Jorge Riechmann
Se formos capazes de racionalidade coletiva…
A Grande Aceleraçom na segunda metade do século XXI levou a se ultrapassarem os limites (overshoot ecológico na década de 1980, aproximadamente). Esse choque das sociedades industriais contra os limites bio-físicos do planeta, esse excesso, é o tema do nosso tempo.
“É hora de parar”, dixo-nos o visionário artista canário César Manrique em 1985. Mas nom parámos, polo contrário: aceleramos ainda mais… Em 1986 afirmava desde a sua ilha que “Lanzarote está a atingir os limites, desbordada no número de viaturas e turistas…”. Mas, desde entom a populaçom residente da ilha quase triplicou (de 57.000 habitantes para 150.000) e o número de turistas anuais multiplicou por mais de seis (de 450.000 para mais de três milhons. E assim como neste microcosmo das Canárias, no mundo do capitalismo globalizado como um todo. Em troca de parar, ou mesmo desacelerar um pouco, o capitalismo fóssil acelerou ainda mais.
A resposta racional à crise ecológico-social –se fôssemos capazes de racionalidade coletiva– é a auto-contençom em todos os níveis, o “melhor com menos”. Metamorfose e autoconstruçom decrescentista para evitar o colapso para o qual estamos fatalmente caminhando (ou polo menos o pior dele).
Pode-se dizer assim: no passado, cada grande transformaçom (revoluçom) no modo de produção – a começar pola Revoluçom Neolítica – aumentava a quantidade e a densidade da energia utilizada polo ser humano. O que precisamos agora – e com extrema urgência – é o oposto: usar menos energia (e, portanto, viver em média com menos bens e serviços, mais localmente e mais devagar). Isso supõe empobrecimento, no sentido importante da palavra “empobrecimento” – embora desçamos de um ponto tam alto, em países super-desenvolvidos, que poderíamos diminuir muito e ainda viver bem em termos materiais.
O discurso do decrescimento “feliz”
Albert Recio insistiu durante anos que algo que está faltando em todos os movimentos críticos contra o capitalismo é “o desenho provisório (mas orientador e minimamente credível) de algum projeto de sociedade viável e desejável”. Mas nom encontramos aqui uma espécie de aporia? Se for viável, no mundo real do overshoot ecológico que exigiria uma resposta auto-contida (cujos aspectos menos atraentes consistem em contraçom e empobrecimento), nom é desejável (para indivíduos socializados no capitalismo como nós); e se é desejável, nom é viável (em termos de sustentabilidade).
Falamos sobre “transformaçom verde” ou “transiçons ecológicas”, e isso soa bem. Mas devemos ter a coragem de chamar as cousas polo nome: sem nos enganarmos a nós próprios, isso significa empobrecimento.
O discurso do “decrescimento feliz” nom é enganoso, mas falha em apontar algo importante: usar menos energia significa fazer menos. Menos atividades do que apreciamos agora: turismo e viagens, sem ir mais longe. Para as sociedades viciadas na satisfaçom compensatória do consumidor, esse é um problema sério. “Nós viveríamos melhor”, é verdade – mas somente se uma mudança cultural concomitante nos permitir um Umwertung aller Werte (diríamos com Nietzsche), uma metamorfose axiológica que coloca a lentidom, a sobriedade, a espiritualidade e o amor no auge dos nossos valores .
Aporia
Aporia: as possíveis políticas intramuros da cidade humana (o Green New Deal de Alexandria Ocasio-Cortez, junto com Emilio Santiago Muíño e Héctor Tejero com seu livro O que fazer em caso de incêndio ?, ou a transiçom energética de Joaquim Sempere em As cinzas de Prometeu, ou as propostas de “crescimento verde” de Robert Pollin: todas som variantes da mesma alta tecnologia “100% renovável” a todo vapor) e nom implicam a reduçom acelerada das emissons de efeito estufa que precisamos, nem permitem que a maioria dos combustíveis fósseis que ainda existem sejam deixados no subsolo. Estas medidas nom som propícias para mitigar a tragédia climática ou desacelerar a Sexta Grande Extinçom. Para a “transiçom 100% renovável” no quadro da “prosperidade” capitalista (ou seja, sem aceitar um empobrecimento eco-socialista), “precisaríamos de décadas de investimento e de todo o petróleo que pudermos obter (…) para o simples facto de construir os sistemas alternativos necessários exige um grande dispêndio de energia ”.
E as políticas necessárias do ponto de vista de Gaia (mas também do interesse humano geral além do presente imediato que leva ao colapso), isto é, aquelas defendidas por movimentos de decrescimento ou o meu ecossocialismo descalço, implicam um empobrecimento coletivo igualitário deliberado. .. isso os torna aparentemente impossíveis na cidade humana.
O que é ecologicamente necessário é cultural e politicamente impossível. E o politicamente possível nom sai da trajetória mortal em que nos encontramos: ecocídio mais genocídio. O que tem potencial de maioria nom nos tira do atoleiro ecológico. (É o modelo do bêbado procurando as chaves embaixo do poste, na piada). E o que nos tiraria do atoleiro ecológico nom tem potencial de maioria …
E para completar a aporia: em todo caso, o empobrecimento coletivo é inevitável (polo esgotamento dos combustíveis fósseis), mas tudo indica que cairemos nele da pior maneira: no mundo hobbesiano que já se prenuncia hoje.
Empobrecimento voluntário ou barbárie
Vamos nos empobrecer coletivamente. O caminho de descida da energia em que estamos, garantido polas leis da termodinâmica, leva a esse resultado. Segundo o físico Antonio Turiel, um dos maiores especialistas em energia em nosso país, uma estimativa realista do potencial máximo que as energias renováveis podem fornecer estaria entre 30 e 40% do consumo mundial atual. Ele argumenta que uma transiçom energética para as renováveis implica necessariamente travar o crescimento e, portanto, caminhar para economias de “estado estacionário”, incompatíveis com o atual sistema socioeconómico. Além disso, insiste Turiel, tal transiçom exigiria, no mínimo, três décadas de um esforço comparável a uma “economia de guerra”, que eliminaria toda atividade supérflua e concentraria todos os recursos económicos nessa transiçom.
Assim, pode-se conjeturar que uma transiçom para “100% renovável” só teria sucesso se fosse uma saída igualitária do capitalismo e uma contraçom de emergencia, reduzindo drasticamente o nosso uso de energia – condiçons que, infelizmente, nom parecem estar ao nosso alcance.
Hoje, em um único dia, consumimos cerca de 7.000 anos de acumulaçom fotossintética que levou à formaçom de combustíveis fósseis. A medida que vai consumindo-se o vasto tesouro fóssil que tornou possível dous séculos de crescimento económico acelerado, as ilusons se desvanecem. Ao mesmo tempo, os efeitos climáticos dessa acumulaçom de carbono fóssil ameaçam com acabar com a espécie humana e tornar o planeta inabitável para a maioria das outras espécies com as quais o compartilhamos hoje.
Termodinâmica básica, ecologia e um planeta cheio de re-alimentaçons: iremos tornar-nos mais pobres coletivamente, seja por bem ou por mal. E “para o bem” (de forma deliberada, racional e igualitária, isto é: com o ecossocialismo e o ecofeminismo) é quase inimaginável hoje.
Além disso, qualquer política séria para enfrentar o aquecimento global implica empobrecimento material, de duas maneiras: deixando a maior parte dos combustíveis fósseis ainda existentes hoje no subsolo e desviando enormes recursos de investimento para a nova infraestrutura de energia renovável, que nom pode permitir-nos usar energia de mais.
Como mencionei antes, em um segundo momento, atendendo aos mestres de tantas culturas (epicureus, estóicos, cristaos, budistas, taoístas, etc.), podemos insistir em que viver com menos materiais e energia (com menos riqueza exergética) nom significa necessariamente viver pior, se formos capazes de agir racionalmente sobre nossos desejos, objetivos e prioridades (o programa de reforma intelectual e moral). Mas desse ciclo de re-alimentaçom decisivo (auto-contençom racional) seremos coletivamente capazes? A sociedade nom quer nem ouvir falar de perspetivas sombrias, ou seja, aquelas que se encarregam da realidade, da nossa situaçom como é hoje. Assim, já no final da segunda década do século do Grande Teste, parece impossível construir maiorias sociais dizendo a verdade.
Penúltima estaçom: a tragédia do aquecimento global novamente
Vamos pensar, para simplificar, apenas na tragédia do aquecimento global (o maior sintoma de tudo que está dando errado nos nossos sistemas socioeconómicos). “A probabilidade de qualquer gelo permanente permanecer no Ártico após 2022 é essencialmente zero”, di James Anderson, um dos principais climatologistas do mundo. Aqueles que entendem alguns dos feedbacks positivos do sistema climático e da liberaçom de metano e dióxido de carbono associados ao derretimento do permafrost sabem o que isso significa: destruiçom e morte em grande escala. Um aumento de 3ºC (acima das temperaturas pré-industriais) pode ser alcançado já em 2050 se as emissons de GEE nom forem vigorosamente mitigadas. A professora Manola Brunet (presidente da Comissao de Climatologia da Organizaçom Meteorológica Mundial) estima que é bem provável que cheguemos aos 2ºC em 2035-2040 (ela também destaca que, segundo vários pesquisadores, o calor já armazenado nos oceanos como efeito das emissonss de GEE som suficientes para pular as próximas duas eras glaciais).
E aquele limite de 2ºC estabelecido nos Acordos de Paris de 2015 (COP 21) é provavelmente “um ponto sem retorno em relação aos pontos de inflexom”. Mas mesmo cumprindo a meta de 1,5ºC ou 2ºC de aumento de temperatura em relaçom aos níveis pré-industriais, o risco de uma fervenza de feedbacks (colapso da floresta amazónica, descongelamento do permafrost, decomposiçom de hidratos de metano no Ártico, aumento da respiraçom bacteriana marinha, perda das calotas polares ou mudanças na circulaçom do oceano) poderia empurrar o sistema terrestre para um estado inabitável de “Terra estufa” (hothouse Earth).
Apenas uma mudança sociotécnica e económica revolucionária em cinco anos, pensam pesquisadores como James Anderson, poderia evitar o resultado catastrófico (e ele acrescenta: usando a geoengenharia também). Mas as nossas sociedades basicamente olham para o outro lado, e as elites político-econômicas som niilistas em um grau difícil de assimilar. O cálculo de algumas pessoas muito proeminentes em Silicon Valley é o seguinte: haverá ecocídio mais genocídio – eles já consideram isso garantido – mas alguns super-homens sobreviverám na Terra devastada, e eu, que som super rico, estarei entre eles (indicam).
E na verdade há que conjeturar que as elites governantes, em todo o mundo, som orientadas de acordo com essa perspectiva. (Elites que, como sabemos, aumentaram obscenamente a sua riqueza nas últimas décadas, aquela fase do capitalismo que costumamos chamar de neoliberal: hoje apenas 62 pessoas tenhem a mesma riqueza que metade da populaçom mundial, cerca de 3,8 bilhons, com números 2016.) Como Bruno Latour apontou nos últimos anos, o fascismo da década de 1930 “tinha uma ideologia e um projeto explícito de transformaçom, mas nom há nada disso por trás dos slogans do grande campeao da negaçom, o ideólogo de Trump, Steve Bannon, que é um intelectual de quarta categoria. A grande diferença entre as políticas reacionárias de entom e de agora é que elas som apenas um movimento de fuga para libertar as elites de qualquer constriçom no seu caminho para a hipermodernidade ”. Essas elites niilistas construíram um plano que pressupom o extermínio da maior parte da espécie humana e busca uma separaçom (“velocidade de escape”, diríamos com uma imagem poderosa de astronáutica e ficçom científica) que é “uma mistura de biotecnologia, inteligência artificial, hiper modernismo e exploraçom espacial. Um lugar pós-humano para se esconder sem ser despedaçado polos pobres ”.
Apenas os sociopatas niilistas podem deixar de ver uma hedionda distopia nisso. Mas nós transformamos aqueles sociopatas niilistas em heróis culturais …
Ainda nom é tarde?
Hoje há um grande debate entre aqueles que argumentam que “o tempo está a se esgotar” (mas “nom é tarde demais”) e aqueles que pensam que para muitas questons decisivas “o tempo acabou”. Para nom deprimir e desmobilizar os militantes, depois de darem as más (e piores) notícias, os primeiros insistem que nom é tarde (título de um valioso livro de Andreu Escrivà sobre o aquecimento global). Assim, por exemplo, Héctor Tejero, após relatar os desastrosos desenvolvimentos no degelo da Groenlândia: “Nom, ainda nom é tarde para evitar as piores consequências das mudanças climáticas, mas devemos continuar a resistir e empurrar, cada um na sua trincheira , na defesa da transiçom ecológica contra a crise climática ”
Mas, num processo que está constantemente piorando e sobre o qual devemos ter algum controle, “nom é tarde demais para evitar o pior” é mero truísmo. Parece uma frase informativa, mas nom é: sempre será trivialmente verdadeira (sempre haverá um estado ainda pior que acreditamos poder evitar, polo menos até a extinçom total da espécie humana). A questom, para mim, é que haverá limiares transpostos sobre os quais viver nom fai mais sentido (embora só se poda enunciar tal frase na primeira pessoa).
Ojalá as cousas fossem mais fáceis. Mas, por tudo isso, acho que hoje nom seria o momento de pensar em transiçons (ordenadas e graduais), de acordo com o paradigma do desenvolvimento sustentável (os ODS da ONU) ou o Green New Deal … As alternativas som antes SOCIALISMO OU BARBÁRIE, REVOLUÇOM OU COLAPSO. O que precisamos é uma contraçom económica de emergência, juntamente com uma renaturalizaçom massiva do planeta Terra – eu defendim isso no Ecossocialismo Descalço.
As verdades insuportáveis
As “verdades incómodas” tornaram-se verdades insuportáveis- e nom podemos suportá-las.
E entom cruzamos os braços? Nom, mas é preciso pensar noutras formas de açom (e contemplaçom) … Talvez algo como uma política do impossível, e uma ética do impossível (com todo o peso que algo assim supom: estou bem ciente de isto). Mais na linha do que a Extinction Rebellion (no nosso país, Rebeliom contra a extiçom) está tentando: uma estratégia de desobediência civil massiva, que provavelmente fracassará (porque, como Emilio Santiago Muíño assinalou em mais duma ocasiom, “nom existe nenhuma Grande Tarde Ecossocialista ou Dia Zero ou conversom cultural instantânea ”), mas polo menos está em linha com o que deve ser feito.
A mente moral humana é essencialmente uma mente tribal, como a psicologia moral evolucionária nos mostra. A frase mais terrível em Mind of the Righteous, o livro importante de Jonathan Haidt, é esta: “Seria ótimo pensar que os humanos foram feitos para amar a todos incondicionalmente. Maravilhoso, mas bastante improvável duma perspectiva evolucionária. O máximo que podemos alcançar é o amor paroquial – amor dentro dos grupos – amplificado pola semelhança, um senso de destino compartilhado e a supressom dos free-riders”. Se essa fosse a última palavra, se pudéssemos aspirar ao amor dentro do endogrupo (e à competiçom destrutiva com outros grupos), estaríamos realmente perdidos: na era das armas de destruiçom em massa e da tragédia climática, continuar com luitas competitivas entre Estados-naçom e megacorporaçons certamente levariam-nos ao desastre total.
Em um sentido importante, a ética começa precisamente além dos nossos grupos primários, e a tarefa essencial (desde Axial Time, Achsenzeit de Karl Jaspers) é a superaçom da moralidade tribal. Como já salientei em inúmeras ocasions, o passo difícil nom é “de mim para nós”, mas do nós reduzido (os grupos primários) ao nós expandido, para além do tribalismo. Impossível? Assim nos convoca a parábola do Bom Samaritano, interpretada com mestria por Iván Illich.
Somos capazes de auto-contençom?
Mudar regras económicas, práticas sócio-políticas, valores éticos. Sim, sabemos que devemos, porque as sociedades industriais de hoje som absolutamente inviáveis. Mas quantas pessoas sabem disso? E quantas pessoas acreditam no que sabem? (Bem, como sociedade, nom acreditamos no que sabemos.) E, finalmente, quantos estám realmente dispostos a virar a meia da insustentabilidade do revés?
A grande questom sobre a civilizaçom humana é: Somos capazes de auto-contençom? Essa é a questom ético-política básica.
“Susto ou morte”, avisam as crianças naquela festa americana importada que já conheces. Nom preciso que ninguém me lembre de que é uma alternativa pouco apetitosa. Mas qualquer sociedade com um mínimo de racionalidade coletiva preferiria o susto (apesar da bebida inicial ruim) à morte.