Em entrevista neste portal, o psiquiatra Guillermo Rendueles vinculava o aumento do sofrimento íntimo com um tipo de sociedade baseada no individualismo dos calculadores solitários: ‘a medida que se enfraquecem as redes sociais populares, medra a malária urbana em forma de pequenos malestares que se afrontam com pílulas’. A esquerda reflectiu nos últimos anos sobre como se esfarelárom as identidades de bairro ou paróquia, como fôrom esvaindo-se os orgulhos de grémio e a consciência de classe, como o ‘activismo’ substituiu a militáncia, mesmo como as solidariedades de parelha viram frágeis e restritas às estimaçons temerosas do curto prazo. Menos nos detivemos, porém, em pôr o nosso foco na amizade, esse bem incalculável que chamou a atençom dos grandes clássicos.
Na sua versom pervertida, a ‘rede de amigos’ pode entender-se como o eufemismo da rede de contactos e favores, o tecido de interesses mútuos que alimenta a relaçom social para que todos obtenhamos um ganho a partir dum pacto nom escrito de lucros recíprocos. ‘É preciso ter amigos até no inferno’, afirma o dito popular, sobreentendendo que o trato com os semelhantes deve basear-se na necessidade de protecçom para o momento em que a vida as traia mui mal dadas. Ainda que a nossa linguagem é tosca no que à amizade diz respeito, e o termo ‘amigo’ acolhe realidades bem distintas, todos entendemos que a visom utilitária das cousas traiçoa a essência originária desta palavra. Aristóteles, que tentou definir ‘o magnánimo’, a alma grande movida por princípios elevados, escreveu: ‘nom é nobre estar ansioso de receber favores, porque só o malfadado necessita bem feitores, e a amizade é ante todo liberdade.’ Dous milénios depois, a revolucionária e mística Simone Weil maravilhava-se que existisse umha relaçom humana que soubesse compaginar dous princípios antagónicos, a procura apaixonada do próprio bem estar, e o respeito escrupuloso, íntegro, pola plena liberdade do outro: ‘a amizade lixa-se assi que a necessidade triunfa, mesmo por um momento, sobre o desejo de conservar a faculdade de livre consentimento em ambos os lados. Em todos os assuntos humanos, a necessidade é o princípio da impureza. Toda amizade é impura se existe mesmo um pequeno resto do desejo de comprazer, ou do contrário desejo de dominar.’ Por isso ‘a amizade é um milagre polo qual umha pessoa consente ver a umha certa distáncia, e sem achegar-se nem um passinho, aquele ser que é tam preciso para ele como a comida.’
Segundo o pensamento liberal, por trás de todo altruísmo há um cálculo soterrado, e na realidade, quando somos nobres, cobrimos com a máscara da generosidade um benefício oculto. Santiago Alba desmontou com contundência esta tese ao advertir que frente ao cálculo que sempre acompanha ao mal, o bem foge irredutível a toda contabilizaçom e a todo balanço: ‘se atropelo com umha carrinha os peons nas Ramblas, podo contar os mortos. Se escrevo um poema, ou construo umha ponte, ou componho a novena de Beethoven, nom só nom podo contar os beneficiários: nom podo nem sequer descrever os efeitos benéficos. Que é o contrário dum entulho? Que classe de ‘entulhos’ positivos deixa a visom dos frescos de Signorelli ou a audiçom do Mesias de Haendel? (…) Sabemos que os humanos se alimentam de alouminhos nom menos que de pam, mas nenhum termómetro e nenhuma báscula podem avaliar esse tipo de desnutriçom. (…) O mal é contável e necessário; o bem incomensurável e contingente. Podo enumerar as cuiteladas e estabelecer umha relaçom causal entre o gume e o sangue; nom podo contar as pinceladas da Capela Sixtina, nem estabelecer umha relaçom causal, quanto menos imediata, entre a beleza e a bondade (ou a saúde).’
Quando umha fracçom do protestantismo tencionou fundar umha sociedade utópica baseada no acordo e na paz, o nome escolhido pola nova seita foi o de ‘Sociedade dos Amigos’. Nós conhecemo-los como ‘quáqueros’, mas na denominaçom havia sem dúvida a pretensom de extender ao conjunto das pessoas essa mestura de sentido cooperativo e afecto profundo que é a amizade, a mais harmoniosa de todas as relaçons que inventou a humanidade. E quando o nosso nacionalismo nasceu com tal nome, escolheu a velha palavra da ‘Irmandade’. Nela ecoava a rebeldia medieval, e também um contrato baseado em identificaçom emocional, solidariedade e respeito. Na dureza de posguerra, com Castelao no exílio, Bóveda assassinado e Risco, alma gémea desde a infáncia, aderido ao fascismo,Otero Pedrayo escreveu ‘O livro dos amigos’. Nele glossava as figuras marcantes da sua vida, cantando de maneira indistinguível o nosso renascimento nacional e o trato humano que dera sentido à sua existência.
Claro que os quáqueros nom fundárom a sociedade ideal. Claro que no nosso nacionalismo, além de nobreza e amizade, houvo e há interesses espúreos, liortas, vanidade, covardia, e todos os males que nos aqueixam como indivíduos em solitário, ou como colectivos humanos constituindo instituiçons. Porém, quando o acento se pom na pureza, isto quer dizer que há vontade de pôr um muro de contençom contra o pior de nós, de nos prever contra a discórdia e a vida corrupta das sociedades fraticidas e mesquinhas.
Entre múltiplos factores bem complexos que cabe ponderar, o enfraquecimento da amizade, a sua reduçom até um espaço bem cativo no pátio traseiro das nossas vidas, é umha das causas que explicam o recuar das propostas emancipadoras no mundo occidental. Aos ansiosos solitários, como se falássemos línguas diferentes, ou como se fôssemos vítimas de irritaçom crónica, custa-nos entender-nos. Já nom digamos cooperar nesse equilíbrio tam difícil entre a intimidade e a distáncia que Simone Weil descrevia. Mais que umha habilidade social natural, e indicativa de vidas saudáveis, a amizade parece umha rareza só ao alcanço de especialistas reputados no trato cara a cara.
Mas olho, porque o mundo é mui complexo, e os paradoxos abundam. Parece umha tendência humana, que alguns neuropsiquiatras situam na conformaçom genética da espécie, pôr o foco na negatividade e na dor, no canto de reparar nos aspectos que alimentam a esperança. Mas hoje também sabemos, graças à historiografia, que frente o avanço da soidade, da despersonalizaçom e dos caracteres exigentes e exquisitos, na contemporaneidade nascêrom aliás formas de relaçom dignas e mui interessantes, novos tipos de amizade que rachárom muitos muros antano marcados pola casta, as estratégias familiares e a pura convençom. Num ensaio sobre as origens do anarquismo, (‘Cabezas de tormenta. Un ensayo sobre lo ingobernable’), o pensador Christian Ferrer descobriu como redes de relaçom inusuais, nom baseadas exactamente no bairro nem na classe, recriárom-se na urbe anónima do capitalismo, chimpando por riba das barreiras de idade, de género ou de ofício. Estas redes, diz Ferrer, alentárom o movimento libertário, e nós pensamos que explicam também muitos outros movimentos dissidentes. Polas suas palavras ‘a afinidade, sustrato social do anarquismo, acolhe-se num horizonte antropológico mais amplo, e desde sempre chama-se ‘amizade’ (…) Ao ideal grego clássico agrega-se o da fraternidade revolucionária. Um e outro teimárom na igualdade posicional dos amigos e nas acçons de ‘cuidado do outro’. Durante o século XX a amizade começou a transcender a relaçom interpessoal e deveu umha prática social que se desloca sobre espaços afectivos, políticos e económicos antes ocupados pola família tradicional. É um amparo contra a intempérie à que o capitalismo submete à populaçom. (…) A esta genealogia cumpre engadir a amizade entre mulher e mulher, entre homem e mulher, entre homossexuais e mulheres, antes na clandestinidade, ou a amizade entre ex-parelhas, alimentadas como nunca polo esvaecimento do lar como espaço económico obrigatório. Som estes formatos emotivos as grandes invençons que cumpre colocar a benefício de inventário do século XX.’
Avançará a nossa causa nestes tempos tam convulsos, plagados de isolamento, tratos efémeros e virtuais? A resposta está na organizaçom, nos recursos, no ánimo valente e em dúzias de imponderáveis económicos e ambientais que desbordam o analista mais brilhante. Mas também, nom esqueçamos, na capacidade de fazer amigos.