Como tantos outros filhos dos bairros obreiros dos 70, Ramiro Vidal pertence a essa geraçom que se politizou de muito nova, abraçando a causa galega e a nosso idioma num meio crescentemente espanholizado. Militante do independentismo desde os anos 90 e autor dumha variada obra poética, escrita sempre em grafia histórica, conversamos com ele sobre as últimas duas décadas de luita nacional, sobre o papel da literatura na Galiza, e sobre as perspectivas de futuro para os movimentos populares.

Para começar, Ramiro, a jeito de pinceladas, podias-nos dar-nos alguns dados biográficos relativos à tua primeira politizaçom e contacto com as letras galegas?

Nasci em Ferrol em Março de 1973. Sou filho de família operária; o meu pai trabalhou no setor naval e também na banca. A minha mai trabalhou no serviço doméstico, como jornaleira nas plantações de lúpulo, de canteira, também teve um posto de frutas e produtos da horta no Mercado Municipal de Perilho (Oleiros) A minha primeira infância transcorreu entre dois núcleos operários importantes da comarca de Trasancos; o Alto do Castanheiro, em Narão e Carança, em Ferrol. As origens da minha família estão entre a Terra Chã, onde nasceu a minha mai (Labrada, Guitiriz) e as contornas de Betanços (Mântaras, Irijoa) onde nasceu o meu pai, e cresceu a minha mai. O meu pai durante toda a sua infância passou o curso escolar em Ferrol e os verões em Mântaras. Praticamente desde os nove anos até os catorze vivi de perto o conflito derivado da crise do naval dos anos oitenta. No ano 87, quando o meu pai entra a trabalhar em Caixa Galicia, deslocamo-nos a morar em Oleiros, perto da Corunha, onde ainda resido.

Eu entro a militar em Galiza Nova aos 18 anos, depois de ter colaborado com os Comités Abertos de Estudantes, com os que contatei nas mobilizações contra a primeira Guerra do Golfo Pérsico. Daquelas também colaborava com o Colectivo Ecoloxista e Naturalista Biotopo. Mais tarde, entro em contato com o primeiro núcleo da AMI, a AMI de antes da assembleia constituinte em Bueu, na que também participo. Também fiz parte da Assembleia Popular da Comarca da Corunha, estive no Processo Espiral, que deu origem a NÓS-Unidade Popular, onde militei até que desapareceu, de facto estive presente na maioria das suas direções nacionais.

A nível artístico, fiz parte do coletivo A Porta Verde do Sétimo Andar; acho que é o parachuvas artístico mais sério e duradeiro no que terei participado, e quase te diria que o único verdadeiramente ressenhável. Estive noutros que fizeram aparição com muita força e muita ilusão e que desapareceram fundamentalmente pela colisão de egos, o que me faz ser ultimamente bastante desconfiado a respeito de iniciativas coletivas, ainda que obviamente têm o meu respeito.

Poetas com @s que tenho partilhado microfone, há muitos. Muito frequentemente com Alberte Momán, Álex Casal Dosil, Laura Rey, Clara Vidal, Moncho Bouzas, Manuel López Rodríguez, Luís Maçás…ocasionalmente também com Ramón Blanco, Suso Bahamonde, Mário Herrero, Alfredo Ferreiro, Pedro Casteleiro, Charo Lopes, Concha Rousia, Iolanda Aldrei, Emma Pedreira, Susana Arins…Isto sem esquecer aos companheiros e às companheiras da Porta Verde do Sétimo Andar; Xurxo Fernandes, Alfonso Láuzara, Alba Méndez, Pili Mera, Manolo Pipas, Miguel Ángel Alonso Diz, ou ex-membros deste coletivo como asirmãs Rosa e Cruz Martínez

Também com músicos como Miguel Alonso, Xosé Constenla, César Morán, Paris Joel, Pedro Campos, Raquel Capote, Pepe Chas, O Leo & Arremecághona, Manolo Bacalhau, Baking Blues Band, Zënzar, Menina Arroutada, 400 Golpes ou García MC

Participei em várias edições coletivas de poesia e narrativa. Livros individuais, tenho por enquanto três: “Mares de Queijo”, “Letras de Amor e Guerra” e “Origem e Ruptura”

Podias-nos dizer como chegou o teu interesse pola literatura galega? Tem a ver com um processo de politizaçom ou de defesa da língua?

Sempre tive predisposição a contar, relatar, expressar. Mas esse interesse pela expressão escrita cresce em paralelo com o interesse pela política. Eu cresci num ambiente politizado na minha primeira infância, porque o meu pai, até que eu tive oito anos, mais ou menos, militou no PSG.Também o meu tio (o homem da irmã do meu pai) militava na mesma organização, além de outros amigos dele, com cujos filhos tenho brincado…por seu turno, eu cresci vendo na televisão a guerra do Líbano, os conflitos armados na América Central, as mobilizações contra a ditadura de Pinochet no Chile, contra o Apartheid na África do Sul…eu mamei política.

“lembro como importantes na conformação da minha consciência dois mestres do Colectivo Avantar: Ánxela Loureiro e Xosé Lastra Muruais”

Na minha casa, além disso havia livros de todo tipo porque especialmente o meu pai era um grande leitor. “Memorias dun neno labrego”, “Xente ao lonxe”, “O silencio redimido” e outros títulos notáveis da narrativa galega foram passando pelas minhas mãos. Com a poesia, tive os meus primeiros contatos na escola. E lembro como importantes na conformação da minha consciência dois mestres do Colectivo Avantar: Ánxela Loureiro e Xosé Lastra Muruais. Tinham uma maneira de explicar, de aproximar-te ao que diziam vozes poéticas como as do “Rexurdimento” ou outros autores como Celso Emilio Ferreiro ou Ramón Cabanillas, por exemplo, que te faziam sentir como próprio o que estavas a receber. E, poderá resultar chocante ou não, mas não sendo reintegracionistas de prática, prenderam em boa medida o que foi a primeira chama da minha consciência reintegracionista.

Que tentas reflectir nas tuas obras? Pesa mais a denúncia social e a vontade de transformar a realidade ou é apenas umha forma de expressom de tipo pessoal ou íntimo?

Há uma evoluição, porque nos dois primeiros poemários individuais há reflexão de tipo político, há também bastante épica anti-sistema, há reivindicação cultural, e no terceiro há mais subjetividade em certas partes do livro, ainda que também da experiência pessoal se tiram conclussões para o político. O pessoal tem a sua dimensão e a sua leitura política. Quando eu escrevo “Origem e Ruptura” intento satisfazer a necessidade pessoal de passar revista a acontecimentos traumáticos, como a morte da minha mai, mas ao mesmo tempo ponho-o em paralelo com outros processos de ruptura e volta às origens para ressurgir. Isto, politicamente, acho que o posso aplicar a muitas coisas.

Qual é a saúde da literatura galega, particularmente da poesia? O processo de institucionalizaçom das últimas décadas foi beneficioso ou prejudicial?

Há muita gente que faz, ou pretende fazer poesia…se queres fazer um encontro poético, tê-lo fácil, porque encontrarás muita gente disposta a participar. Os estilos e as qualidades são diversos, é o que posso dizer. Mas também é certo que provavelmente isso de que há mais poetas do que leitores de poesia seja mais do que um tópico. De todos os jeitos acho que da minha geração e da posterior há vozes poéticas diversas e interessantes. A segunda parte da pergunta, no que se refire à língua é óbvio o fracasso…que no ano 2021 não se venceram os preconceitos sociais contra o galego que havia nos anos setenta e oitenta, já o diz tudo. Quanto à literatura? O que se esteve a desenvolver nas últimas décadas é um sistema onde o que dava cartos era a edição subvencionada. Agora @s que escrevemos e @s que editam vamos ter que procurar outras formas de trabalhar. Noto que há gente que ainda não o assumiu, ainda que quem quiser não morrer no marasmo, terá que adaptar-se aos novos tempos.

“provavelmente isso de que há mais poetas do que leitores de poesia seja mais do que um tópico”

Acho também louvável o labor de projetos independentes como M editora do Alberte Momán, ou Acha Escrava do Manuel López Rodríguez

Algumas vozes poéticas que poderia destacar; eu gosto bastante da gente com a que colaboro…devo confessar, não sei se isto é positivo ou não, que ultimamente sou bastante mais seletivo a respeito da gente com a que trabalho do que de uns anos para acolá. Por mencionar alguns nomes, Pedro Casteleiro, Mário Herrero, Alberte Momán, Laura Rey, Emma Pedreira, Manuel López Rodríguez, Ramón Blanco, Clara Vidal, Lucia Aldao e Maria Lado (tanto juntas no seu projeto musical como por separado) Iolanda Aldrei, Rosa Enríquez, Igor Lugrís, Kiko Neves ou Séchu Sende

Achas que a literatura galega tem ainda a dia de hoje um papel nacional conscienciador, como o tivo desde sempre, ou isto tem mudado?

Não estou tão em contato direto com a juventude como para saber qual é a relação dos adolescentes de hoje em dia com a literatura. Tenho a sensação, mas isto só observando a minha contorna mais imediata (ou seja, as minhas sobrinhas) de que há menos predisposição a lêr. A gente nova que escreve também não tem tanta predisposição cara a política, ainda que também haja quem escreve textos com conteúdo político.

Acho que na juventude a poesia pode penetrar a travês da música. A cultura hip hop tem como uma prática já naturalizada resgatar poesia de outros tempos. Nesse sentido, essa reivindicação que faz o García MC do Celso Emilio Ferreiro, ou as citas poéticas de autores galegos e latinoamericanos dos Ezetaerre, algum projeto do Malvares de Moscoso no que se rapeam coisas de Lois Pereiro ou Carvalho Calero entre outros, são elementos que pode que empurrem aos rapazes de hoje em dia ou aos de dentro de uns anos a retomar vozes poéticas de outras gerações. Algum dia se falará nos livros de literatura galega dessa imagem do García recitando com Lengualerta (famoso rapeiro mexicano) ao Celso Emilio na selva Lancadona. Essa imagem tem muita força e o seu significado simbólico acho que criará muita auto-estima na juventude.

“Acho que na juventude a poesia pode penetrar a travês da música.”

Em todo caso há que ter em conta que nós entramos à poesia lendo por exemplo autores da geração do 50 que apelavam a uma Galiza que não tem muito a ver com a Galiza que vivem os jovens de hoje em dia. Aí temos que evoluir na estética em primeiro lugar, ao imaginário que evocamos e à nossa relação com o resto das artes. A poesia cria retroalimentação para outras artes e cobra força interagindo com outras artes também. Eu particularmente se tivesse vinte anos menos teria-o mais fácil porque seguramente rapearia, ou pelo menos estaria mais familiarizado com a tecnologia e a ritualidade do hip hop. Quando a minha geração era nova o rap parecia que ia ser uma moda efémera, obviamente errávamos na nossa apreciação. Detrás havia todo um movimento cultural. E uma maneira de expressar-se muito versátil que faz mais fácil a relação com outras disciplinas artísticas.

Tu mantiveche-te sempre na opçom reintegracionista, mesmo em contextos em que aquela era mais impopular e marginalizada? Que efeitos tivo na tua literatura?

Desde que tenho uma atividade mais ou menos séria, sim. Sempre optei pela via reintegracionista. Os efeitos, quiçá que certa gente rejeite o que faço pela opção ortográfica, sem se deter em mais considerações. O que faço sonaria mais ou menos igual com grafia espanhola, imagino. Mas um LH ou um NH para muita gente é motivo suficiente para excluir

Como militante de longo percurso, que destacarias dos teus começos no independentismo alô nos afastados anos 90? Quais foram as mudanças na forma de militar, no positivo e no negativo?

Eu comecei num processo de reconstrução, que dura desde o 1996 até o 2001. Para mim o espaço que vai da aparição da AMI e de Primeira Linha até o Processo Espiral em si conforma uma etapa do independentismo. Naqueles anos havia uma certa ilusão. Depois vieram os desencontros e a frustração. E agora, pois vejo que há vontade de recompôr com os restos dos diferentes naufrágios mais as energias novas que podem achegar as grelhadas mais jovens. Eu acho que o pessoal hoje em dia está disposto a trabalhar e mesmo sacrificar certo bem-estar por um projeto convincente, mas cada vez acreditamos menos em dirigismos obsessivos. O que acontece também é que sempre estará a figura do inadaptado hiperideologizado ao que não lhe vale nada. Isso não muda.

“Eu acho que o pessoal hoje em dia está disposto a trabalhar e mesmo sacrificar certo bem-estar por um projeto convincente, mas cada vez acreditamos menos em dirigismos obsessivos.”

Uma coisa negativa que vejo é uma tendência das esquerdas em geral ao sectarismo, como se fóssemos tribos urbanas. Falta cultura democrática, empatia real com o povo, às vezes…isto deveriamo-lo corrigir.

Criamo-nos politicamente com fanzines autogeridos enviados a caixas de correios, e agora as redes sociais protagonizam a conscienciaçom. Que perdemos e que ganhamos com esta mudança de formatos?

A rede faz mais fácil a difussão, a circulação da informação…a face B é o fácil que resulta na rede criar confussão, difamar, fazer circular informações falsas para intoxicar. Ainda que apreendemos bastante nesse sentido. Eu lembro os anos do foro de Galiza Livre e o foro de Vieiros…há que ter cuidado com dar-lhe oportunidades aos provocadores.

Um problema também da internet é que o que deixas aí é informação que nas mãos do inimigo sempre pode ser utilizada na tua contra. O grande ouro preto dos nossos tempos é a informação. De facto é a moeda com a que cada indivíduo paga as prestações que lhe oferecem as redes sociais

Umha parte importante do independentismo dos séculos XX e XXI foram os centros sociais, como ponto de encontro de militáncia política, social e cultural. Mas achas que, como tem denunciado o independentismo, ao final na Galiza tendemos a esvarar de modo desequilibrado para a luita cultural e literária, ou isso está superado?

Os centros sociais ou são espaços plurais, ou não são viáveis. Mas são necessários, como espaço de naturalização da língua e de circulação e debate de ideias. Necessitamos espaços amigáveis, socialmente é muito necessário. Acontece que quando se fracassa politicamente o último refúgio costuma ser a frente cultural, isto é uma constante.

O que temos que cuidar é que esses centros sociais sejam, à parte de um recurso para nós, lugares abertos e com projeção. Se aparece nos próximos anos um projeto de unidade, ou de confluência do independentismo, deverá definir bem o papel dos centros sociais.

És um dos centos ou milhares de independentistas de longa trajectória que segues a colaborar com o independentismo depois de mais de duas décadas. Que pode achegar a tua geraçom aos que venhem detrás?

Em muitos aspetos suponho que seremos um exemplo em negativo, mas podemos ser úteis. Úteis à hora de refletir sobre o que não fazer, para não repetir erros do passado. Úteis tanto como mão de obra, como na criação de teoria revolucionária, por parte daqueles que tenham essa capazidade. Não somos jovens, mas também não somos “velhas glórias”, ainda estamos ativos. O que nunca deveriamos é pretender ser “vacas sagradas”…esse é um role que pela minha parte nunca adoptarei.