B. é um vizinho dumha pequena vila interior que ganha a vida de alvanel e para-me um dia pola rua, depois de identificar o meu carro como um dos pouquíssimos que levam o colante ‘GZ’ acarom da obrigada matrícula espanhola. ‘Eu som nacionalista’, di-me em tom confidencial. ‘Na casa tenho a bandeira da estrela na parede, e o escudo da sereia. No carro prefiro nom levar nada, nengum distintivo, porque sabes? Aqui a gente fala, e depois em funçom de como penses actua assi ou asá, e dam-che trabalho, ou se cadra nom cho dam. Claro que se por mim fora, eu levaria o GZ ou o que fixera falta.’

J. é ex-companheiro na Universidade de Santiago de Compostela. Militava em várias frentes e participava afervoado em todos os debates dos 90, nos fundamentais, nos secundários e também nos inúteis. Mais um dos tantos galeguistas apaixonado pola língua, dominava várias normas ortográficas quando nós ainda inçávamos de gralhas os nossos panfletos em AGAL. Com o tempo, volcou os seus talentos à literatura, e desde os livros promove a causa galega. O seu êxito é, porém, agredoce: ‘agora já escrevo quase todo em ILG, nom sendo cousas pessoais que ficam no privado. Para publicar, nom sabes? Porque é umha derrota se os nossos textos nom passam dos fanzines e redes sociais, nom saímos da marginalidade. Claro que eu som reintegracionista, mas tampouco podes ir de cabeça…a ver se agora com a proposta de binormativismo…porque se eliminassem a censura, eu escreveria todo em português.’

P. é um conhecido da adolescência. Quer a Galiza à sua maneira, intensamente, mas pensa que associar a sua defesa com agitaçons de rua, minorias subversivas e utopias políticas arreda a maioria do nosso ideário. ‘Num país conservador como o nosso, esse caminho está blocado. Há que ir a algo mais transversal, além da direita ou da esquerda, e sobretodo amável, e que fale de benefícios económicos, como fam os cataláns’ Curioseou como internauta em toda quanta iniciativa de galeguismo liberal se fabulou, e mesmo assistiu presencialmente a alguns cônclaves que pretendiam relançá-lo. ‘Nada, isso nunca dá arrancado, sabes? Muitos egos. Ora, eu se se pugesse gente seria, de novo, eu estaria.’

G. é independentista e, ao contrário que o anterior, acredita que só colocando a questom galega com toda afouteza, sem médias tintas, podemos avançar. Também crê que só os mais oprimidos desta sociedade vam ir a sério por um movimento social e político que mude as cousas. ‘O outro som todo jogos de poder’, diz. Peregrinou por várias organizaçons arredistas, das que saiu sempre traumado por umha série inacabável de conflitos e cisons, e deixou todo o activismo para se concentrar na vida privada. Ainda espera, mentres lhe medram as canas, por um agente imprevisto, ou umha fórmula inédita, que transforme o chumbo em ouro: ‘si, eu sei que andades aí, trabalhando, mas perdoa-me, é o puto rolho de sempre. Eu se houvesse garantias de algo sério, aí me implicaria.’

Todos eles som casos reais, dos que omitimos nomes e dados mais precisos por respeito à intimidade. A qualquer leitor lhe resultariam familiares, pois som quase tipos sociológicos do movimento galego. Sem defenderem a mesma ideologia, partilham várias cousas: numha sociedade como a nossa, que confia na salvaçom individual, andam a contracorrente e cifram parte do sentido da sua vida numha causa colectiva; na confusom dominante, tenhem ideias mui claras, mesmo podemos dizer claríssimas, sobre o que deve ser feito. Mas por cima de todo, o que partilham é a utilizaçom recorrente do condicional: ‘seriam’, ‘fariam’ e ‘estariam’ se algum factor alheio a eles, um elemento que foge por completo ao seu controlo, resolve o elemento de bloqueio.

Há cinco décadas, o psicólogo estadounidense Abraham Maslow falou do ‘complexo de Jonás’. Para explicá-lo, nas aulas perguntava aos seus alunos quem se imaginava no futuro sendo um grande novelista, um músico, um desportista, um trabalhador especializado ou um líder. A resposta, invariavelmente, eram risos nervosos, intercámbio de olhadas de esguelho ou cabeças baixas. A seguir, o professor inquiria: ‘e se nom és tu, quem o vai ser?’

A pergunta nom provocava rechaço aberto, senom mais bem umha incomodidade íntima. A razom era que apontava certeira a umha aspiraçom que todas as pessoas levamos no celme: um sentido de poder ser, apesar de todos os nossos complexos e misérias, úteis, valiosas, autoras de contributos ao mundo que nos rodea. Na tradiçom protestante, esta arela de melhora tem-se canalizado para a concepçom da própria carreira profissional como achega à sociedade, o chamado ‘egoísmo altruísta’; em países de tradiçom católica onde assentou umha forte cultura de classe, e que, como o nosso, enfrentam por cima um processo de assimilaçom nacional, esta concepçom do melhor dum mesmo nunca se puido deslindar do serviço à causa; da noçom de volcar saberes, destreças e património pessoal no mundo comunitário que nos ampara e nos transcende. Todas as biografias dos melhores homens e mulheres do nacionalismo translozem esta fusom indestrutível entre vocaçom pessoal e serviço colectivo, entre cultivo apaixonado dos talentos individuais e desenvolvimento destes no seio do grupo. ‘Se tirades todo o que de galego há na minha obra -deixou escrito Castelao- nom ficaria nada’. Que debuxante, médico, narrador, ensaísta e político ficaria em pé no de Rianxo se por trás nom existisse um galeguista e humanista?

Mas por que ‘complexo de Jonás’? Maslow, um socialista moderado de origens judeas, possivelmente se empapara da tradiçom religiosa familiar, e lembrava-nos que Jonás era aquele profeta surdo e testám que umha e outra vez ignorava os chamados do seu deus a desempenhar umha alta missom, polo que foi duramente condenado a naufragar e viver no ventre dum peixe monstruoso por três dias e três noites. Ainda como ateus ou agnósticos pouco familiarizados com a Bíblia, captamos a alegoria: depois de assegurarmos as exigências vitais mínimas da comida e o acobilho, da relativa segurança e dum certo aprezo dos demais, há algo que nos chama: os anglosaxons nomeam-no exactamente assim, ‘calling’, e nós utilizamos o termo ‘vocaçom’. Quem escuitasse este chamado dirá-nos que se sente num estado mais elevado que quem habita no prazer sensual ou na pura subsistência biológica, esse que os mitos descrevem como ‘divino’. E quem fixesse orelhas moucas a este apelo, saberá o que quer transmitir a narraçom com a imagem da negrura impenetrável que viviu Jonás quando a balea o devorou.

Desouvir a voz nom é irracional e certamente leva a avantagens mui palpáveis. Como todo conservadurismo, apoia-se na força dos logros contra as ensonhaçons, do costume contra a experimentaçom, da familiaridade contra a estranheza; ora, por trás das avantagens também se podem identificar frutos impensados. Na psicologia, o complexo de Jonás transloze-se numha especial inclinaçom ao negativo: por vezes dá lugar a estados de ánimo mórbidos e à recriaçom na cara escura da vida, mesmo se o indivíduo nom foi alcançado pola desgraça; outras aparece como hostilidade contra a a gente e vontade de discórdia; ainda, em ocasions manifesta-se como autocomiseraçom e publicidade impúdica das carências próprias, a clássica bandeira do vitimismo que tantos galegos tenhem ondeado.

Estes comportamentos viram mais e mais intensos quanto maior é o grau de irresponsabilizaçom própria com os destinos colectivos, e é por isso que na Galiza nos sona tanto a melodia, ainda sem sermos quem de identificá-la com um nome. Quando nos decidamos a reconquistar cada umha das nossas vocaçons de serviço -por modestas que estas forem- notaremos umha força de novo tipo, e provavelmente umha felicidade que temos esquecido.