Umha imagem recorrente leva anos qualhando no imaginário popular do independentismo galego. Por umha anomalia da causa independentista, cada ciclo de luita semelha concluir com o fracasso da geraçom que o protagoniza e com a sua retirada do cenário político. Este fenómeno caracteriza-se polo abandono coletivo, mais ou menos massivo, dos grupos de militantes que nutrem as fileiras independentistas. Adoita ser umha afeçom traumática, grupal e transversal pois atinge tanto a militantes de base como a quadros qualificados, tanto a perfis intelectuais como a pessoas de acçom. É o que vulgarmente se conhece como “marchar para a casa”. O corolário do recolha é a liquidaçom das organizaçons que tanto trabalho levou erguer. Entre os males que afligem ao nosso movimento, este pode que seja o pior. Porém, cumpre perguntar-se quanto há de certo neste relato e quanto de tópico alimentado pola sensaçom de fracasso e o pesimismo. Devemos de nos flagelar o justo.
Aceitemos a modo de premissa o que há de realidade no enunciado descrito. Coincidiremos em que a incapacidade dum movimento para reproduzir-se socialmente e para assumir com naturalidade os inevitáveis relevos geracionais, constitui umha gravíssima eiva que lastra as perspetivas de sucesso. Sem substituiçom geracional o que há é rutura, quer dizer, a geraçom veterana é incapaz de transmitir aos novos e novas os seus recursos, práticas e ferramentas, a sua memória e ideologia, a sua cultura e saberes militantes, em definitiva, a experiência acumulada em anos de luita. Se esta quebra nom se reconduz, o movimento fica condenado a sua desapariçom como tal. Velaí umha descriçom crua e exagerada desta ideia, pois nem nos contextos mais adversos nem nas situaçons mais dramáticas e desesperadas -o golpe de 1936 e a posterior ditadura, por exemplo- um movimento se extingue por completo dumha geraçom para a outra.
Agora apliquemos este esquema à história recente do independentismo e ponhamos a lupa na década de noventa. Se há um momento em que esta imagem de refluxo geracional se contrasta e verifica na realidade é precisamente nesta altura histórica. 1995 bem poderia ser o ano bisagra. Os feitos som bem conhecidos; deixemos constância dos mais relevantes. Ao início desse ano a APU fai pública a sua autodisoluçom. O projeto político-militar do EGPGC esmorece. Os presos e presas da primeira queda, a de maio de 1988, começam a sair da cadeia. A FPG, a outra organizaçom política independentista, vinha solicitando desde 1993 o seu ingresso no BNG, apenas uns anos depois da saída do PCLN em 1987. E finalmente, no dia da Pátria Galega de 1995, a AMI convoca pola primeira vez e em solitário a manifestaçom independentista. Falamos dum contexto certamente traumático marcado pola amargura da divisom e os confrontos pessoais e polo dramatismo derivado dos mortos, o exílio e as longas condenas impostas aos presos e presas independentistas.
Para sermos conscientes da profundidade da cesura da década de noventa na história do independentismo, devemos ter em conta que as pessoas que protagonizarom aquele momento histórico eram em muitos casos militantes com longas trajetórias nas organizaçons do nacionalismo, quadros dirigentes e respeitados, referenciais para a gente mais nova. Falamos dumha geraçom criada e forjada nas organizaçons políticas, sociais e sindicais do nacionalismo nacional-popular (UPG, AN-PG, BN-PG, SOG, INTG, ERGA) e/ou nas primeiras e incipientes organizaçons independentistas (PGP, Galicia Ceibe). Os mais novos e novas daquela jeira histórica, os nascidos e nascidas na década de sessenta, formam-se já em estruturas de novo cunho (BNG, PCLN, Galiza Ceive-OLN, CAF, Xerfas). Algumhas destas pessoas, veteranas e novas, passarám a integrar a guerrilha galega.
Na altura de 1995 o independentismo, como movimento plenamente autónomo, com agenda própria, estrutura orgánica estável e totalmente à margem do nacionalismo maioritário, nom existia. A quebra com as novas fornadas de militantes e ativistas, as dos nascidos e nascidas na década de setenta, é quase total. Por umha parte, som mui poucos os e as militantes que continuam ativos e ativas nas organizaçons e dinâmicas políticas que sobrevivem ao naufrágio e, por outra parte, apenas podemos encontrar casos de militantes novos e novas que figerem parte, antes de 1995, das “velhas” organizaçons (APU, JUGA, MNG, PCLN, FPG). Há certamente militantes experimentados que continuam organizados e ativos na década de noventa e que luitam a carom dos moços e moças que se achegam ao movimento. Som casos concretos de forte simbolismo e referencialidade pola sua condiçom de ex-presos independentistas e que contribuem para a transmissom dumha memória e dumha dinâmica de combate. Há também outros casos isolados, mais com um carácter anedótico e testemunhal. Dificilmente podemos falar nem de continuidade nem de relevo geracional. Para bem ou para mal, a nova geraçom de militantes independentistas que começa a envolver-se politicamente por volta da nascente Assembleia da Mocidade Independentista, careceu de padrinhos.
É tentador projetar a imagem descrita à situaçom atual do nosso movimento. Poderíamos identificar um ciclo de luita na jeira 1995-2015 e nele certificaríamos também o fracasso das tentativas unitárias e o evidente esfarelamento orgânico. Algumhas das principais organizaçons independentistas deste período já nom existem, tal é o caso da AMI e de Nós-UP, e as que sobrevivérom carecem da fortaleça que tivérom na altura. Porém, pensamos que essa imagem de quebra da transmissom intergeracional que encontramos em 1995 nom é aplicável de maneira tam rotunda ao atual momento histórico. Como daquela, é certo que há companheiros e companheiras pagando duras condenas nas prisons espanholas, com o agravante de que novas sentenças da audiência nacional espanhola ameaçam um número maior de militantes e ativistas. Mais para além deste aspeto nada menor, o resto dos elementos analisáveis nom resistem a comparaçom. Vejamos.
Para começar, as desavenças pessoais que puderem existir hoje nom estám marcadas por traumas derivados da rutura, nada mais e nada menos, que dumha organizaçom armada e dunha comuna de presos. Como na vida mesma, agora como ontem, o conflito é a inimizade pessoal som consubstanciais à vida militante e às dinâmicas das organizaçons. Porém, as pequenas rabunhadas de hoje empalidecem se as comparamos com as profundas feridas e cicatrizes de outrora, de pessoas que vivérom a divisom e o enfrentamento fratricida no contexto de experiências duríssimas como a clandestinidade, a tortura e a dispersom nas cadeias espanholas. Com a sabedoria e a perspectiva que dá o decorrer dos anos, os conflitos de hoje nom som nada que nom se poda solucionar com boa predisposiçom para o entendimento e o reconhecimento mútuo dos erros cometidos. Em resumo, o ambiente de partida para relançar o movimento nom é mau, e as tensons e conflitos pessoais e grupais som de baixa intensidade, decrescentes e devedoras de polémicas superadas ou superáveis com o paso do tempo, de nom muito tempo.
Por outra parte, se botamos umha olhada às organizaçons nom etárias do independentismo galego, políticas ou setoriais, comprovamos que em maior ou menor medida convivem no seu interior militantes de diferentes idades e geraçons. Temos, aliás, a fortuna de contar com autênticos maratonianos da causa independentista com décadas de compromisso rastejável já na luita em contra da ditadura. Em comparaçom com outras épocas, há menos militantes jovens, ou melhor dito, nom há umha escassez aguda de militantes veteranos e veteranas. Em qalquer caso, nom há rutura intergeracional brusca e massiva e isso já é umha vitória.
Pode que o independentismo seja hoje mais feble e inestável organicamente e que a sua capacidade de agir e mobilizar seja quantitativamente mais fraca. Pode que as fileiras de moços e moças sejam mais magras do que há vinte anos, pero no seu conjunto, os e as militantes independentistas som mais experimentados e experimentadas e manejam mais recursos de todo tipo, entre eles maior capital relacional e maior referencialidade e respeito para além do próprio movimento. Aliás, contam, com a infraestrutura dos centros sociais e meios de comunicaçons próprios e com convocatórias de seu assentadas no calendário.
Possui umha trajectoria mais ampla e de mais experiência e, por tanto, de mais perspectiva histórica e de mais “sabedoria”. Valem-se de mais símbolos e referentes e a pouco que se trabalhe bem neste campo, disporám aginha da sua historia, da sua literatura e da sua memória. Neste sentido, urge compilar e organizar um arquivo nacional do independentismo galego e aumentar a produçom bibliográfica. Disponhem mesmo dumha cultura, um acervo e de espaços para sociabilidade próprios. E o que é mais importante, som capazes de situar-se numnha tradiçom política histórica autónoma, a do independentismo galego.
Para além do exposto, moitas das análises do independentismo formuladas há trinta ou vinte anos, verificárom-se acertadas. Algumhas das nossas ideias som compartilhadas hoje por outros setores políticos e sociais nom independentistas e a reivindicaçom que constitui a nossa raçom de ser, a independência da Galiza, calhou em parte das fileiras do nacionalismo maioritário. Em 2020 há muitos mais galegos e galegas que se reclamam independentistas que há vinte anos, o chamado independentismo sociológico. Com todas as reservas e cautelas que requerem as sondagens e os resultados das recentes convocatórias eleitorais, mesmo semelha plausível afirmar que a reivindicaçom independentista e a consciência nacional galega alargam-se na sociedade galega depois de décadas de estancamento e no contexto dumha ofensiva espanhola. Já tem mérito que a ideia da independência avance num país no que o seu nacionalismo maioritário leva décadas instalado em certa ambigüidade no alcance da reivindicaçom nacional, durante muito tempo num explícito anti-independentismo.
Há um outros elementos distintivos que adoitam passar desapercibidos; som o contexto político e as janelas de oportunidade política abertas. Com humildade e visto em perspetiva, podemos dizer que o nosso movimento atingiu certa fortaleça orgânica, capacidade de recrutamento e de mobilizaçom quantitativa e qualitativa ao abeiro dos conflitos e luitas que abalárom a Galiza no alvorecer do século XXI. A sua presença constante na rua assegurou-lhe um espaço de seu e outorgou-lhe certa capacidade de manobrabilidade política e incidência social, sempre no quadro limitado no que se moveu. Foi quem de ensaiar novas formas de intervençom política e social e de encetar com sucesso projetos inovadores. Mas o seu potencial de rutura era menor porque o sistema contra o que batia era mais forte. Um dado para a reflexom. Nas eleiçons legislativas espanholas de 2008, os partidos do bipartido estatal atingirom o 84% dos votos e o 92% dos escanos. Umha força como Izquierda Unida liderada por um candidato aceitável para o regime nom conseguiu ultrapassar o 4% dos votos e ficou com 2 escanos. Nom se movia nada. Hoje o independentismo galego apresenta-se-nos esfarelado e com umha capacidade de mobilizaçom reduzida a mínima expressom mas o seu potencial de rutura é muito maior que há quince ou vinte anos, porque o sistema é feble e rengem todas as vigas mestras do edifício que o sustenta.
E porém, em certos sectores da militância independentista madura instala-se certo pessimismo e a ideia de que o seu tempo já pasou. Mais umha vez, como no mito de Sísifo, cada geraçom deve começar quase de zero. Os movimentos políticos e sociais estám formados por pessoas de carne e osso com as suas particularidades e momentos vitais e acontece que adoitamos extrapolar esses momentos vitais aos tempos históricos do movimento do que fazemos parte. Numha palestra impartida recentemente por um militante independentista este formulava umha ideia chave: os ciclos vitais das pessoas som curtos enquanto os ciclos históricos som longos, muito longos. É por isso que nos desesperamos e afundimos no abatimento e no desânimo quando vemos passar os anos e a nossa causa semelha nom avançar. O melhor antídoto contra tamanha contradiçom é conceber o nosso compromisso com a causa nacional galega como umha longa caminhada que nos acompanha toda a vida. Oxalá tenhamos a ventura de poder ver como rendem os frutos. Mas de nom ser assim, outros e outras poderám vê-lo.
O segundo antídoto contra as pressas e o desespero e adaptar a nossa contribuiçom às nossas circunstâncias vitais. Às vezes parece heroico compatibilizar a militância com as exigências da vida adulta, nomeadamente a necessidade da independência económica e de garantir o cuidado dos nossos maiores e menores. Umhas exigências agravadas polo deterioro e precarizaçom das condiçons de vida. Por isso, cumpre adequar o esforço militante a cada etapa da vida. Quando um ou umha militante que transita a quarentena afirma que está “velho para a militância” o que em realidade quer dizer é que no seu momento vital nom se vê levando a vida militante que levava com vinte anos, quando todo era tempo, energia e disponibilidade para a entrega e mesmo para o choque. A vida adulta é um condicionante decisivo para um tipo de ativismo e militância mais próprios da idade juvenil, mas um ou umha militante independentista com vinte ou trinta anos de implicaçom continuada atessoura uns recursos que cumpre pôr a funcionar: a experiência, a referencialidade, o saber fazer e os contatos.
Os e as militantes que hoje atravessam a quarentena e se achegam ao meio século de vida, formados no momento histórico da irrupçom do independentismo juvenil organizado e nas dinámicas de luita e conflito de começo de século, som pessoas experimentadas capazes de dinamizar umha organizaçom, conduzir umha juntança, falar em público, redigir um manifesto, escrever um artigo, coordenar umha campanha, recadar quartos, analisar a realidade, pensar estrategicamente, mobilizar contactos, etc. é dizer, som pessoas com recursos imprescindíveis e escassos, valiosos para a continuidade da luita. Muitos e muitas delas desempenhárom com abnegaçom e sucesso o papel de quadros políticos. Os e as ativistas e militantes forjadas nas organizaçons AMI, Primeira Linha, Estudantes Independentistas, AGIR, Nós-UP, Ceivar, Adiante, Briga e mesmo nas JUGA e nos CAR e na primeira Causa Galiza, conformam um contingente humano qualificado, parcialmente desmobilizado e perfeitamente recuperável para infinidade de tarefas.
Para concluirmos, todo o mundo conhece a Roberto Rodrigues Fialhega “Teto”, preso independentista galego que acumula umha década de cativeiro nos presídios espanhóis. Muitos e muitas sabem da sua trajetória política e vital e da sua implicaçom pessoal em projetos como a fundaçom do Centro Social A Revolta de Vigo, ao que lhe dedicou o seu tempo e lhe entregou os seus aforros. Mesmo o seu ofício de rotulista era publicamente conhecido. Incontáveis faixas sairom do seu pequeno obradoiro e graças ao seu trabalho voluntário. Mas talvez poucos saibam que o Teto era eletricista de formaçom, instruído na velha Formaçom Profissional no liceu Ricardo Melha de Vigo. Toda a instalaçom elétrica do primeiro local da Revolta foi feita por ele. Quando se necessitou para fazer exnovo a instalaçom do local da Escola Popular Galega, alá volvia estar. E quando lhe agradecíamos a sua ajuda sempre repetia: “é do que entendo e é o que sei fazer”. O que nos queria dizer o Teto é que para ele o responsável era pôr os seus conhecimentos de eletricidade ao serviço do que requeresse o movimento do que fazia parte.