De acordo com Castañeda (1995: 105-106), no México dos anos 70 havia “condições maduras para o surgimento de um movimento armado importante”: estudantes radicalizados, camponeses empobrecidos, um governo repressivo, o começo de uma contração econômica, a tradição revolucionária, uma cultura da violência e falta de alternativas. Não havia para as guerrilhas deste país, no entanto, uma outra condição indispensável para o êxito da luta armada na América Latina: o apoio externo que normalmente era Cuba que oferecia.
O isolamento peculiar que sofria a guerrilha no México, ao lado das outras “condições maduras” apontadas por Castañeda, contribuíram para o surgimento de uma luta armada original. Em circunstâncias que dificultavam a obtenção de armamentos, treinamentos, e qualquer tipo apoio, as FLN lograram sobreviver através da ênfase no “trabalho político”. Com um plano estratégico de preparação lenta para uma revolução, podiam evitar as outras formas clássicas de obtenção de recursos por guerrilhas, tais como seqüestros e assaltos, e não realizavam ações de propaganda armada que também poderiam ter atraído o esforço de aniquilação do Estado. Ao contrário da maior parte dos grupos armados dos anos 60 e 70, conseguiram escapar à repressão, não sem sofrer importantes baixas.
A ênfase no trabalho político, por sua vez, teve implicações importantes na estratégia tomada na acepção elaborada para esta dissertação: padrões da prática, da organização e do discurso que estão relacionados à sobrevivência e aos objetivos do movimento. Embora esta guerrilha estivesse organizada de maneira hierárquica e de acordo com preceitos militares, desde o princípio não se tratava de uma hierarquia rígida, já que as práticas cotidianas eram sobretudo políticas, e também por ela depender dos seus próprios militantes para prover-se de todos os recursos. O principal fator de poder entre os seus membros era a diferença de preparo intelectual entre uma direção formada por intelectuais e profissionais liberais de um lado, e de outro operários e camponeses que recebiam uma intensa e secreta formação política e militar. O que garantia a unidade hierárquica e o segredo eram os rituais de passagem e a possibilidade de ascensão progressiva nos vários graus de inserção para dentro e para cima nesta sociedade secreta. Para operários e camponeses, era também a oportunidade para receber instruções com professores das melhores universidades do país. O isolamento, a composição encabeçada por intelectuais bastante inspirados na história mexicana e a instalação de aparelhos em lugares remotos como Chiapas, tornou possível o caráter heterodoxo de uma ideologia menos agarrada às teorias consagradas do que à reflexão sobre a história e mais permeável às influências culturais dos seus recrutas operários e camponeses.
Essa adaptação ao contexto peculiar da luta armada no México dos anos 60 e 70 não levou à revolução que os primeiros militantes imaginavam. E na maior parte do país não levou a êxitos organizativos importantes: apenas o órgão instalado em Chiapas cresceu e se desenvolveu, o EZLN.
No oriente do estado de Chiapas, fronteira agrícola, onde os serviços públicos corruptos e a política de desenvolvimento oficial de Chiapas que desde o século XIX esteve voltada para uma modernização com base nas grandes propriedades privadas.
A Igreja contribuiu para a reestruturação política das comunidades que iam se formando na Selva, que passaram a assumir formas de organização independentes em relação às práticas clientelistas do regime pós-revolucionário. O sistema corporativo tinha levado à formação dos caciques, elites políticas e econômicas no interior das comunidades tradicionais e cujo poder dependia não mais das relações sociais comunitárias, mas da inserção nas estruturas corporativas do regime. E as novas comunidades independentes, com o auxílio de laicos e religiosos que chegavam de outras partes do país e do mundo, puderam formar vigorosos movimentos sociais nos anos 70. Mas ao contrário do que ocorreu com o município de Mazatlán Villa de Flores de Oaxaca, onde apesar da violência dos caciques locais e regionais não se mencionou a presença de disputa por terras ou de latifundiários, e onde a mobilização pacífica foi capaz de alcançar, aos poucos, o atendimento de demandas políticas e econômicas no contexto da luta pela democracia dos anos 90, os movimentos independentes de Chiapas foram enfrentando condições cada vez mais adversas nos anos 70 e 80. Estavam muito mais isolados do centro político do país, enfrentavam a redução progressiva das políticas sociais com o começo das políticas neoliberais em 1982, sobretudo após a eleição de Salinas em 1988, e se deparavam com o aumento da repressão com as guardias blancas e a militarização do estado justificada pela proximidade da guerrilha guatemalteca.
A entrada das FLN e outros grupos de esquerda na Selva Lacandona foi facilitada pela Igreja e, diante da repressão crescente, a oferta de treinamento para a autodefesa das comunidades foi o que permitiu as FLN passarem do recrutamento individual para a tomada de comunidades inteiras que começavam a constituir o exército popular que se havia planejado sob a sigla EZLN. A massificação da guerrilha levou à sua primeira grande transformação: o envolvimento das comunidades seria impossível sem que fossem absorvidos os padrões das práticas políticas que vinham se estabelecendo nas comunidades da Selva e nos movimentos independentes desde os anos 70. E o fato de ser uma guerrilha que não apenas treinava para a guerra, mas que no dia a dia priorizava o trabalho político, garantiu que a sua hierarquia fosse suficientemente frouxa para estender-se para o interior das comunidades ao mesmo tempo em que começava a absorver as suas práticas políticas. Além disso, se originalmente as FLN dependiam dos seus militantes para se prover de recursos, o seu órgão chamado EZLN dependia quase inteiramente das comunidades, primeiro para que deixassem passar os suprimentos e mantivessem o segredo sobre a sua presença, e depois para abastecer diretamente com alimentos os acampamentos em que já havia dezenas e depois centenas de guerrilheiros profissionais. Estes formavam o topo da hierarquia militar, se dedicavam todos os dias à preparação militar e ao proselitismo político, e treinavam a população civil para compor as bases do exército popular.
Para as comunidades o projeto de formação de um exército popular era desconhecido, e tratava-se da preparação para a autodefesa e da formação de um exército das comunidades. Por outro lado, o rígido e intenso processo de formação política pelo qual passaram os primeiros quadros do EZLN e que garantia uma hierarquia baseada no grau de envolvimento, capacitação e conhecimento dos segredos da guerrilha não poderia ser aplicado em grande escala, o que era mais um fator de afrouxamento dos aspectos verticais da organização. Na medida em que se ampliava o trabalho de proselitismo e recrutamento nas comunidades, esse trabalho passou a depender cada vez mais dos quadros indígenas e do seu discurso cada vez mais marcado pela cultura indígena. Como intermediárias entre as comunidades e a cúpula das FLN, as lideranças indígenas haviam se tornado um poder real dentro de uma guerrilha cujas ramificações urbanas e em outras partes do país não haviam prosperado.
Na virada para os anos 90 vários fatores começaram a contribuir para deteriorar a importância dos saberes revolucionários da elite das FLN e a força da hierarquia em que se inscrevia o EZLN. A crise do socialismo real no mundo e o avanço dos ideais democráticos no país levaram ao desânimo ou à prudência e enfraqueceram as ramificações urbanas e as células em outras partes do país que não haviam conseguido se desenvolver como o EZLN. Em Chiapas a guerrilha começou a ter que lidar com a competição com a Igreja, que a havia protegido, e os movimentos independentes no interior dos quais tinha crescido, pois entre eles se fortalecia a luta democrática e eleitoral e porque o crescimento do EZLN levou à disputa política por áreas de influência. E esta concorrência obrigou o EZLN a começar a incorporar os valores democráticos necessários para enfrentar os tradicionais aliados que começavam a se afastar em nome desses valores. Por outro lado era necessário apressar os preparativos para uma guerra, pois tanto o contexto internacional como o nacional pareciam cada vez mais desfavoráveis, era cada vez maior o risco de que um EZLN de grandes proporções fosse detectado e aniquilado antes de começar a sua luta, e era preciso corresponder às expectativas das lideranças e comunidades mais engajadas e conhecedoras dos objetivos da guerrilha que vinham dedicando tanto esforço para uma revolução que nunca chegava. Para as comunidades indígenas isoladas em Chiapas e frustradas na expectativa alimentada por décadas de reforma agrária oficial e que chegava ao fim com a reforma constitucional de 1992, a queda do socialismo real significava nada ou quase nada. A consulta às comunidades zapatistas sobre o início de um levante foi articulada por Marcos e pelas lideranças indígenas, que estavam afinadas com ele, e levou a um enfraquecimento ainda maior da autoridade das FLN sobre o EZLN.
Talvez a fase de preparação para o levante tenha sido aquela em que o EZLN tenha sido, de fato, mais autoritário em suas relações internas e com as comunidades sob a sua influência, já que por definição um esforço de guerra leva ao fortalecimento dos aspectos militares de uma organização. A mobilização para o levante serviu, num primeiro momento, para tornar possível as mudanças formais na estrutura da guerrilha que impediam Marcos e as lideranças indígenas, com as quais estava bem afinado, de exercer livremente no EZLN o poder que já estava em suas mãos. Ao mesmo tempo, porém, essas mesmas estruturas formais começavam a assumir feições mais participativas, mudança que garantiu o lastro de legitimidade necessário para garantir a coesão das comunidades num esforço de guerra.
Os aspectos democráticos do EZLN foram um trunfo fundamental para conquistar a simpatia de grande parte da sociedade civil a partir de janeiro de 1994. O subcomandante Marcos, cujo pensamento político sofreu a influência de cerca de 10 anos de vivência na Selva e na vida comunitária das comunidades, foi provavelmente um dos poucos capazes de prever a importância que teriam os valores democráticos e étnicos na tentativa de se estabelecer uma aliança com a sociedade civil durante o levante, pois os documentos das FLN de 1993 ainda eram fortemente ortodoxos. E embora a Primeira Declaração da Selva Lacandona, redigida antes do levante, colocasse em primeiro plano um projeto ainda marcado pelo tom revolucionário clássico, nos primeiros comunicados de Marcos e do CCRI-CG os dirigentes do EZLN se mostravam definitivamente à vontade127 para propor valores democráticos radicais e marcados pela cultura indígena, através de um discurso cujas raízes remontam àquele formado no proselitismo das lideranças indígenas do EZLN nas comunidades. Os aspectos de um discurso calcado em valores morais e voltado para as comunidades, se somaram aos recursos estilísticos literários ocidentais utilizados por Marcos para atingir a sociedade civil: menos a literatura científica do que a poesia e a prosa. Quase não sobrou nada dos tradicionais discursos da esquerda revolucionária, embora os valores dos mais variados segmentos progressistas e populares fossem contemplados. E o discurso evocava também o tradicionalmente forte nacionalismo mexicano e os símbolos de uma nação que Estado vinha trocando por um discurso modernizador neoliberal.
Os aspectos da conjuntura que contribuíram para o êxito do EZLN em seduzir a opinião pública e começar a estabelecer vínculos com a sociedade civil foram tantos que certamente não foram previstos por viva alma: a deterioração das condições de vida da população, especialmente no campo, na medida em que o Estado foi abandonando as políticas sociais que remontam especialmente ao cardenismo dos anos 30 e o novo populismo dos anos 70, e que eram uma das grandes marcas do regime pós-revolucionário; o aumento do autoritarismo com a crise dos modelos político e econômico pós-revolucionários, com o enfraquecimento do controle corporativo e o aumento da violência política e das fraudes eleitorais; o processo de organização independente da sociedade civil e da esquerda democrática, que eram fustigadas por fraudes eleitorais e assassinatos políticos, estavam desmotivadas com o êxito de propaganda do governo Salinas que prometia a entrada do México no primeiro mundo através do TLC, e que viram no tema do levante uma brecha por onde fazer avançar a contestação do autoritarismo e do modelo econômico neoliberal; a existência de ONGs em Chiapas, particularmente as de direitos humanos, que já conectavam o estado ao país e ao mundo em grande parte graças à atuação da Igreja, e que foram o embrião dos intercâmbios políticos e de informação intensos que se desenvolveriam entre as comunidades zapatistas e a sociedade civil nacional e internacional a partir do levante; o envelhecimento dos símbolos e discursos de esquerda que foram particularmente fortes até os anos 70 e o refluxo da esquerda no mundo após a queda do socialismo real, contexto no qual o EZLN trazia novos símbolos e uma energia renovada; a presença das modernas tecnologias de comunicação à disposição, senão do EZLN isolado nas comunidades e montanhas, da grande imprensa que encontrou um excelente produto para os seus consumidores, e da sociedade civil que passou a fazer amplo uso da internet e outras formas comunicação alternativa para fazer circular discursos, imagens, sons, e inventar novas formas de debate e articulação política; e os aspectos lúdicos da guerrilha que a tornavam um tema com maior capacidade de penetração nos meios de comunicação grandes e pequenos.
O levante nos primeiros dias teve um efeito em cascata de ações violentas, que chegaram a atingir até embaixadas mexicanas no exterior. Mas o efeito que determinou o rumo dos acontecimentos foi a mobilização em massa nas principais cidades do país pedindo paz e renovando as demandas por democracia e justiça social. O então presidente Salinas, preocupado com as fissuras que começavam a se dar na imagem pomposa que o país vinha mantendo, abriu a possibilidade para que se instalasse a trégua e tivessem início as negociações com a guerrilha, facilitadas também graças ao papel mediador e de luta pela paz que assumiu o bispo Samuel Ruiz. O EZLN, cujo plano estratégico era realizar uma ação armada suficientemente impressionante para alcançar êxitos de propaganda e forçar a queda do regime autoritário, aproveitou as circunstâncias para começar a se aproximar da sociedade civil, cuja presença em San Cristóbal foi organizada pelas ONGs de Chiapas. Ao mesmo tempo, teve uma política de comunicação ativa, procurando criar boas relações com alguns dos principais jornais de circulação nacional, fornecendo comunicados e eventos cuja difusão chegou a aumentar as vendas dos jornais, e procurando impedir o trabalho da Televisa, cuja cobertura era francamente desfavorável à guerrilha. A possibilidade que se abriu para o EZLN de se aliar com uma sociedade civil contrária à luta armada, e os êxitos que começou a colher com sua política de comunicação, levaram a guerrilha a uma nova etapa na lenta transformação da sua estratégia.
No decorrer de 1994 a estratégia do EZLN passou a se compor de uma aliança mais ou menos tácita com vários setores da sociedade civil, que se via majoritariamente na posição de mediadora para encontrar uma solução pacífica que incluísse reformas democráticas e econômicas, enquanto a guerrilha adotou um discurso em que renunciava ao menos momentaneamente à solução armada em “obediência” ao desejo popular. O papel de mediação conferia uma importância política cada vez maior à Igreja, às ONGs de direitos humanos e outras, gerava uma mobilização e um tema que os grupos de esquerda e o cardenismo em particular procuraram capitalizar para se fortalecerem e para atacar o governo neoliberal. A estratégia do EZLN também tinha uma forte política de comunicação e de ações espetaculares já não mais violentas, e que contava não só com a capacidade de penetrar na grande mídia, mas também com a circulação cada vez mais difusa de informações e debates sobre o zapatismo através da internet e outros meios de comunicação alternativos. E o EZLN começava a tentar estimular a união dos movimentos sociais de todo o país na CND, que teria o papel de derrubar o regime pacificamente e encaminhar uma transição democrática. O plano estratégico que corresponde a esta etapa é o que aparece para a sociedade civil na Segunda Declaração da Selva Lacandona, mas após as eleições presidenciais de 1994 o EZLN começou a tomar um novo rumo.
A CND tinha sido bem sucedida em fortalecer a participação social de base, mas as organizações mais fortes que entraram nela começaram uma luta fratricida pelo poder e por suas diferenças sociais e ideológicas. Além disso, o EZLN tinha dificuldade em aglutinar o setor sindical, para o qual não tinha um discurso específico e que estava quase inteiramente viciado pelas estruturas corporativas do regime, os fortes movimentos indígenas de Chiapas, que adotavam uma estratégia econômica que contrastava com a ênfase do EZLN na transformação política nacional, e mantinha uma posição de distância crítica em relação aos partidos de oposição, por valorizar a participação direta e formas alternativas de representação. E se o EZLN imaginava que através da aliança nacional poderia criar um movimento civil capaz de derrubar o regime, o que ocorreu foi que, paradoxalmente, predominou na CND a opção pelo empenho na via eleitoral nos moldes do cardenismo. Após as eleições a luta adotada pela CND se viu frustrada não só por não se poder culpar de maneira convincente as fraudes eleitorais pela derrota de Cárdenas que ficara em terceiro lugar, como também porque os planos de “insurreição civil” no caso de fraude ficaram esvaziados. Não tinha havido uma grande fraude como em 1988, e sim muitas pequenas fraudes cujas denúncias foram vindo à tona com o tempo. O período pós-eleitoral foi de volta à apatia no nascente zapatismo civil, enquanto o Exército Mexicano ia apertando o seu cerco militar em Chiapas. E o EZLN percebia que sua posição de espera de uma ação civil comprometia a necessidade de lançar iniciativas que renovassem a sua penetração na mídia.
Se o plano de insurreição civil da CND havia fracassado no país, teve êxito em Chiapas, onde os movimentos indígenas que permaneciam independentes, aliados com o PRD, anunciaram a autonomia de nove municípios pluriétnicos e do estado com o governo em rebeldia de Amado Avendaño. Demonstrando afinidade com essa iniciativa, o EZLN começou a colocar em marcha as novas táticas que redefiniam a sua estratégia: retomou a ameaça de recurso à violência declarando sucessivamente o rompimento dos diálogos, o fim da trégua e o início de uma ação militar, que consistiu numa ação espetacular em que suas tropas apareceram fora da região que controlava militarmente, mas evitando a violência e declarando a autonomia de 36 municípios. E enquanto isso começou a se aproximar de Cárdenas, e propôs à sociedade civil a ampliação do seu leque de alianças de maneira a aglutinar no MLN a participação ativa do EZLN, da CND e do PRD com a liderança de Cárdenas, renovando a proposta de que uma ampla aliança nacional seria capaz de derrubar o regime e formar um governo de transição. No discurso do EZLN, a declaração oficial que expressa o plano estratégico formulado a partir da correção de rumos que vinha se esboçando nas práticas e discursos dos meses anteriores foi a Terceira Declaração da Selva Lacandona. Nela vinha o lema da transformação através de “todas as formas de luta”, o que incluía da ameaça de violência do EZLN à atuação partidária.
Essa estratégia se viu frustrada rapidamente, com a ofensiva militar e espetacular do governo em fevereiro de 1995. O EZLN perdeu o seu controle militar sobre parte do território de Chiapas, passou a impressão de não ter um grande poder de fogo, e ficou explícito que a guerrilha já estava presa numa situação paradoxal: precisava do apoio da sociedade civil para se proteger da repressão, para manter esse apoio não podia passar a ações violentas, e sem essas ações ia ficando cada vez mais despreparado para combates militares e o cerco do Exército Mexicano ia se apertando e fragilizando cada vez mais as suas posições militares. Por outro lado, a imediata renovação das grandes mobilizações populares, que já mostravam uma identificação mais forte com o zapatismo, a primeira importante demonstração de força dos movimentos de solidariedade com o EZLN ao redor do mundo, e a conseqüente reabertura das negociações com o governo nos diálogos de San Andrés, levaram à consolidação das transformações estratégicas que levariam ao zapatismo que existe até os dias de hoje.
O vínculo do EZLN com a sociedade civil começou a se tornar mais estreito e orgânico, primeiro com a abertura dos acampamentos de paz e depois com os novos Aguascalientes, mantendo um cada vez mais eficiente sistema de observação de direitos humanos combinado com um fluxo permanente de ajuda humanitária que ajudava o EZLN a manter a sua liderança local. Os alimentos, roupas, projetos sociais e produtivos ajudavam as comunidades a enfrentar o cerco militar e eram alternativas aos programas sociais usados pelo governo como forma de cooptação. A visita crescente de ativistas do país e do mundo aumentava a força da divulgação do zapatismo, e começou a transformar Chiapas numa espécie de Meca da esquerda internacional. E a longa duração dos diálogos de San Andrés permitiu ao EZLN se tornar um assunto que se renovava a cada fase das negociações, além de facilitar o contato com lideranças e intelectuais de todo o país para se articular uma série de eventos e encontros que tinham também fortes repercussões. A Consulta Nacional e a incorporação do pensamento de líderes sociais e intelectuais na formulação das demandas e posições do EZLN nas negociações com o governo iam ampliando a identidade, a legitimidade e representatividade do zapatismo. E os encontros da sociedade civil tais como o Fórum Social Indígena e o Fórum Para a Reforma do Estado foram substituindo a fracassada CND na formação de novas organizações e alianças da sociedade civil. Levaram à formação do Congresso Nacional Indígena, que foi capaz unificar amplos setores dos movimentos indígenas, e lançaram as bases para a formação da Frente Zapatista de Libertação Nacional, que apontava para a possibilidade de que o EZLN abandonasse definitivamente as armas. E os primeiros encontros americano e intercontinental não só consolidaram Chiapas como uma Meca da esquerda internacional como impulsionaram as redes ativistas internacionais de comunicação e solidariedade horizontal que se tornaram possíveis com a internet e que constituem atualmente os famosos movimentos anticapitalistas e as mobilizações sincronizadas ao redor do mundo: o forte nacionalismo do EZLN tinha passado a se combinar, paradoxalmente, com um forte internacionalismo. Essa transformação estratégica do EZLN corresponde à Quarta Declaração da Selva Lacandona, que confirmava a renúncia que vinha desde março de 1995 a qualquer ameaça explícita da possibilidade de opção pela a luta armada e enfatizava a busca pela conversão do EZLN em força política. A estratégia do EZLN passava a se centrar na “palavra”, expressão com o duplo significado de participação e comunicação. E ia para o primeiro plano a valorização da diversidade, expressa no lema “por um mundo onde caibam muitos mundos”.
Entre 1995 e 1996 o zapatismo tinha ganhado um forte impulso nacional e internacional, e o EZLN teve garantida uma renovação quase permanente da sua visibilidade na grande mídia. Com a interrupção dos diálogos com o governo, porém, o EZLN teve reduzido o seu contato com as lideranças e intelectuais e voltou ao isolamento atrás de suas armas. Claro que já havia os Aguascalientes e os acampamentos de paz, mas perdeu a capacidade de aglutinação e articulação que as negociações com o governo propiciavam. Além disso, a negativa do governo à proposta de reforma constitucional da COCOPA deixou claro que o governo não estava disposto a ceder em nada e que o desarmamento só seria possível através do que para os zapatistas seria uma rendição. Por outro lado, a posição favorável à proposta da COCOPA reduzia as demandas efetivas do EZLN àquelas relativas aos povos indígenas e à luta pela autonomia. Essas circunstâncias levaram às últimas mudanças na estratégia que o EZLN mantém até os dias de hoje. Ao invés de buscar a renovação permanente da sua visibilidade e de iniciativas para fomentar espaços de comunicação e participação, passou a concentrar os seus esforços em alguns poucos porém muito espetaculares eventos, e surgiram também os períodos de “silêncio”, em que o EZLN passa longas temporadas sem lançar comunicados. E em relação ao governo, passou a se concentrar nas demandas pela desmilitarização de Chiapas e o cumprimento dos Acordos de San Andrés. Em 1998 lançou a Quinta Declaração da Selva Lacandona, que foi também a última. Esta declaração não expressava uma mudança significativa de plano estratégico, mas completava a Quarta Declaração de maneira poética: se uma tinha anunciado a “palavra” como forma de luta, esta anunciava o “silêncio”. Um silêncio que corresponde à capacidade de escutar e aceitar o discurso e a participação do outro, de deixar espaços para que os movimentos sociais se organizem sem a onipresença do EZLN, e um silêncio que na prática ajudava a evitar o desgaste da exposição permanente e fortalecia as esporádicas grandes ações da guerrilha. Nesta Declaração saiu também do primeiro plano a tentativa de unir em uma mesma organização todos os seus simpatizantes do EZLN, e se passou a celebrar os laços de solidariedade e comunicação diversificados que constituíam o zapatismo civil. A Quinta Declaração era uma convocatória à segunda grande consulta do EZLN, ocorrida em 1999. No fim do mesmo ano realizou-se no Brasil, graças ao PT, o Segundo Encontro Americano Pela Humanidade e Contra o Neoliberalismo. E em 2001 Marcos foi à cidade do México, numa marcha do EZLN que contou com inúmeros comícios, encontros e até um discurso no Congresso.
O zapatismo é um fenômeno de muitos paradoxos: uma guerrilha que não realiza ações violentas, revolucionários que não querem o poder, e muitos outros cuja beleza poética aparece nos comunicados do EZLN ou na invenção dos seus simpatizantes mundo afora. Mas há um paradoxo fundamental cujas conseqüências passaram a ocupar talvez a maior parte do trabalho de divulgação e solidariedade com as comunidades zapatistas. Se o espetáculo da guerra havia garantido a entrada do EZLN na arena política dos meios de comunicação, o que permitiu ao movimento iniciar sua lenta transformação para uma estratégia da “palavra e do silêncio”, a capacidade de resistência do Estado mexicano às suas investidas e demandas encurralou a guerrilha e as comunidades zapatistas numa situação de forte repressão, controle, agravamento das condições sociais e dos conflitos comunitários. E foi justamente a declaração de guerra do EZLN que impulsionou a militarização não só de Chiapas, mas de todo o país. Quando finalmente a guerrilha encontrou um rumo eficaz para adotar um programa político, o surgimento do EPR justificou a continuidade da militarização. Fazio (1996: 210) afirma que segundo dados do Pentágono o México teve um gasto militar total de dois bilhões e 246 milhões de dólares em 1994, 40% a mais que em 1993. E segundo dados oficiais mencionados por Carlos Acosta, em 1995 o gasto teria sido de sete bilhões e 685 milhões com o Exército e a Aeronáutica, e 2 bilhões e 657 milhões com a marinha. Em 1996 esses gastos teriam passado a 11 bilhões e 122 milhões de pesos para o Exército e Aeronáutica e 3 bilhões e 849 milhões de pesos para a marinha, ou seja, aumentos respectivos de 44,7% e 44,8%.
Em Chiapas, a ofensiva governamental de fevereiro de 1995 marcou o começo da política de contra-insurgência: sessenta mil128 soldados se posicionaram de maneira a isolar os grupos armados nas montanhas, enquanto grupos paramilitares começaram a expandir a sua atuação a partir do norte do estado. Originários das guardas brancas, bandas armadas ligadas aos proprietários de terra e utilizados em seus conflitos durante décadas, os paramilitares são milícias profissionais com o apoio não assumido do Estado, cujo papel é fazer o “trabalho sujo” de levar o terror às comunidades ligadas ou simpatizantes do EZLN. Os conflitos assim intensificados servem, por sua vez, para justificar a presença militar cujo papel seria levar a ordem e impedir os conflitos que ocorrem “entre os próprios indígenas”. Situação que não mudou até os dias de hoje (Saint-Pierre, 1999: 110-123). A expressão corrente utilizada em quase toda a bibliografia e no discurso cotidiano para se referir à política de contra-isurgência mexicana é “guerra de baixa intensidade” (GBI)129, que tem a vantagem de permitir às ONGs e aos intelectuais a manutenção da palavra “guerra” numa situação em que o governo procura passar a imagem de não ser um agressor e de estar contribuindo com suas forças para a manutenção da ordem e da paz em Chiapas. E a referência à “baixa intensidade” acentua a necessidade do governo manter o seu objetivo de aterrorizar as comunidades zapatistas numa escala que dificulte a revelação destas ações através da mídia e a denúncia dos observadores da sociedade civil. A hostilização constante com casos isolados de prisões, estupros e assassinatos pode passar desapercebida pela maior parte da opinião pública, enquanto que um massacre levaria ao escândalo e facilitaria a ativação internacional das redes de solidariedade zapatistas.
Os limites colocados para a intensidade da guerra que o governo e as elites de Chiapas travam contra as comunidades zapatistas se manifestaram em dois momentos cruciais. A forte mobilização após a ofensiva de fevereiro de 1995 mostrou até que ponto o governo poderia lançar mão das suas forças de segurança oficiais, e a necessidade de limitar a intensidade das ações dos grupos paramilitares se revelou com o massacre de Acteal: em 22 de dezembro de 1997 um grupo paramilitar tirou a vida de 45 pessoas, na maioria mulheres e crianças, durante um culto no interior de uma Igreja, o que gerou a primeira grande ação global com as características que atualmente vemos nos movimentos anticapitalistas. Em 12 de janeiro foram realizadas ações de protesto sincronizadas em 130 cidades de 27 países nos cinco continentes. Até mesmo o Vaticano e o Parlamento Europeu divulgaram documentos de condenação ao atentado. Já estava consolidada a malha de redes de comunicação e solidariedade nacional e internacional que impedia que a repressão ao EZLN tivesse um desfecho como os massacres da Guatemala no começo dos anos oitenta ou a intensidade do combate às FARC e ELN atualmente na Colômbia. Redes cuja vitalidade não se deve apenas à gravidade das condições sociais e da repressão, mas também à atração que passou a exercer o discurso, as práticas democráticas radicais e as imagens lúdicas do zapatismo, a ponto de oferecer um novo referencial ideológico e até uma nova linguagem para os ativistas de esquerdas.
GBI é uma guerra de contra-insurgência e nem toda guerra de contra- insurgência é uma GBI. Por isso o autor considera mais adequada a utilização da expressão contra-insurgência para o caso de Chiapas.
Em todo o ativismo de divulgação da solidariedade a Chiapas nota-se a tendência à idealização do EZLN e das suas comunidades autônomas e o esforço em carregar nas tintas pretas o perfil obscuro do governo mexicano, sem o que seria difícil gerar a simpatia e a piedade que mobiliza milhares de pessoas ao redor do mundo no respaldo à estratégia do EZLN e do zapatismo civil. O lema “para todos todo, nada para nosotros”, um dos mais célebres do zapatismo, se refere à disposiçãoromântica de morte por uma causa, que exerce um forte impacto no público; também ao desapego aos valores individualistas e retoma o ascetismo cristão de esquerda vinculado à doação pessoal contra a miséria e o sofrimento dos outros; remete ao desapego em relação ao poder, impulsionando a crítica ao vanguardismo e aos planos estratégicos de busca da hegemonia; e evoca a piedade cristã que junto com a simpatia despertada pelo EZLN mobiliza milhares de pessoas. Este lema, porém, combina perfeitamente com uma outra característica paradoxal da luta zapatista: suas conquistas têm se dado com mais força longe de Chiapas e suas maiores dificuldades se localizam justamente em suas comunidades. Todas as revoluções até hoje sempre visaram conquistas sociais para as regiões onde elas foram travadas e podiam anunciar também uma vocação transformadora mais universal que correspondia à extensão internacional do processo revolucionário, e de fato o EZLN vem procurando implantar a autonomia em seus municípios rebeldes, democratizar social e politicamente o México e estimular o combate internacional do neoliberalismo. Mas há um contraste entre o que se tem alcançado em Chiapas e em outras partes do mundo graças ao zapatismo.
A formação de um exército popular, que incorporou segmentos importantes da população indígena em uma hierarquia militar e nos treinamentos para a guerra coloca um limite difícil de definir para os mecanismos democráticos estabelecidos nos municípios autônomos. Pois embora os representantes das comunidades sejam nomeados em assembléias, e haja uma preocupação em formar a direção do movimento com líderes comunitários, há uma hierarquia militar vertical que permeia as comunidades e cuja importância corresponde à intensidade da repressão que elas sofrem. Isso provavelmente não afeta todas as comunidades, já que muitas se uniram politicamente ao EZLN após o levante de 1994, e podemos formular a hipótese bastante razoável de que seus habitantes não sejam obrigados a receber treinamentos militares e a se incorporar aos postos da hierarquia militar. Além disso, a ênfase na transformação política através de um esforço de guerra enfraqueceu as estratégias de desenvolvimento econômico das comunidades, as colocou na dependência da solidariedade internacional numa situação que colocou limites políticos para o acesso aos programas governamentais, e têm ainda que prover de recursos as tropas escondidas nas montanhas. E como indicam os dados da pesquisa de campo, a precariedade econômica das comunidades dificulta o amadurecimento da participação política dos indígenas e de suas formas de organização democráticas.
A repressão combinada com os esforços de cooptação do governo força o EZLN a exercer um controle sobre as relações e os canais de comunicação entre as comunidades zapatistas e o exterior. Certa vez disse ao guerrilheiro Erasmo (notas de campo, Chiapas, 1/99) que poderia colocar ele em contato com movimentos sociais brasileiros para conseguir apoio para as suas atividades sociais, e ele recusou afirmando que “toda comunicação com o exterior passa por Marcos”. E há punições para os zapatistas que passam informações sem autorização. Isso implica que a circulação horizontal de informações, necessária para o fortalecimento das bases de uma organização em relação aos seus líderes, fica comprometida. E a transparência das atividades da direção, outro fator que permitiria o controle por parte das bases, estão também limitadas pelos riscos de que informações vitais cheguem ao inimigo. O EZLN procura compensar isso com os mecanismos de consulta e as assembléias municipais e regionais. Mas mesmo esses mecanismos são afetados com o cerco militar. Em 1995, o próprio EZLN denunciou que a movimentação de tropas estava inviabilizando o processo de consultas para a retomada dos diálogos. E Noemi (entrevista, Chiapas, 1/99), a autoridade política de uma comunidade zapatista que tive a oportunidade de entrevistar, relata a situação do seu município autônomo, onde o aumento da presença militar tornou inviável a realização de assembléias municipais.
Uma situação muito diferente é a que encontramos no chamado zapatismo civil. Embora a efêmera tática do EZLN de estimular a formação de uma organização nacional que unisse de forma democrática os ativistas e movimentos sociais independentes do México tenha fracassado, deu lugar a um tipo novo de coordenação de pessoas e movimentos particularmente propiciado pelo advento da internet. No final de 1998 o sociólogo Enrique de la Garza descreveu a prática dos movimentos sociais independentes do México: combinavam suas lutas particulares (feminismo, luta estudantil pela universidade, etc) com ações conjuntas relacionadas a grandes temas como os protestos contra a repressão em Chiapas (Garza, notas de campo, cidade do México, 12/98). Antes do levante esses movimentos estavam fragmentados, e as novas mobilizações eram de um tipo diferente da mobilização popular contra a fraude de 1988, por exemplo, pois esta tinha o PRD como eixo. A renúncia do EZLN a se colocar como vanguarda ou direção de um movimento nacional pode ter contribuído para o fracasso da CND, mas propiciou o surgimento desta nova modalidade de coordenação horizontal dos movimentos sociais sem a necessidade de uma direção ou da coordenação entre as direções de grandes organizações. É verdade que os ativistas entrevistados ressaltavam o magnetismo simbólico do EZLN como elemento aglutinador e uma certa incapacidade para a realização de grandes ações coordenadas a não ser como resposta às iniciativas do governo e do EZLN. O mesmo pode ser dito sobre as redes de comunicação e solidariedade internacionais de alguma forma relacionadas com o zapatismo. Mas o movimento anticapitalista que se coordena dessa mesma maneira, cujas redes foram inicialmente impulsionadas pela articulação da solidariedade com o EZLN na Europa e nos EUA, e que começou a ter uma identidade difusa porém própria a partir dos protestos no mundo inteiro em sincronia com Seatle em 1999, demonstra que a nova modalidade de coordenação dos movimentos sociais é capaz de amadurecer dinâmicas próprias. O EZLN impulsionou as novas formas de coordenação horizontal entre as lutas particulares e locais do pós socialismo real que imprimem as suas marcas, por exemplo, no Fórum Social Mundial – ao menos no que se refere à busca de espaços de comunicação e debate em detrimento da deliberação sobre programas políticos – e continuam a amadurecer e a assumir formas variadas pelo mundo afora. O advento da internet foi a condição fundamental para esse fenômeno, mas o zapatismo surgiu ao mesmo tempo em que ocorria a expansão explosiva desse novo meio de comunicação e, atualmente, talvez não exista ainda um movimento no mundo tão eficiente na produção, organização e difusão horizontal de informação como as redes zapatistas, com a exceção do movimento anticapitalista.
Por outro lado, o zapatismo contribuiu para difundir a idéia de que a participação política não deve restringir-se ao voto e ao protesto, mas estender-se também para a solução local dos problemas coletivos. Trata-se de um tipo de prática política que corresponde à redução da importância do Estado do período neoliberal e que é anterior ao zapatismo, mas esta sua visão ajudou a fortalecer ONGs e movimentos locais. E também contribuiu para a invenção de novas práticas políticas locais, e um exemplo disso é a nova valorização da arte como fenômeno político. O discurso e o espetáculo zapatista, a ênfase na imagem, símbolos, poesia e em valores morais, abriram um horizonte que sinaliza para um novo tipo de independência da política em relação à capacitação acadêmica e técnica das burocracias partidárias, dos grandes movimentos sociais e até mesmo das ONGs. Pois se os movimentos sociais e partidários continuarão necessitando desses atributos para, por exemplo, questionar e propor políticas públicas, por outro lado começou a ficar para trás a noção iluminista de que a política está necessariamente vinculada à razão e à ciência. Começou a se popularizar a idéia de que ela pode ocorrer também através da arte, o que antes só era compreendido por artistas. Não uma arte subordinada à administração racional da propaganda política ou que se alia a ela. Mas a arte que pode ser praticada por qualquer um e com finalidades sociais para além da expressão da subjetividade individual. A condição fundamental para isso, mais uma vez, está no avanço dos modernos meios de comunicação de massa e no acesso cada vez maior a técnicas de som e imagem, como a produção de vídeos com pequenos aparelhos e as rádios livres. No Brasil temos o exemplo das manifestações dos “cara pintada” para a derrubada de Collor, que é anterior ao zapatismo, em que a arte se popularizou como forma de prática política. É uma prática popular que tem seu início nos anos 60 com os hippies e nos anos 70 com os punks, e que atualmente no Brasil se manifesta nas periferias com os movimentos de hip hop. Mas o zapatismo ajudou a difundir nos meios de esquerda valores políticos que colocam essas formas de participação no mesmo grau de importância que a atuação de uma ONG com grande capacidade técnica para enfrentar algum problema ambiental específico.
Outro tipo de invenção de novas práticas políticas locais com a influência do zapatismo está na difusão da imagem idealizada das assembléias indígenas e seus valores. Sílvio, um ativista suíço que estava levantando informações não só sobre direitos humanos em Chiapas como também sobre a atuação de multinacionais suíças que seriam utilizadas nos protestos europeus, fazia parte de uma ocupação chamada Molino. Por influência do zapatismo, os fundadores do Molino ocuparam um moinho abandonado e criaram uma moradia coletiva que era também centro cultural e político, e que se organizava através de assembléias semanais análogas às das comunidades indígenas de Chiapas (Sílvio, entrevista, Chiapas, 1/99). É verdade que o movimento de ocupações deste tipo é anterior ao zapatismo, mas há inúmeros casos no mundo de formas de organização inspirados nas imagens difundidas sobre as comunidades autônomas. Outro exemplo é a rádio Muda, uma rádio livre de Campinas que existe há cerca de 13 anos e que recentemente começou a substituir a votação pelo “consenso” como forma de deliberação em suas assembléias. O consenso significa que os temas devem ser debatidos até que se chegue a um consenso, ou ao acordo de toda a comunidade. É uma prática tradicional indígena que foi reinventada nos discursos do zapatismo civil, que foi aplicada, por exemplo, na organização da FZLN, e teve uma difusão internacional particularmente forte entre grupos anarquistas.
A difusão da imagem idealizada das comunidades autônomas, e o senso comum apenas parcialmente correto de que o discurso dos comunicados do EZLN é indígena constituem, por sua vez, um precedente histórico importante. Pois fortaleceu a valorização da diversidade cultural na política: a visão de que a população mundial com menor acesso à formação intelectual nos moldes ocidentais deve ter espaços e visibilidades próprias, pois é capaz de fazer contribuições diretas para as transformações da civilização, e não só através da mediação de intelectuais e políticos profissionais do ocidente.
Mas se o zapatismo em geral colhe mais frutos longe de Chiapas do que no seu local de origem, há exceções. A mais importante é a valorização da mulher e dos jovens pelo EZLN. Flavia e Elena (entrevista, Chiapas, 1/99), as italianas que visitavam Chiapas no ano novo de 1999, notaram em sua visita pelo México que a atuação das guerrilheiras contrastava com a quase total ausência de movimentos feministas da capital do país: “são umas duas organizações com cerca de meia dúzia de militantes”. Os Aguascalientes se tornaram centros efervescentes e permanentes de encontro entre ativistas do mundo inteiro, e ampliaram as possibilidades de contato entre os indígenas e outras culturas, apesar das medidas de controle. E algumas crianças de Chiapas conseguiram algo excepcional: graças a uma iniciativa da FZLN, tiveram a oportunidade de ver seus desenhos num livro que foi publicado ao menos no México e no Brasil e que se chama “As Vozes do Espelho”. É verdade que os desenhos são ilustrados por prosas e poesias de autores como José Saramago, Vázquez Montalbán, subcomandante Marcos, Bañuelos, João Cabral de Melo Neto e muitos outros que escreveram especialmente para esta publicação, num diálogo entre a literatura dos grandes nomes e os desenhos daquelas crianças. Mas esse fato aparentemente tão sem importância é impressionante quando se considera que antes do zapatismo estas crianças estavam entre as mais esquecidas do mundo.
Outro desdobramento do paradoxo fundamental do zapatismo que é preciso ser avaliado é a contribuição do EZLN e do zapatismo civil para a democratização do México. Como já vimos, a guerrilha teve um papel ambíguo, pois ao mesmo tempo em que fomentou a “palavra” (comunicação e participação) como forma de luta, e contribuiu para o fortalecimento dos movimentos sociais independentes cuja existência é um dos elementos fundamentais para o funcionamento de uma democracia, por outro lado contribuiu para a hipertrofia das forças armadas mexicanas num contexto em que a transição democrática vinha caminhando lentamente e temia-se a possibilidade de uma guerra civil ou um retrocesso autoritário. A crise do regime pós-revolucionário e seus mecanismos corporativos e a política econômica neoliberal implicavam simultaneamente na deterioração das condições de vida da população e no aumento das fraudes e da repressão. Grupos de poder se digladiavam no interior do Estado, políticos importantes eram assassinados, e surgiram guerrilhas importantes como o EZLN e o EPR.
Um dos maiores golpes contra a esperança de democratização do país foi a fraude que derrotou Cárdenas em 1988. Como afirma Gurza, o emprego da fraude não era tão importante nos anos dourados do PRI, mas aumentou na medida em que se incrementava a competitividade eleitoral. Entre 1940 e 1970, cerca de 20% da Câmara dos Deputados era reservada para os outros partidos. Com as reformas políticas dos anos 70, foi nessa casa que houve espaço para a ampliação da representação desses partidos e, nos anos 80, o PRI permitiu que o PAN (ligado ao empresariado) obtivesse vitórias inéditas em estados do norte do país. A crise do regime levou, em 1988, à cisão do PRI em que Cárdenas abandonou o partido para apostar na mobilização civil e na formação de um partido democrático de centro-esquerda que viria a ser o Partido da Revolução Democrática. Após vencer as eleições através da fraude, o presidente Salinas procurou restaurar a sua legitimidade com a criação do Instituto Federal Eleitoral, instituição pública e autônoma que passou a organizar as eleições, lançando a perspectiva de futuras eleições limpas (Gurza, 2000: 13-25). Foi apenas em 1997, quando pela primeira vez a Câmara dos Deputados deixou de ter uma maioria absoluta do PRI, que o IFE começou a ter uma autonomia efetiva, pois o seu Conselho tinha membros indicados pela Câmara. Mas a eleição presidencial de 1994, logo após o levante do EZLN, já foi mais limpa do que a de 1988. Era cada vez mais evidente que o Estado teria que se democratizar para substituir as formas de institucionalização da política que antes funcionavam através do sistema corporativo. O rumo que tomou o zapatismo pode ter dividido o cardenismo e complicado a situação da luta eleitoral para o PRD, mas de uma maneira geral fortaleceu e deu uma dimensão internacional para a luta civil pela democratização do país. Além disso, num contexto autoritário o zapatismo emergiu como uma alternativa radical que ajudou a cortar pelo lado da esquerda o círculo vicioso da violência que poderia comprometer a transição democrática que está em curso no país, e que serve de inspiração para outros movimentos que enfrentam regimes autoritários no mundo.
Gurza comemora a primeira vitória da oposição em eleições presidenciais no México, que levou ao poder Vicente Fox do Partido da Ação Nacional. Com isso deu-se início a alternância de poder no México mas, como afirma o autor, ainda falta muito para a consolidação de um regime democrático (Gurza, 2000). Durante a campanha eleitoral, Fox fez grande alarde de seu objetivo de resolver pelo diálogo o problema de Chiapas e, após sua vitória, iniciou-se uma nova fase no conflito que traz a única novidade de um cuidado maior do governo com a sua imagem. Fox anunciou uma diminuição da presença militar em Chiapas para atender às condições exigidas pelo EZLN para a retomada das negociações, e encabeçou uma reforma constitucional cujo papel seria cumprir com os Acordos de San Andrés. O EZLN passou a denunciar que os movimentos do Exército Mexicano no estado visavam apenas passar a impressão para a imprensa de que estava em curso uma distensão, mas que na prática a densidade militar permanecia a mesma. Além disso, o EZLN e seus aliados viram na reforma constitucional iniciada pelo governo diferenças importantes em relação à proposta elaborada em 1996 pela COCOPA. O chamado zapatismo civil passou a combater essa reforma na justiça e vem dando continuidade às denúncias sobre a “guerra suja” contra as comunidades de Chiapas.
A história continua e talvez somente após muitos anos se poderá realmente avaliar o significado do zapatismo. Enquanto isso o mundo continua a absorver as experiências e lições destes atores da política contemporânea: certa vez um guerrilheiro bem jovem e determinado, muito desconfiado das minhas intenções e que nunca me concedeu uma entrevista, indagou sobre os meus objetivos; embora eu tenha tentado expor meus ideais, não deixou de alimentar as suas desconfianças; finalmente tive a idéia de perguntar o que é que ele esperava do meu trabalho: “que nunca mais aconteça o que se passa aqui”.
*Tirado do livro A Guerra é o Espetáculo. Origens e Transformações da Estratégia do EZLN