Miguel Rodríguez Carnota é professor de ensino secundário e linguista. Apresentou recentemente, na Universidade da Corunha, a sua tese de doutoramento intitulada: “Língua, poder e adolescência no processo de substituiçom linguística. Análise crítica do discurso num centro de ensino secundário duma vila galega”. Este estudo de caso, sobre a qual já tivéramos ocasiom de falar nesta entrevista, tenciona analisar em profundidade qual é o papel real que os centros educativos jogam na preservaçom, na continuidade histórica e na promoçom do uso da língua própria do país como veículo normal de comunicaçom e, aliás, estudar as possíveis relaçons de desigualdade que, por razom de língua, se dam entre o alunado.
No teu relatório utilizas uma metodologia qualitativa, baseada em histórias de vida, para analisares o percurso linguístico de dez estudantes num liceu duma vila galega. Algumas das testemunhas entram na instituiçom falando galego ou tentando mudar para o galego nalgum momento da escolaridade, porém acabam empregando o castelhano como língua veicular no centro educativo. Que fatores estám por trás desta mudança?
Segundo os seus próprios testemunhos, a principal causa do abandono do galego é a atitude dos pares, dos próprios companheiros e companheiras.
Dos dez informantes neste trabalho, quase todos eles provenientes de famílias galego-falantes, só dous rapazes chegam ao ensino secundário falando galego com normalidade, e ambos ham claudicar por volta de segundo ou terceiro de ESO, que é quando se passam ao castelhano. Uma rapariga ficara já polo caminho, pois claudicara em primário na procura duma integraçom que vê impossível enquanto fale em galego. Outras três galego-falantes mudaram de língua antes, quer ao pôr um pé na escola, quer durante a educaçom infantil. Todos e todas as anteriores continuarám a falar galego na casa, mas no instituto só com uma parte do professorado galego-falante serám capazes de manter a sua língua, à parte das aulas de galego e outros usos rituais. Os três informantes restantes som bilingues ou espanhol-falantes que, com desigual sucesso, intentarám passar-se ao galego durante o ensino secundário.
Segundo os seus próprios testemunhos, a principal causa do abandono do galego é a atitude dos pares, dos próprios companheiros e companheiras.
Tés constatado outro tipo de ataques, para além do exercido polos pares?
À parte dos ataques dos pares, também há relatos, se calhar mais surpreendentes, de ataques por parte de membros concretos do professorado a alunos galego-falantes. Som escassos, mas muito ferintes. Nalguns casos som, com certeza, determinantes para que se obre a mudança de língua. O que se relata na tese sucedeu durante vários anos académicos, entre os anos 2004 e 2016. Dadas as características da mostra, os galego-falantes som-no em situaçom de singularidade, é dizer, sendo os únicos galego-falantes da sua turma e nível, num meio onde o castelhano é hegemónico entre o alunado. Apesar de nom haver problema de compreensom, a integraçom vê-se como impossível mentres falem em galego.
À parte dos ataques dos pares, também há relatos, se calhar mais surpreendentes, de ataques por parte de membros concretos do professorado a alunos galego-falantes. Som escassos, mas muito ferintes.
No teu trabalho certificas a vivência do hábito linguístico de falar em galego como um estigma social (Goffman, 1963) que se verifica no microcosmos do centro educativo. Um dos alunos, Abel, falando do seu amigo galego-falante Uxío indica que os demais: “metiam-se com ele”, “faziam-lhe o acento ganham do galego”. Podemos falar de bullying ou assédio escolar por razom de língua?
Esta é uma questom de grande interesse no trabalho. Segundo a qualificaçom clássica de Olweus (1993), há três características que definem a existência ou nom de bullying: a intencionalidade do ataque, a sua repetiçom no tempo e a existência dum desequilíbrio de poder entre atacante e atacado. As duas primeiras som indubitáveis nos casos que estudamos. Quem duvide da terceira, que tenha presente o desequilíbrio de poder entre a língua galega e a espanhola na nossa sociedade: o agressor agride porque se sente legitimado para fazê-lo. Transmite o poder.
Segundo esta classificaçom, a maior parte das agressons que os próprios informantes relatam entrariam dentro do assédio escolar. Mas, significativamente, aparecem nas e nos informantes dous discursos diferenciados. Um nega a existência de tal acosso sobre as suas pessoas; é um discurso que se resume num “nom foi para tanto”. Outro remarca especialmente os ataques sofridos por razom de língua, ora em primeira pessoa, ora sobre companheiros e companheiras que eles conhecem. Estes últimos encaixariam mais que nenhum como fenómenos de assédio. E alguns deles som de bastante gravidade.
Bullying ou nom bullying, sucede que a atitude dos pares é capaz de modificar condutas linguísticas, e aqui nom se passa nada. Que os poucos galego-falantes que chegaram ao liceu mudassem de língua foi entendido como a cousa mais normal do mundo. Aí está o problema real.
É interessante salientar que sobre as pessoas atacadas existe no seu meio um fator de recordo, que se traduz no facto da existência de ataques ainda que já o atacado nom fale galego, ainda que tivesse claudicado meses ou anos antes. Alcumes que se mantenhem no tempo, relativos a um hábito linguístico já passado ou ataques que começam com um “decían por ahí que hablas gallego. Por qué hablas gallego? ”, seguidos duma reia de insultos.
Que os poucos galego-falantes que chegaram ao liceu mudassem de língua foi entendido como a cousa mais normal do mundo. Aí está o problema real.
Em relaçom ao professorado, denotas vários obstáculos para a normalizaçom da língua galega em diferentes etapas educativas. No ensino infantil e primário significas a aleatoriedade da sua conduta linguística e a ausência de planificaçom; no secundário, registas incumprimento da normativa, ataques específicos por razom de língua e singularizaçom dos discentes que empregam o galego, ainda que também a presença de discursos favorecedores do uso da língua galega no professorado que leciona esta matéria. Podes pôr algum exemplo de ataque e singularizaçom que tenha sofrido alguma das testemunhas? Achas que este tipo de violência condicionou o alunado no abandono do galego?
Ajudou a condicionar. Vamos com o exemplo que pedes, que nem sequer é um dos mais graves, mas tem muita miga. Esqueçamos tudo o que sabemos e contextualizemos.
Estamos num liceu duma vila. Essa vila está num concelho onde o uso do galego, segundo as estatísticas oficiais, aproxima-se dos 40 por cento. Dentro do liceu, quase tudo o que se pode ler ao redor está em galego: os cartazes, as placas, os rótulos. A instituiçom educativa tem entre os seus objetivos legais o de lhe dar pulo à língua e à cultura galegas. Há trinta anos que o bilinguismo harmónico, segundo o qual nom existe nenhum conflito linguístico na Galiza, é a doutrina oficial e operante. O Presidente do país dera a noite anterior pola TV um discurso em galego (ou em algo parecido, para sermos exatos). O diretor do liceu, quando se dirige ao alunado, acostuma fazê-lo em galego, assim como muitos professores.
Uxío, de treze anos, nom é que seja o único que fala galego na sua turma, mas é o único que o fai fora das aulas de galego, ou da funçom teatral, ou no ato do Dia das Letras. Há companheiros que embora falem em castelhano, tiram um sobressalente na matéria de galego.
Contudo, um dia um falangueiro professor, no meio duma aula e diante de todos, dirige-se a Uxío e pergunta-lhe: ¿Tú eres tímido por naturaleza o es que hablas gallego y te avergüenza? E a ninguém lhe surpreende a pergunta. Nom me digam que isto nom fai parte duma crónica marciana! Bem se poderia começar a partir deste feito um trabalho de mil páginas que tratasse de explicá-lo. A propósito, a resposta do Uxío nom foi: “E por quê me vai avergonhar falar em galego?”, senom que foi: “No, es que soy tímido por naturaleza”. Umas semanas antes, após um lance futebolístico num recreio, um companheiro, galego como ele, chamara-lhe “gallego” como insulto. Poucas semanas mais aguentou Uxío antes de fazer como todo o mundo e pôr-se a falar castelhano. Como está mandado.
Um dia, um falangueiro professor, no meio duma aula e diante de todos, dirige-se a Uxío e pergunta-lhe: “¿Tú eres tímido por naturaleza o es que hablas gallego y te avergüenza?” E a ninguém lhe surpreende a pergunta.
Como consequência do estigma social do galego e da violência normalizada contra as suas falantes, apontas que várias das informantes mudaram para o castelhano adotando uma conduta conhecida como passing ou encobrimento, que explicas como “uma resposta adaptativa, um mimetismo defensivo”. Nesta situaçom encontra-se Olalha, que verbaliza a apariçom duma “raiva interior”, duma “vergonha por falar castelhano” e da construçom “duma personagem” perante as colegas. Que custes pode acarretar esta violência numa fase tam sensível para a construçom da identidade como é a adolescência?
Sim, o caso de Olalha é significativo porque descreve com especial crueza o que outras informantes também reconhecem, que é um sentimento de desassossego por ter mudado de língua em contra dos valores apreendidos na família. Olalha é das informantes galego-falantes que mudaram de língua já na etapa infantil, e que nom foi capaz de retomar um uso mais ou menos normal da língua até rematar segundo de bacharelato, aos seus dezoito anos. De aí esse desdobre de personalidade ao que Olalha fai referência, que causa um mal-estar interior que normalmente se leva em silêncio.
Uma das preocupaçons deste trabalho é a de pôr em contato e em comparaçom as situaçons de discriminaçom linguística que as e os informantes relatam com outras situaçons por outro tipo de discriminaçons noutros tempos e lugares, desconhecidos para eles e também para nós. Em desigualdades de todo tipo a minha diretora de tese, a professora da UDC Renée DePalma, é toda uma especialista. Neste ponto das desigualdades veremos como há parecidos surpreendentes entre pessoas que nom se conhecem.
Podes pôr algum exemplo?
Vai um exemplo, para mim dos mais chocantes. Henriette Dahan Kalev é uma autora israeliana, uma politóloga feminista de etnia mizrahi. Os mizrahim som os judeus que provenhem de países árabes, que muitas vezes falam árabe e podem ter um aspeto diferente aos asquenaze ou judeus europeus. Ao parecer, em Israel o ideal representa-o o asquenaze: culto, moderado nas formas e normalmente de classe mais elevada.
Quando Dahan Kalev chega a Israel de menina, em 1949, é recebida no campo de refugiados por uma enfermeira loira e alemã, uma judia asquenaze que lhe solta aquilo de “que bonita és. Nom pareces marroquina”, como se as marroquinas ou as nenas mizrahim nom tivessem direito a serem bonitas. Pois bem, Henriette Dahan Kalev mete o dedo na chaga e explica-nos, em primeira pessoa, como é essa parede de cristal que afasta o ser mizrahi do asquenaze na sociedade na qual vive (Dahan Kalev, 2001).
Assim sendo, muitos mizrahim empreendem uma prática de encobrimento chamada hishtaknezut, uma fingida asquenazeficaçom pola que adotam comportamentos externos próprios dos asquenaze enquanto ocultam os seus: falam mais baixo, evitam o idioma árabe, escuitam uma música diferente, vestem noutro estilo ou, inclusive, mudam o seu apelido (Sasson-Levy & Shoshana, 2013). Enfim, um comportamento semelhante ao que entre a comunidade afro-americana dos EUA se conhece por acting white.
Pois bem, há muitas caraterísticas que igualam os mizrahim com os adolescentes galego-falantes: a própria adoçom duma estratégia de encobrimento, a parcializaçom das condutas (galego na casa, espanhol fora), o refúgio em lugares seguros ou espaços muito delimitados onde nem falar em galego -nem atuar ao estilo mizrahi- está penalizado e, sobre todo, o fracasso parcial dessa estratégia de encobrimento. Tarde ou cedo, por muito que o oculte, um mizrahi encoberto acabará por revelar espontânea e involuntariamente a sua origem, igual que alguns adolescentes galego-falantes deste trabalho que ficam ao descoberto e som atacados ainda quando já nom falam galego com os pares, mas si que o fazem na casa.
Há muitas caraterísticas que igualam os mizrahim com os adolescentes galego-falantes: a própria adoçom duma estratégia de encobrimento, a parcializaçom das condutas (galego na casa, espanhol fora) e o refúgio em lugares seguros ou espaços muito delimitados.
Lembremos que em Israel a diferença entre uma e outra classe de judeus nom está recolhida legalmente em nenhures. A lei vai por um lado, a realidade polo outro, como acontece na Galiza. A comparaçom entre estas duas realidades, imperfeita, mas possível, sugere-nos que, como o estigma é um fenómeno universal, as estratégias que se desenvolvem para encará-lo também o som e se parecem muitíssimo, ainda que os seus protagonistas nom se conheçam de nada.
O realmente doloroso é o seguinte: devem existir mui poucos lugares no planeta onde o estigma venha dado por falar uma língua co-oficial, uma língua culta que se estuda na escola e que se fala no Parlamento. É uma realidade tremendamente perversa. Um mundo de tolos, realmente!
Algumas autoras como García Negro (2009), para referenciar a discriminaçom linguística, tem utilizado o conceito de “racismo linguístico” e tu tés falado de “micro-espanholismos” em artigos anteriores. Como devemos nomear a marginalizaçom específica por razom de língua?
Quando Pilar Garcia Negro fala de racismo linguístico está a fazer algo de muito interesse, que é equiparar a discriminaçom linguística das pessoas galego-falantes com outro tipo de discriminaçons como as que se produzem por razom de género, de orientaçom afetivo-sexual ou, neste caso, de etnia. O que ocorre é que na Galiza de hoje, aqui e agora, há diferentes sensibilidades quanto a estes tipos de desigualdades, e isso acontece especialmente no sistema educativo.
Hoje, por fortuna, existem sensibilidades que antes nom existiam. Nas últimas décadas tem-se avançado muito na consideraçom dos ataques homófobos ou machistas nos centros educativos. Quando menos da minha experiência, podo dizer que é muito difícil que um ataque deste tipo passe inadvertido. Aí somos bastante bons os ensinantes, pois geralmente sabemos como detetá-los e como atalhá-los. Há uma pressom social que vem de fora e que nos obriga a atuar.
E em relaçom aos ataques por razom de língua que acontece?
Infelizmente, os ataques por razom de língua nom estám ainda no repertório das condutas que devam ser controladas e perseguidas, polo menos no centro educativo que se estuda na tese. Com certeza, o controlo das atitudes machistas, xenófobas ou homófobas responde a uma tendência universal de rechaço a estas desigualdades. Só pola cultura adquirida na televisom ou no cinema, qualquer adolescente sabe detetar um ataque homófobo, xenófobo ou machista. Porém, os ataques por falar em galego som cousa exclusivamente nossa e as armas para nos sensibilizar ante eles e para encará-los devem ser, em consequência, exclusivamente nossas.
Que tipo de termo podemos utilizar para falarmos deste tipo de violência?
Uma lei aprovada recentemente na França retoma o termo glotofobia para um tipo de condutas que suponhem discriminaçom por razom de sotaque. Glotofobia: rechaço ou ódio à língua. Este termo pode perfeitamente definir os casos de discriminaçom linguística que aqui se registam.
Quais podem ser as chaves para revertermos esta injustiça no âmbito educativo?
A soluçom nom é doada, e já gostaria eu de tê-la na mão e podê-la expressar no espaço desta entrevista! Só direi um par de cousas. A primeira, é que os programas de imersom podem ajudar muito. Curiosamente, muitos dos informantes neste trabalho passaram por um programa de imersom antes de entrarem no liceu, na sua educaçom infantil. Uma escola inteiramente em galego para alunado quase exclusivamente castelhano-falante, que era apoiada polos pais e mães e que se desenvolveu de jeito muito bem-sucedido, pois fazia meninhos realmente bi ou trilingues. Hoje isto está proibido e os programas de imersom demonizados!
A outra é que cada quem tem que pôr o seu grão de areia. Os ensinantes, naturalmente, mas também os pais e mães das crianças galego-falantes, que devem, com muita delicadeza, aparecer na escola para dizer “aqui estamos”. E os planejadores educativos, claro está. Obviamente, a soluçom é eminentemente política. Muitos sonhamos com uma política linguística que mereça tal nome e que supere esta espécie de pantomima atual.
Um aspecto esperançador do teu estudo é que boa parte das informantes que mudam do galego para o castelhano no liceu recuperam a língua galega numa etapa posterior. Neste sentido, sinalas que a mudança linguística nom pode ser concebida apenas como uma claudicaçom, mas também como um ato estratégico de supervivência. Achas que este modo de restauraçom linguística é generalizável ao conjunto do alunado?
Por desgraça, nom. Quando falo do passing ou encobrimento como ato de resistência estou-me a basear em situaçons descritas em trabalhos de investigaçom como o de Renfrow (2004) ou o de Kanuha (1999), quem ao estudar a resposta ao estigma de pessoas LGBT, afirma que “as pessoas som inerentemente engenhosas, criativas e resilientes fronte a uma adversidade que é intercultural e que tem séculos de existência” (Kanuha, 1999; p. 43).
Estamos muito acostumados a ver pessoas que depois do seu passo polo sistema educativo se perdem para sempre como galego-falantes normais.
Com certeza, há casos nos meus informantes onde aparentemente a decisom da claudicaçom do uso da língua galega pode ser entendida como um ato temporal e resiliente, posto que retomam o galego como normal uma vez que perdem de vista o liceu. Mas temo-me que nesta decisom há outros fatores como a consciência política adquirida no processo ou as atitudes herdadas da casa, e isso nom se pode generalizar alegremente ao resto da populaçom. De facto, estamos muito acostumados a ver pessoas que depois do seu passo polo sistema educativo se perdem para sempre como galego-falantes normais e entram no uso social mais comum, que é o de reservar o galego, no máximo, para a família (agás com os filhos) ou para a aldeia. E ainda bem.
Na tua pesquisa recorres à Teoria Clássica da Reproduçom de Bourdieu e Passeron (2008) para denotar, ainda que com contradiçons internas, o papel reprodutor do centro de ensino na difusom da ideologia linguística dominante. Em que papel deixa a tua pesquisa à instituiçom educativa que, formalmente, está chamada a fomentar a língua própria do país?
O centro educativo é um espaço onde confluem correntes cruzadas, umas a favor, outras contra o nosso idioma. Por uma banda, as aulas e a matéria de galego exercem, segundo os meus informantes, uma influência positiva, porque, graças ao professorado que cumpre com acerto e dedicaçom o seu trabalho, há um aumento da consciência linguística no alunado. É um professorado que em ocasions há de enfrentar situaçons desagradáveis, quando se mete em questons sociolinguísticas sensíveis que podem estorvar a supremacistas do espanhol.
Depois, o centro educativo é um lugar onde os incumprimentos da normativa linguística estám na ordem do dia e fazem-se abertamente, com absoluta impunidade. Qualquer pessoa pode observar como muitas aulas que se tinham que ministrar em galego som-no em castelhano! Os meus informantes foram muito claros nesse sentido. Mas é claro que, em geral, a instituiçom educativa que se estuda na tese é definida como um lugar onde falar em galego, fora de usos rituais, é muito complicado para um ou uma adolescente. Com frequência, impossível: é um terreno hostil. O galego só vale para usar em certos âmbitos; se te passas da raia, tens problemas. Ou tê-lo mui claro e pensas que se a alguém lhe parece mal que fales galego é problema da sua cabecinha, ou vá-lo passar mal. O centro acaba sendo uma instituiçom reprodutora dos usos dominantes, certamente.
Em contraste com o centro educativo, como âmbito hostil para o galego, assinalas a existência de lugares seguros ou espaços anti-hegemónicos onde o alunado pode desenvolver-se com normalidade na sua língua, como já constatara O`Rourke para o caso dos centros sociais galegos. Quais som estes locais e que papel cumprem no que di respeito ao uso da língua galega?
Os lugares seguros dos quais informam as pessoas entrevistadas estám normalmente fora do centro educativo. Há, certamente, um espaço na vila ao que chamamos o Coletivo, uma sociedade cultural onde se juntam adolescentes galego-falantes, que serve de lugar de encontro e de descobrimento de novas realidades. É curioso ver como os informantes descrevem estes lugares como cómodos, tranquilizadores, livres ou espaços onde podes falar galego, textualmente, sem “tapujos”. Estas descriçons retratam, por contraste, o ambiente que percebem fora as raparigas e os rapazes que queiram falar em galego. O papel do Coletivo foi fundamental para muitos deles. Espero que continue a funcionar na mesma onda.
A capital da Galiza é entendida por vários dos informantes como essa Meca galego-falante onde falar a língua do país com normalidade nom está penalizado para uma pessoa jovem.
Mas há outros lugares considerados como seguros: a EDLG (Equipa de dinamizaçom da língua galega) é o único que está dentro das paredes físicas do liceu. Para alguns informantes também som lugares seguros as redes sociais. E existe outro muito mais curioso: a cidade de Santiago de Compostela. A capital da Galiza é entendida por vários dos informantes como essa Meca galego-falante onde falar a língua do país com normalidade nom está penalizado para uma pessoa jovem. Salvo casos pontuais, Compostela vai cumprir bastante bem esta expetativa. Quando os informantes me contavam estas cousas nom podia evitar pensar na Idade Média, quando o labrego fugia para o burgo na procura de liberdade.
Segundo um dos teus referentes teóricos, Fishman (1991), os lugares seguros ou “safe spaces” som espaços onde uma comunidade linguisticamente menorizada pode dar-se um respiro reparador no seu idioma, evitando que os seus membros sejam singularizados, incomodados ou atacados. Achas que o Projeto Educativo Semente é um “safe space” para as crianças que utilizam quotidianamente o galego?
Claramente. As Sementes som uma alternativa segura. Certo que nom som ensino público, mas tampouco o foram as ikastolas no seu momento, quando foram criadas em pleno franquismo, num contexto dificílimo. Mas aí estiveram e aí estám, cumprindo um papel fundamental na recuperaçom do euskara. Se confias no ensino público pode ser que tenhas sorte e que che toque uma escola respeitosa, livre e amante do idioma. Há muitas e muito boas, com certeza. Mas se nom fosse assim, pode ser que che medre a barba aguardando polo ensino em galego ou, simplesmente, por um ambiente escolar considerado e respeitoso com as diferenças linguísticas. Há muita aleatoriedade! Entom é melhor pensar na Semente se a tés a mão, antes de arriscar-te a que a tua filha passe por um calvário.
Uma das principais conclusons que tiras da aplicaçom do quadro teórico do estigma, sobre o qual também há estudos prévios no nosso país (Formoso, 2013), tem a ver com a perspetiva do poder e de como este funciona ao longo do corpo social, duma perspetiva foucaultiana. Podes explicar-nos a relevância deste aspeto na tua investigaçom?
Se nom fosse por Valentina Formoso e por Ana Iglesias (2002) eu nunca teria empreendido este trabalho. Com os seus livros elas abrem a porta ao estudo qualitativo do que acontece com o galego na nossa sociedade, para além de estatísticas e diagramas de barras, que também som muito necessários, mas que descrevem o mundo doutra ótica.
As galegas e os galegos podemos presumir de sociolinguistas e de sociolinguística. Antes nomeavas a Pilar García Negro e a Bernadette O’Rourke. Eu acrescentaria outra dúzia de autores e autoras, gente plural que às vezes choca nas suas visons, mas que levam toda a vida a estudar e a opinar sobre o que acontece com o nosso idioma no nosso país.
A quinta-essência das mensagens da sociolinguística galega dos últimos decénios resumem-se, na minha opiniom, numa ideia que expressaram muitos e que eu tomo de Freixeiro Mato, quando defende a existência dum conflito linguístico galego “que permanece oculto ou latente cando as pessoas galegofalantes renuncian ao uso da súa lingua en determinados contextos ou fan deixación dos seus dereitos lingüísticos, mais que se activa cando pretenden exercitalos” (Freixeiro Mato, 2009, p. 63). Que lho perguntem, senom, aos nossos informantes, que batem com força contra essa parede de vidro quando querem exercer de galego-falantes normais.
Mas isto, para mim, é a parte mais doada de explicar. A mais difícil é interpretar por que som precisamente os pares, os companheiros e companheiras, os que mais atuam de censores do adolescente galego falante. Meter a mão aí é muito doloroso se nom vás bem preparado.
A atitude dos pares pode-se explicar de muitas óticas: a psicologia social, as teorias da socializaçom que explicam os processos da adolescência… Mas eu considero especialmente sugestivo o ponto de vista foucaultiano quando trata de explicar o funcionamento e a transmissom do poder ao longo da sociedade.
As diretrizes do poder descem até ao fundo do corpo social levadas polas próprias pessoas. É como uma energia que se transmite, que pode atopar resistências locais, mas que sempre sai para adiante. Segundo Foucault, o poder, ao ser exercido mais que possuído, “investe os indivíduos, passa por eles e a través deles” em relaçons que “descem profundamente no espessor da sociedade” (Foucault, 1977, p. 27). É o que ele chama a microfísica do poder, uma ideia poderosíssima. A diretriz do poder que consagra a língua galega como submetida e subsidiária eterna da espanhola é levada até os nossos informantes polos seus próprios companheiros de liceu.
Há anos também funcionava nas escolas a diretriz da sexualidade normativa. Se eras homossexual, tinhas todas as papeletas pare ser alvo de ataques crudelíssimos por parte dos teus companheiros. Podiam-che bater, que nom se passava nada. Essa corrente de poder agora curto-circuitou-se. Nom existe, polo menos com a virulência que antes tinha. O da língua continua a aguardar por tempos melhores.
A diretriz do poder que consagra a língua galega como submetida e subsidiária eterna da espanhola é levada até os nossos informantes polos seus próprios companheiros de liceu.
Bourdieu completa o panorama e di-nos que muitas vezes os fenómenos de violência simbólica produzem-se “por baixo do nível de consciência” (Bourdieu, 1991, p. 52). E aqui, curiosamente, coincide com vários dos informantes, que interpretam as agressons galegófobas como cousas rotineiras, por costume, por desconhecimento, pouco filtradas pola lógica e menos pola informaçom. Há informantes que fazem incluso o esforço de se colocar na ótica dos seus agressores e tratar de compreendê-los. Nom os criminalizam, e eu concordo com eles. Há muito desconhecimento, muita manipulaçom encoberta, muita odiosa tradiçom. Som adolescentes, nom pessoas formadas. Estám tam necessitados duma educaçom libertadora como os agredidos. Aqui lembramos Paulo Freire, outro dos santos do santoral pedagógico, que, com meridiana claridade, insiste nessa ideia libertadora da educaçom, quer para agressores quer para agredidos, na sua Pedagogia do oprimido (1970). Seja sempre louvado!
Referencias documentais citadas na entrevista
Bourdieu, P. (1991). Language and Symbolic Power (J. B. Thompson, Ed.; G. Raymond & M. Adamson, Trads.). Harvard University Press.
Bourdieu, P., & Passeron, J.-C. (2008). La reproducción. Fundamentos para una teoría de la enseñanza. Editorial Popular.
Dahan Kalev, H. (2001). You’re so Pretty—You Don’t Look Moroccan. Israel Studies, 6, 1–14. https://doi.org/10.2979/ISR.2001.6.1.1
Fishman, J.A. (1991). Reversing Language Shift: Theoretical and Empirical Foundations of Assistance to Threatened Languages. Multilingual Matters. https://books.google.es/books?id=ah1QwYzi3c4C
Formoso Gosende, V. (2013). Do estigma á estima. Propostas para un novo discurso lingüístico. Xerais.
Foucault, M. (1977). Discipline and Punish. The Birth of the Prison. Penguin Books.
Freire, P. (1970). Pedagogia do oprimido. Paz e Terra.
Freixeiro Mato, X. R. (2009). A historia e a dignidade do galego: De lingua enxalzada a lingua mortificada. Em M. P. García Negro (Ed.), Sobre o racismo lingüístico (pp. 31–66). Laiovento.
García Negro, M. P. (2009). A lóxica do racismo lingüístico. A súa funcionalidade. En García Negro (Ed.), Sobre o racismo lingüístico. Laiovento.
Goffman, E. (1963). Estigma, la identidad deteriorada. Amorrortu.
Iglesias Álvarez, A. (2002). Falar galego: «no veo por qué». Aproximación cualitativa á situación sociolingüística de Galicia. Edicións Xerais de Galicia.
Kanuha, V. K. (1999). The Social Process of ‘Passing’ to Manage Stigma: Acts of Internalized Oppression or Acts of Resistance? The Journal of Sociology & Social Welfare, 26(4). https://scholarworks.wmich.edu/jssw/vol26/iss4/3/
Olweus, D. (1993). Bullying at School: What We Know and What We Can Do. Wiley-Blackwell.
Renfrow, D. G. (2004). A Cartography of Passing in Everyday Life. Symbolic Interaction, 4(27), 485–506.
Sasson-Levy, O., & Shoshana, A. (2013). “Passing” as (Non)Ethnic: The Israeli Version of Acting White. https://doi.org/10.1111/soin.12007