Nascido em Xixom em 1948, Guillermo Rendueles é umha das vozes mais autorizadas da psiquatria crítica desde há várias décadas; combinou a militáncia política e sindical com um importante contributo teórico ao estudo do malestar íntimo na nossa sociedade, que nos últimos tempos parece alcançar níveis de autêntica pandemia. Com ele falamos das suas origens no movimento anti-psiquiátrico da década de 70, da crescente intolerância à dor, e da necessidade dum rigor de esquerdas ‘que seja quem de combinar realismo e utopia. Antes de começarmos com as perguntas, o entrevistado lembra-nos o próximo projeto audiovisual galego em que participará: “A virxe roxa“, um documentário que narra a história real de Aurora e Hildegar Rodríguez. Umha mae que matou a sua filha prodígio de 18 anos de vários disparos enquanto dormia.

Fala-nos dos teus primeiros interesses pola psiquiatria. Tenhem a ver com algumha consciência política, ou os caminhos da militância e a medicina marcham arredados?

Há um vínculo muito claro entre ambos os dous. Nos meus tempos de adolescência eu orientava-me à Filosofia, muito influenciado polo magistério de dous professores libertários que me marcaram profundamente: José Luis García Rúa, um histórico da CNT, e logo Agustín García Calvo. Meu pai, que era economista, dizia-me que a Filosofia era um conto, que cumpria umha disciplina que tivesse os pés na terra. É assim que me decanto para a Medicina, mas com a vista posta na Psiquiatria, a modo de soluçom de compromisso entre os meus interesses e esta exigência. De muito novo, caíra nas minhas maos um livro de Stefan Zweig sobre a psicanálise, ‘Os médicos da alma’, que me influíra poderosamente.

José Luis García Rúa. Wikipedia
Agustín García Calvo. CG.

Estudei em Salamanca, e ali entro em contacto com a psiquiatria franquista, dirigida por Vallejo Nájera, um militar, estritamente um fascista, que analisava aquilo dos males da alma baseando-se em Tomé de Aquino

Depois, vivim um momento de grande decepçom. Estudei em Salamanca, e ali entro em contacto com a psiquiatria franquista, dirigida por Vallejo Nájera, um militar, estritamente um fascista, que analisava aquilo dos males da alma baseando-se em Tomé de Aquino. Para darmo-nos de conta do que estamos a falar, pensemos que López Ibor, a olhos desta ortodoxia, passava por ser um progressista, e de facto Nájera pressionou Franco a favor do encarceramento de Ibor.

Puidem superar esta pequena crise nas práticas, porque fum enviado a um manicómio, dependente da Clínica Universitária de Salamanca. Aqui acontece umha cousa muito curiosa, porque eu estivera preso por mor dumhas mobilizaçons no estado de excepçom de 1969 e, ao chegar a aquele encerro psiquiátrico tenho umha sensaçom puramente física, que ainda nom verbalizo. É que o cheiro recorda-me à prisom. A aquele cheiro das cozinhas da prisom… Logo descubro que há todo um leque de trucos dos internos para estar em boa relaçom com a administraçom, para evitar puniçons…vaia, que vejo claramente que se trata dumha instituiçom total, dum regime de encerro, e estimula-me poder mudar as cousas de algum jeito, contribuir a isto com o meu labor profissional.

Guillermo Rendueles no ato de colocaçom dumha placa na rua Cura Sama, em lembrança da Academia Obrera fundada por José Luis García Rúa. Aula Popular J.L. García Rúa.

Suponho que dessa crítica à antipsiquiatria, da que participas, há um pequeno passo.

Si, nom demoro em mover-me nessas coordenadas. Mas antes de entrarmos de cheio no movimento antipsiquiátrico, acho que há que falar da conflitividade da psquiatria naqueles tempos tam convulsos, que começa por ser umha conflitividade apenas laboral. Ao rematar Medicina, entro a trabalhar ao Hospital de Oviedo, que é um centro flamante, criado por um tecnocrata, segundo o que estava em voga na época. O que se pretendia, em vários pontos, era copiar o modelo anglosaxom, tentativa que também se dá em Conxo, por exemplo. Traem-se chefes formados fora, e cria-se um hospital com umha grande impronta norteamericana.

Na altura, as luitas nunca saiam de balde, e essa ganhamo-la, mas houvo que enfrentar sançons, enfrentar despedimentos. Essa vitória permite reartelhar o funcionamento do hospital num sentido que na época chamávamos ‘autogestionário’

Naqueles primórdios, os residentes nom somos considerados trabalhadores, mas bolseiros. Isso leva-nos a um duro conflito profissional por transformar o regime de exploraçom extrema, em que recebemos um salário ridículo, supostamente compensado por nos fornecerem comida e alojamento. Nós pretendíamos transformar a nossa condiçom no que hoje som os MIR, para entendermo-nos, e esta reivindicaçom fai-se massiva. Pouco ideológica, de partida, mas importante em volume, ao unirem-se vários centros hospitalários doutros pontos. Na altura, as luitas nunca saiam de balde, e essa ganhamo-la, mas houvo que enfrentar sançons, enfrentar despedimentos. O importante é que ganhamos, e essa vitória permite reartelhar o funcionamento do hospital num sentido que na época chamávamos ‘autogestionário’, com várias comissons, responsáveis eleitos e revogáveis.

Que efeitos tivo em vós a repressom?

Era dura, mas permitia alcançar novas quotas de consciência. Imagina, o próprio director do centro, que era um homem formado no estrangeiro, é expulsado por secundar as nossas reivindicaçons. Nós decidimo-nos a seguir a nossa presom, este director é readmitido, e num contexto de luita permanente, a ideologizaçom é maior, até o ponto de pôr em causa muitas cousas que nunca se questionaram.

Que questionávades exactamente?

Aquele modelo tam peculiar de psiquiatria franquista, que é umha peculiaridade hispana muito curiosa. Por causa do nacional-catolicismo, em Espanha nom triunfara aquela aposta na eutanásia massiva que foi própria do nazismo, mas também de vários Estados democráticos na II Guerra Mundial.

Aqui decide-se manter os doentes vivos, mas que acontece?

Que se habilitam para eles umhas estruturas enormes, que chegam a acolher um milhar de pessoas, que nom existiam na Europa. Tratava-se de instituiçons de ordem que disciplinavam e recolhiam gentes muito diversas.

Nos psiquiátricos estavam mesmo as chamadas ‘patronatas’. Eram mulheres rebeldes, insubmissas por causas diversas, enfrentadas à família, ou desobedientes com os hábitos que se supunham próprios da mulher.

Nos psiquiátricos estavam mesmo as chamadas ‘patronatas’. Eram mulheres rebeldes, insubmissas por causas diversas, enfrentadas à família, ou desobedientes com os hábitos que se supunham próprios da mulher, e que passavam ao ‘Patronato de Protecçom da Mulher’. Se tampouco se adaptavam ali, pois iam aos psiquiátrico. O mesmo acontecia com o chamado ‘pavilhom de judiciais’. Acolhia pessoas que cometeram algum delito sob os efeitos dumha crise mental, e nom saíam de ali nom sendo que se curassem. Enfim, que naqueles centros acumulavam-se vários sedimentos de doentes, por causas diferentes, e a receita aplicada era a disciplina e o encerro. A nossa motivaçom fundamental era transformar aquelas instituiçons, transformá-las e abri-las.

Mulheres no Patronato de Sevilha. Arquivo histórico da Junta de Andaluzia.

Qual foi a vossa inspiraçom teórica?

Franco Bassaglia. Wikipedia.

As ideias anti-psiquiátricas começam a chegar a nós naquela altura. Existiam duas correntes fundamentais. A anglosaxona nom nos tocava muito de perto, porque estava centrada na psicopatologia da família, em como as doenças mentais se transmitiam no círculo mais próximo. A nós a que nos marca é a italiana, a de Franco Bassaglia, que daquela já tinha contactos directos na Catalunha. Dous livros fôrom chave para nós: ‘A instituiçom em negaçom’ e ‘O duplo da doença mental’. A tese era a seguinte: a loucura do manicómio nom era a real, senom um duplo criado polo próprio encerro. Até que nom saímos do encerro, nom sabemos que acontece realmente com a doença das pessoas. Eu vim a literalidade dessa situaçom com o exemplo dos zoológicos: é como se vemos um chimpanzé em cativeiro, como se o observamos, e concluímos: ‘o chimpanzé dedica-se a andar dum lado para outro durante todo o dia, e a masturbar-se. Isso é o que fai’. Mas isso nom é o chimpanzé. Esse é o chimpanzé em cativério. Com os seres humanos passa-se umha cousa semelhante.

A loucura do manicómio nom era a real, senom um duplo criado polo próprio encerro. Até que nom saímos do encerro, nom sabemos que acontece realmente com a doença das pessoas.

Puidem comprovar esta realidade em casos concretos, com pessoas: os esquizofrénicos cata-tónicos, por exemplo, tenhem um sentido forte de territorialidade. Passam o dia quase inertes, mas se algum ocupa o seu espaço, ponhem-se agressivos. Porém, se saem do encerro, perdem esta condiçom de territorialidade. E algo semelhante sucedia no chamado ‘pavilhom de agressivos’. Se eram dispersados no interior do centro, se deixavam de estar concentrados neste local, a sua violência esmorecia. Portanto, havia exemplos que confirmavam a nossa aposta por fechar ou reduzir no máximo os manicómios.

É umha luita que, em certa medida, ganhades, mas tu tes assinalado em ocasions os defeitos daquela visom teórica que defendíades. Desenvolve por favor esse balanço crítico.

O certo é que livramos umha luita longa, e os seus ritmos estavam mui condicionados polos movimentos repressivos. Por vezes a brigada de informaçom mandava os grises a assaltar as residências em que havia reivindicaçom, logo éramos retaliados, eu por exemplo acabei fazendo a mili em Ferrol e na Gomera como puniçom política. Vós sabedes bem o que aconteceu em Conxo. Existiam ‘listas negras’, de maneira que gente como eu tinha dificuldade de topar trabalho em outro centro depois de ser repressaliado no seu anterior destino. Esta história tam dura ainda está sem escrever, mas claro, a lógica da ‘reconciliaçom nacional’ e do Regime de 78 apagou esta memória.

A doença mental continuava a ser um estigma e ninguém, ou mui pouca gente quer as pessoas atingidas no seu prédio, no seu centro de trabalho, no seu sindicato.

Enfim, a luita avança, mas nesta segunda jeira é quando começamos a detectar os limites das nossas teses. Porque, com efeito ‘o duplo nom era todo’, por empregarmos a terminologia de Bassaglia. Esse foi o nosso primeiro erro, umha espécie de esquerdismo, de infantilismo. Havia doenças mentais que subsistiam bem além dos muros do encerro, que nom se curavam apenas pola abertura do manicómio. E o nosso segundo erro tem a ver com a ideia da recepçom social dos doentes. A doença mental continuava a ser um estigma e ninguém, ou mui pouca gente quer as pessoas atingidas no seu prédio, no seu centro de trabalho, no seu sindicato. O bloqueio foi total, neste sentido. Carecíamos de instituiçons intermédias como as que existiam na Europa: obradoiros, centros de dia, onde estas pessoas figeram a sua primeira aterragem no exterior, e pretendemos a sua inserçom directa. A resposta da maioria das pessoas foi desoladora.

Supujo isto para ti um desencantamento pessoal?

Foi um golpe forte. Nom apenas pola comprovaçom de parte das nossas teses serem erradas, senom por essa reacçom social que falamos. Eu mudo o meu trabalho, e passo a trabalhar num centro de saúde e numha clínica privada, porque nos hospitais gerais, ainda que em tamanho reduzido, continuam com a lógica do manicómio da sujeiçom mecânica.

No que diz respeito a todos esses doentes que passam a viver em regime aberto, passo por umhas experiências bem desagradáveis. Tentamos introduzi-los em andares de acolhida, porém a maioria das associaçons vizinhais nom os querem

No que diz respeito a todos esses doentes que passam a viver em regime aberto, passo por umhas experiências bem desagradáveis. Tentamos introduzi-los em andares de acolhida, porém a maioria das associaçons vizinhais (muitas controladas polo PCE) nom os querem. Nos bairros obreiros de Xixom nom os querem, e eu encontro-me em situaçons curiosas, como por exemplo em bares, onde amigos e camaradas evitam a minha companhia, fam como que nom me vem.

Naquela altura eu arredo-me da velha militância e mudo algumhas das minhas focagens. Recupero os contactos com o mundo libertário da minha primeira juventude, que é mais compreensivo com a problemática que a mim me ocupa. E também conheço directamente o catolicismo de esquerdas, um sector que se envolve directamente com os doentes mentais, que trabalha com pisos de acolhida.

Essa nova fase do teu compromisso coincide, polo que tes comentado, com umha rutura social muito funda, em que a percepçom da saúde mental se transforma por completo. O neoliberalismo, polas tuas próprias palavras, ‘patologiza o malestar difuso’.

Isso é o que acontece, num processo passeninho mais imparável, desde as décadas de 80 e 90. Nós antes tratávamos o ‘tolo de verdade’, a ‘grande loucura’. E as pessoas que vinham à clínica, muitas vezes, traziam aquela frase feita de ‘eu nom estou de psiquiatra, venho forçado’. Bem, pois com o tempo, a situaçom inverte-se. Os verdadeiros tolos fam-se minoria e as nossas consultas enchem-se de gente que pensam ter doenças sem tê-las em realidade: um com ansiedade, outro com problemas de sono, outro com pequena depressom…na realidade, muitos dos nossos pacientes venhem com padecimentos que também sofremos os próprios psiquiatras.

No neoliberalismo, a gente pede soluçons técnicas aos problemas da vida quotidiana: um tem insónia, por exemplo, porque padece um trabalho a quendas duro, outro ansiedade, porque as relaçons de poder na família som insuportáveis.

Eu, pola sua dimensom, chamei a isto ‘malária urbana’, e penso que se origina numhas condiçons de vida insalubres, cada vez mais privadas da dimensom colectiva. No neoliberalismo, a gente pede soluçons técnicas aos problemas da vida quotidiana: um tem insónia, por exemplo, porque padece um trabalho a quendas duro, outro ansiedade, porque as relaçons de poder na família som insuportáveis. O urbanismo gera também o seu próprio malestar, polo traçado das nossas vivendas, as urbes desumanizadas. E claro, isto com o pano de fundo das relaçons sociais populares enormemente deterioradas: o enfraquecimento da camaradagem de trabalho, de bairro, da amizade leal, das redes de mulheres…ao se individualizarem todos estes espaços, fragmentando-se, um acaba na consulta do psiquiatra. E aqui os profissionais temos que enfrentar desafios inéditos. O dos transtornos alimentares, por exemplo, que é umha cousa que nom conhecíamos. Nas famílias, deixa-se de comer em colectivo, cada um leva os seus ritmos e horários, e geram-se padecimentos relacionados na solidom, em outra relaçom com a comida, com o corpo.

Como enfrentades isto os psiquiatras?

Com umha pressom enorme. Socialmente, pretende-se que esta ‘pequena psiquiatria’, como eu a chamo, solucione cousas que nom pode solucionar. E, aliás, nom esqueçamos que emerge o mercado dos fármacos em massa. Nalgum dos sectores sociais que trato, nomeadamente mulheres de mais de 60 anos, o índice de pessoas que se medicam por desconfortos mentais ultrapassa o 50%.

Medicamo-nos para estar alegres, medicamo-nos para ter apetito, medicamo-nos para dormir, medicamo-nos para o sexo. Claro, isto é produto dumha ofensiva de mercadotécnia fortíssima das empresas farmacéuticas

As empresas nom melhorárom os resultados daquelas velhas pílulas de outrora, muito mais baratas, mas si que as refinárom. Produtos como o Prozac tenhem muitos menos efeitos secundários, e daí que joguem umha espécie de papel cosmético. Medicamo-nos para estar alegres, medicamo-nos para ter apetito, medicamo-nos para dormir, medicamo-nos para o sexo. Claro, isto é produto dumha ofensiva de mercadotécnia fortíssima das empresas farmacéuticas, que nos convidam a congressos pagos num ambiente de luxo oferecendo os seus produtos, aprovados, por vezes, por prémios Nobel. E  umha pressom parecida exercem sobre as famílias dos doentes

Pílulas. GL.

Quiçá esta inclinaçom social por patologizá-lo todo tenha a ver com umha falta de assunçom da dor como parte da vida?

Si, o hedonismo de massas nom assume a dor, e a medicina maioritária contribui para isto. Eu chamo-o narcisismo da medicina. A OMS define a saúde como ‘o máximo degrau de bem estar’. Isso que quer dizer? Que qualquer rebaixa nas expectativas de felicidade máxima é concebida como doença. O termo utilizado pola nossa geraçom, e vigente desde tempos de Freud, ‘neurose’, é substituído por ‘trastorno adaptativo’. Entom todos somos trastornados. Pois Freud chamava à neurose ‘psicopatologia da vida quotidiana’, e referia-se a essas pequenas dores que padecemos inevitavelmente por muitos factores, e produzidas pola aspereza das relaçons humanas reais.

Como reagiste como psiquiatra neste novo contexto?

Júlia Varela

Fum muito ciente de que a esquerda estava num beco teórico, que a pressom dos laboratórios farmacéuticos nos desarmava…eu estava realmente desanimado. Foi entom quando descobrim novas achegas para analisar, e na medida possível combater, este processo de individualizaçom na esquerda foucaultiana. Há nesse sentido achegas muito interessantes dumha galega, Julia Varela, e também Fernando Álvarez Uría. Tenho colaborado o que puidem com este sector, e continuei a participar da Associaçom Espanhola de Neuropsiquiatria. É umha velha associaçom que arranca de tempos republicanos, com a que eu rachara, pola esquerda, há bastantes anos, mas hoje reconheço que é o único colectivo profissional que nom está colonizado polos laboratórios.

A outra cara da patologizaçom massiva destas décadas foi a expansom da personalidade calculista, que entende as relaçons humanas em termos de custe-benefício. Tu tens manifestado que quando o que a sociologia denomina ‘free-rider’, o egoísta planificador,  é tolerado e se extende além dum certo limite, a sociedade corre o risco de colapsar. Podes desenvolver esta tese?

A teoria do free-rider nasceu em escolas sociológicas liberais, de direitas, e curiosamente foi aplicada ao estudo do colapso do socialismo real. Deita porém umha luz muito interessante para entender as nossas sociedades capitalistas. Esta sociologia fijo estudos muito detalhados, quantitativos, que aplicárom mesmo a sociedades de pre-homínidos. Por exemplo aos grupos de gorilas. Em certas comunidades de gorilas, os animais tenhem que despiolhar-se reciprocamente para manterem a saúde colectiva. Sempre há um certo número de gorilas que recebem o benefício de serem despiolhados sem despiolharem, mas se o número destes ‘free riders’ supera um certo limiar, os conflitos extendem-se e o grupo disolve-se.

Desapareceu o prestígio do altruísmo, do dever, da entrega ao colectivo. A empatia enfraqueceu-se muito, já nom se adoita conceber a dor dos outros como própria.

Nom é muito diferente do que acontece no capitalismo desenvolvido. Desapareceu o prestígio do altruísmo, do dever, da entrega ao colectivo. A empatia enfraqueceu-se muito, já nom se adoita conceber a dor dos outros como própria. No socialismo real, a expansom do ‘free rider’ deu lugar a umha expansom insostível da burocracia, a formaçom de comités para supervisons de comités, e outros comités para o estudo de nom sei que comités…no capitalismo funciona doutro modo, a partir do cálculo do sucesso individual, mas o processo é parelho.

O ‘free rider’ é na realidade o herói da nossa sociedade, e entrou no âmbito das relaçons de parelha, familiares, no mundo laboral. Por isso se elude o conflito colectivo em favor de estratégias de subsistência individual.

Freud ajuda-nos também a compreender isto. Tendemos a pensar que as patologias, se se conhecem, som algo que a pessoa quer superar, mas nom sempre é assi. Às vezes, as pessoas afundam nas patologias porque entende que lhe fornecem certos privilégios. Freud chamou-no ‘a vantagem como sintoma’, e aplicou-no aos histéricos: pessoas que, pola satisfaçom de chamarem a atençom, estavam dispostos a passar todo tipo de penalidades. A mesma análise pode aplicar-se ao vitimismo, ao gozo de sentir-se espezinhado. E na nossa sociedade também há muitíssimas pessoas que procuram a vantagem como sintoma a través do egoísmo calculador. Porque o ‘free rider’ é na realidade o herói da nossa sociedade, e entrou no âmbito das relaçons de parelha, familiares, no mundo laboral. Por isso se elude o conflito colectivo em favor de estratégias de subsistência individual. Se isso se espalha ainda mais, estamos fundidos.

A esquerda baseou a sua intervençom histórica nas lealdades de classe, vizinhais, na camaradagem de partido ou sindicato. Hoje parece gravitar sobre todo em afinidades parciais que se fabricam no meio virtual, coincidências de opiniom a distância. Que efeitos pode ter isto?

Sociofobia. César Rendueles.

Para mim, negativos. Com certeza, as velhas solidariedades nasciam nas relaçons cara a cara. Nom só na fábrica, mas também no convívio prolongado, no partilhar todo um mundo de vida para além do laboral. O que estamos a viver é muito novo e porém eu já o tenho na clínica: rapazada que bota oito horas por dia no computador, os pais preocupados polas suas dificuldades de socializaçom, celebridades que ganham a vida por publicitarem os seus gostos na rede. Os efeitos na esquerda deste fenómeno estudou-nos César Rendueles na obra ‘Sociofobia’, que acho é um termo muito apropriado. A fantasia de parte da esquerda contemporânea já nom é tomar nenhum poder, nenhum lugar físico, mas apenas a rede.

Neste momento, o único que podemos dizer é contrapor as ideias ilustradas, a liberdade, igualdade, fraternidade, e o encontro físico, a todo tipo de soluçons íntimas.

Eu, quanto ao presente, no futuro imediato, som pessimista, mas também nom me resigno e as cousas podem mudar num sentido totalmente diferente. Neste momento, o único que podemos dizer é contrapor as ideias ilustradas, a liberdade, igualdade, fraternidade, e o encontro físico, a todo tipo de soluçons íntimas. E dizer que, se até agora o abuso do mundo virtual nom incrementou o nosso bem estar, contribuindo para todo o contrário, a soluçom passa, no mínimo, por nom insistir na mesma receita. Por enquanto, nom podemos dizer muito mais.

Defendes várias ideias valentes e também impopulares na esquerda. Refletes, por exemplo, sobre a prisom. O mundo penitenciário é-lhe indiferente a boa parte da esquerda, e o sector que se preocupa com ele, nomeadamente o libertário, aposta na sua aboliçom. Tu, polo contrário, tes manifestado que as prisons devem existir, ‘porque o mal existe, e nom lhe podemos virar as costas’. Em que baseas esta posiçom?

Em que acho que há umha via intermédia entre o pensamento liberal, o de ‘construamos mais cárceres’, e o rousseaunismo ingénuo, que diz que o mal procede apenas da opressom de classe. Nom, o mal existe. Tenho matinado sobre ele, e venho de escrever num livro sobre isto, a fundo, a propósito da experiência nazista. A mim também me atormentou essa questom que atormentou a Semprún, e a Levi, de como a naçom mais culta da Europa abraçou o nazismo; e como aqueles homens que tocavam a Beethoven no piano depois cometiam atrocidades indizíveis. E discordos com Hanna Arendt quando fala da ‘banalidade do mal’, e diz que Eichmann era um burocrata, um idiota, umha pessoa vulgar. Nom, era um autêntico monstro, e nom se explica apenas pola burocracia.

Adolf Eichmann no julgamento de Nuremberg. Wikipedia.

Entom, eu acho que há um momento de liberdade que permite o mal, há umha responsabilidade, e nom todo o explica a estrutura, nem as condiçons. Entom, como o mal existe, há que esculcá-lo, e prevê-lo no possível, de forma realista. Por vezes, vê-se em comportamentos infantis, no gosto pola crueldade, e logo estende-se na adolescência, por exemplo nessas bandas juvenis que aterram as mulheres de maneira massiva em países como México. A esquerda americana, nomeadamente norte-americana, tem-no estudado muito bem, mesmo com modelos quantitativos. Nos USA há estudos da violência com métodos epidemiológicos que descobrírom que, em certos bairros, há umha estensom do mal que continua este processo contagioso das epidemias. O que se trata é de detectar os focos, e tentar neutralizá-los com mediadores, com interventores profissionais. Nisso cumpre umha funçom muito importante o sistema escolar, mas também a prisom, e logo a atençom à saída da prisom. A isso me refiro quando falo de gerir o mal.

Em outra das tuas declaraçons, politicamente incorrectas, atribues comportamentos da esquerda próprios da ‘dissonáncia cognitiva’, e que para ti se originam num optimismo sem fundamentos que se basea em afirmar que ‘venceremos aconteça o que acontecer’.

Si, isto apliquei-no ao PCE na ditadura, do que era militante, e supujo-me perder amizades (risos). Dirigentes como Carrillo e Santiago Álvarez estavam a dizer-nos cada ano que ‘o regime estava para cair’. E muitas vezes a expor-nos à repressom, sem cautela nenhuma, com a falsa expectativa de que a ditadura se esboroava. O fenómeno passa em grupos humanos diversos, e chama-se dissonáncia cognitiva. Mesmo pugem o exemplo dumha seita milenarista norteamericana, composta por pessoas muito inteligentes, e profissionais formados, que tinham marcado o fim do mundo para umha data determinada. Quando o fim do mundo nom se produziu, contra toda evidência, eles nem deixárom a seita nem reconhecêrom o errado da sua previsom, senom que dixérom que o Planeta continuava porque ‘tinham rezado muito’. Nom é umha caricatura, é real.

Eu acredito na utopia, nas mudanças radicais, mas estas som longas, e nom podemos fechar os olhos ao duro da realidade.

Entom, na esquerda, a realidade é mui dura, mui difícil, mas nós queremos acreditar que a vitória vem aí, e nom demora. E artelhamos argumentos enrevessados com este vies cognitivo errado. Eu, nesse sentido, aprendim muito da minha experiência sindical. Militei na Corriente Sindical de Izquierdas, e nom me foi mal, como delegado, e curiosamente foi-me fatal como militante de Izquierda Unida. Ao falar com os meus companheiros de trabalho, diziam-me: ‘nom, é que nos caes mui bem, do que nom gostamos é das tuas ideias. Porque de triunfarem os teus, na política, vamos perder o piso’. E cousas do género. A que conclusom cheguei? Que o liberalismo é forte, que tem grandes apoios sociais, e nom tem a ver estritamente com a razom. Há muita gente imune à razom. Senom como explicamos o racismo? Vemos muita gente, milhares e milhares de pessoas, que som racistas, e ainda se lhe damos razons sólidas em contra, mais racistas se fam. Eu acredito na utopia, nas mudanças radicais, mas estas som longas, e nom podemos fechar os olhos ao duro da realidade.

Junto a esta dissonáncia cognitiva, o fenómeno do cissionismo também pode ser explicado com fundamentos psicológicos.

Pode, porque é o reverso do mesmo problema. Como as profecias nom se cumprem, antes de reconhecermos que muitíssimas pessoas nom gostam das nossas ideias, preferimos canalizar a frustraçom contra o outro, o do lado, ou o colectivo rival: o que nom militou bem, o que nom é bom, o discurso que se fijo mal. É um tipo de sadomassoquismo, todo para nom assumir de maneira fria que a direita tem umha base popular forte e arreigada que nom descansa apenas em razoamentos. Numha atitude, a nossa, que nos culpabiliza e nos frustra numha flagelaçom sem sentido. Eu acho que o sensato é instalar-se num certo pessimismo do presente, mas sabendo que a longo prazo todo pode mudar, mesmo o mais consolidado.

Eu acho que o sensato é instalar-se num certo pessimismo do presente, mas sabendo que a longo prazo todo pode mudar, mesmo o mais consolidado.