. Houvo, bem é certo, jeiras de maior relaxamento, mas a chegada dos Borbons impujo umha nova dureza, e existem quatro disposiçons de Felipe V (desde 1716, recém chegado ao trono, até 1745) que perseguiam a utilizaçom do disfraz e mesmo condenavam a galeras. Outros monarcas, como Fernando VI e Carlos IV, seguírom nesta linha.
Os últimos expoentes do absolutismo espanhol insistírom em banir a celebraçom popular à margem das autoridades e da Igreja. Fernando VII, um grande perseguidor das liberdades , ilegalizou-no; e após breves parénteses durante o domínio liberal, nom foi até 1831 quando a regente Maria Cristina o autorizou de vez.
Fascismo teme o entruido
Mas, dadas as singularidades autoritárias da história espanhola, o Entruido em liberdade nom ia durar muito mais dum século. Em fevereiro de 1937, o governador geral da ‘Junta Técnica do Estado’ (organismo de governo dos golpistas), Luis Valdés Cabanillas, ditou um bando precisamente em pleno Entruido. A orde ia dirigida a todos os governadores civis, e ordenava-se a suspensom das festas. Em tempos de guerra, afirmava-se, nom fazia sentido a alegria, ‘com a vida de sacrifícios que devemos levar, atentos apenas a que nada falte aos nossos irmaos que velando polo honor e salvaçom de Espanha luitam na frente’. E também ao rematar a guerra, em janeiro de 40, Serrano Suñer, ministro da governaçom, promulgou umha orde em que se mantinha a proibiçom.
Durante os longos anos da ditadura, o carnaval ficou nas margens da legalidade, e apenas puido sobreviver camuflado ou pervertido em círculos das classes abastadas. No rural, o controlo estatal era menor, e certas formas de lazer popular entroideiro subsistírom. Nalgumhas cidades e pontos do Reino de Espanha, o poder consentiu a permanência da festa mudando-lhe o nome polo mais inocente ‘festas de inverno’, e vigilando de perto este novo formato, evitando sempre que se formulasse qualquer crítica ao Estado. Nos círculos urbanos da burguesia e pequena burguesia, nomeadamente nos casinos, eram frequentes as festas privadas e as danças emascaradas (sempre sem tapar por completo o rosto), e sem nenhum conteúdo de sátira e desabafo.
Umha velha tensom com o poder
Para muitos pensadores, o Carnaval nom deixa de ser umha licença permitida ao povo, acoutada temporalmente, para este volver à ordem e submissom habitual no resto do ano. Sem embargo, e por muito de certo que tenha esta afirmaçom, também parece evidente que umha cultura milenária comunitária, mui difícil de descifrar polo poder e as suas elites, subsistiu no Entroido e penetrou na Idade Contemporánea. Mas na realidade, a desconfiança das classes dominantes com o carnaval arranca de bem atrás, e ainda que nom mediassem proibiçons políticas, a jolda entroideira sempre motivou inquietude no poder e nos seus intelectuais.
Assim o estudou o intelectual soviético Mijail Bajtin no seu clássico ‘A cultura popular na Idade Média e no Renascimento’, que descobriu que quanto menos desde a Idade Média existia umha espécie de ‘segundo mundo’ à margem da seriedade e o protocolo eclesiásticos, onde o riso, a participaçom anónima, a celebraçom dos ciclos da vida e a morte e fazia ‘à margem de todo dogmatismo’. A sua manifestaçom por excelência era o Carnaval, e a máscara, que logo virou símbolo de ocultamento ou do sinistro, era a sua bandeira: ‘um riso que exalta e critica a um tempo, umha celebraçom de vida e morte, um caos sorrinte’, deixou escrito Bajtin. E nom só o poder eclesiástico ou nobiliar sentiu desconforto com esta cultura inclassificável e dificilmente governável, senom que também a intelectualidade progressista e romántica, desde o Romantismo, quijo distanciar-se deste modo de celebrar a vida.
Nom é difícil descobrir nestas pinceladas de Bajtin muitos dos traços do tesouro do Entroido galego, nomeadamente aquele que subsiste, de origem incerta e discutida, no triángulo do Maciço Central.
Nem mercado, nem polícia, nem aplausos
Neste portal temos reproduzido a completa entrevista que o jornal ‘O Sil’ fazia há mais dum lustro ao pensador Emilio Arauxo, um dos grandes estudiosos do nosso Carnaval.
O erudito galego reivindicava o entroido como ‘umha celebraçom fundamente igualitária que cria memória, e que em jeiras de desamparo como é malfadadamente a nossa, dá ánimo.’
Arauxo, polas suas próprias palavras, descobrira o Carnaval de Vilarinho de Conso de maos do histórico etnógrafo Xaquín Lorenzo ‘Xocas’, e desde aquela ficou fundamente impactado. Mas sem privilegiar nenhuma das suas manifestaçons, é no conjunto do nosso Entroido onde Emilio Arauxo pom a sua vista, recordando que cada comarca e paróquia ‘acolhe umha singularidade irrepetível, assombrosa, tremendamente inovadora e cheia de promessas de criatividade.’
Ainda longe das lógicas económicas que dominam as mais das nossas festas, Arauxo recorda que o Entroido galego é um espaço ‘sem mercado, sem polícia, sem aplausos. É a questom do utopismo, no Entroido assistimos ao que poderíamos chamar a imagem dum povo reconciliado, a umha espécie de utopia ou ideia reguladora. A utopia na que vês que é possível, como dizia Uxio Novoneyra, outra cousa.’
Neste ano, com a sociabilidade suspensa e a populaçom apavorada pola crise sanitária e económica, a celebraçom milenária esmoreceu, mas a riqueza do Entroido galego lateja à espera de vir de novo à tona. Ursos, pantalhas, peliqueiros, generais, merdeiros, felos…virám de novo a celebrar o fim do inverno.