Para começarmos esta entrevista, poderias dar-nos umhas sucintas notas biográficas e dizer-nos como nasceu o teu interesse pola música?
IRS: Foi, possivelmente, por causa do ambiente familiar. Eu nasci numa família de músicos. Meu pai aprendeu solfejo e acordeão no Brasil e ensinou música aos dous filhos e à filha. Meu irmão mais velho continuou os estudos de guitarra dedicando-se primeiro à interpretação e depois à docência. Mais tarde eu segui esse mesmo caminho, um pouco mais académico, nos diversos Conservatórios onde estudei na Galiza e na Alemanha.
Também gostávamos de saber como acordou a tua consciência galega e o amor pola nossa cultura. Estivo relacionado com o gosto pola música, pola literatura, por influências docentes?
IRS: Pois também foi familiar o grumo da consciência galega. Meu outro irmão, que também aprendera música, inclinou-se mais pela literatura, a língua e a astronomia, atividades que eu aprendi a ver como próprias de pessoas inteligentes como ele. Os debates familiares povoaram-me a infância de referências culturais, políticas e, sobretudo, de senso crítico. Nisto é imprescindível destacar a influência materna em toda a família sobre os assuntos sociais, para os que a nossa mãe sempre pareceu ter um sexto sentido.
Associamos a construçom contemporánea da identidade galega com a literatura, a história, e em menor medida com expressons musicais como o folque ? Nesta visom estereotípica, a música clássica, na que tu te especializas, fica um pouco à margem. Que nos podes dizer da influência de outras expressons musicais na Galiza moderna (entendida esta como a dos séculos XIX e XX) ?
IRS: A música é uma das expressões dos povos. Não há povo que não faça música dum ou doutro jeito. Os estilos musicais são expressões da história musical desses povos e, nesse senso, a mal chamada ou mal entendida (e mal explicada) música clássica é mais uma manifestação do povo galego que deve ser estudada como um dos nossos valores mais dignos, um dos contributos galegos à história universal da música e dos povos. Isto era bem sabido na época da Geração Nós, cuja revista recentemente fez os 100 anos da primeira publicação. Nas primeiras décadas do século XX, o movimento de músicos galegos em colaboração com o galeguismo da época desenvolvia uma atividade popular e erudita intensa e planejava a fundação do Conservatório Nacional de Arte Galega no seio das Irmandades da Fala. Esta seria uma instituição debruçada sobre o estudo da música galega, que educaria sobre os instrumentos, intérpretes, compositor@s, espaços de educação musical, partituras, fundos e tudo o referente à música na Galiza. Infelizmente, o objetivo não chegou a se realizar e ainda hoje é uma utopia. Este pode ser um exemplo de por que hoje não sabemos grande cousa da música clássica e d@s músic@s históric@s galeg@s.
Tens estudado o peso da cultura musical nas famílias galeguistas ou protogaleguistas do século XIX, nomeadamente na estirpe do estradense Marcial Valadares. Que nos podes dizer desta impronta?
IRS: A família Valladares é o paradigma de fidalguia galega e galeguista, erudita e ao mesmo tempo próxima do popular, que participa na configuração política da Galiza como a conhecemos hoje e desenvolve uma atividade artística e literária fora do comum. Como gente de letras e de artes que eram, entesouraram uma excelente biblioteca. Da parte musical, o seu legado inclui vários instrumentos originais do século XIX, uma coleção de perto de setecentas partituras para esses instrumentos e outros textos sobre música, entre eles o Cancioneiro galego mais antigo de que temos notícia até ao momento. Além disso, a coleção contém várias obras originais da família, entre as que se acha a peça para guitarra composta e assinada por Avelina Valladares. E tudo isso acompanhado de obras de outros autores da época que ampliam o campo de estudo musicológico galego e europeu. Avelina e Marcial viveram durante quase todo o século XIX, as suas vidas são prezados fios de erudição, intervenção social, literatura e música que nos mostram uma parte pouco conhecida da nossa cultura. Além deles, na tese poderão ver-se mais famílias, personalidades e intérpretes de guitarra que contribuíram de modo fundamental ao desenvolvimento da música na Galiza.
Recém defendida a tua tese sobre a guitarra clássica na USC, como poderias sintetizar a tua descoberta para o leitor ou leitora ignorante da matéria ? Que peso e transcendência tem este instrumento na história cultural galega ?
IRS: Pois pode concluir-se que a guitarra é um instrumento galego, no mínimo, desde a Idade Média, que é quando aparecem as primeiras notícias históricas sobre cordofones dedilhados na Galiza. Naturalmente nessa altura falamos de instrumentos antecedentes das guitarras. A iconografia galega oferece aspetos fundamentais da evolução dos cordofones dedilhados que não é comum ver-se num único território noutras partes da Europa. Na nossa iconografia, na distância de poucos quilómetros, pode ver-se a continuidade entre as citolas do Paço de Gelmires (s. XIII), as violas de Betanços (s. XIV) e as guitarras de Noia (s. XV), junto doutros cordofones dedilhados do tipo dos alaúdes e dos cistres. Em todos os séculos desde o XII até ao XIX temos notícias, iconografia, intérpretes, documentos notariais, literários e musicais a referirem o uso de guitarras/violas/violões. Já na Idade Moderna destacam especialmente as coleções de partituras do século XIX, que conformam um corpus de umas quinhentas obras para guitarra e constituem um acervo cultural extremamente valioso. Deste século é a maior parte da informação sobre @s intérpretes e as diferentes atividades musicais: desde a música familiar como a dos Valladares de Vilancosta, que denomino Biedermeier galego e se reflete nos relatos de Valle-Inclán, até às coleções de fim de século, como a da família Pintos Fonseca da Ponte Vedra, cujo patriarca foi o violinista e possível guitarrista Pintos Villar, ícone do galeguismo e autor de A gaita gallega (1853), acompanhadas do grande boom das orquestras populares de guitarras que enlaçam o século XIX com o XX, e do protagonismo do galeguismo guitarrista com Rosalia Castro, Curros Henriques, José Castro Chané ou o próprio Daniel Castelão.
Uma das reflexões que me acompanharam durante os três anos de redação da tese foi ver que todas as experiências que eu tinha a respeito da sociedade, da política e do Ser galego vieram não somente a iluminar alguns aspetos, mas a explicar de modo exato os documentos guitarrísticos que íam aparecendo nas pesquisas. Assim, percebi que a história da guitarra não era diferente da história geral da Galiza, mas oferecia um ponto de vista novo que fornecia mais informações, esclarecia alguns elementos e formulava novas hipóteses a serem avaliadas pel@s historiador@s galeg@s. Por exemplo, o conceito da música galego-portuguesa na Idade Média, a continuidade musical nos denominados ‘Séculos Escuros’ que na música não são tais, a relação das antigas e novas elites na sociedade galega de início do século XIX, ou a análise do mito da guitarra ‘espanhola’ criado no último terço desse século, durante a etapa canovista do Reino da Espanha e os seus efeitos na sociedade galega que se detetam e mesmo incrementam durante o século XX, devido ao processo traumático do nacionalismo espanhol e a posterior convalescência atualmente ainda não superada. São processos históricos que a humilde guitarra consegue explicar desde a análise das suas evidências.
És umha decidida reintegracionista que fundes a difusom musical com a defesa da língua e cultura. Em que medida a tua posiçom idiomática e ortográfica ajudou a ligar a Galiza com outros pontos da lusofonia ?
IRS: Na música a língua portuguesa é língua da Galiza. Não é preciso fazer esforços especiais para entender isso. Qualquer galeg@ sente a música do Caetano Veloso quase como sua, adora Dulce Pontes e canta o Zeca Afonso com a vizinhança em qualquer trégua dalgum inesperado confinamento. Isto último é referência direta ao bairro onde moro em Compostela. Quanto à atividade em defesa da língua, o meu percurso levou-me a colaborar com diversas iniciativas galegas cujo objetivo era o contato e aprofundamento das relações entre os países em que a língua portuguesa tem presença institucional, com destaque para Portugal e Brasil. Atualmente sou sócia de várias associações linguísticas e musicais portuguesas, publico artigos em Portugal e Brasil, tenho gravado um disco com patrocínio do Governo Regional da Madeira e recentemente a Universidade do Minho tem confiado em mim para integrar o seu Departamento de Música.
Reconheço que o movimento reintegracionista poderia melhorar o seu interesse pela música clássica galega e confiar um pouco mais n@s profissionais que integramos tanto uma nova abordagem da música quanto a aposta decidida pela língua portuguesa na Galiza. De modo que a união entre essas duas vertentes culturais, sem dúvida, ofereceria frutos de alta qualidade. E isso, entre outras cousas, é que faz falta: cultura de alta qualidade apoiada pelos movimentos sociais, a fazer política honrada desde as ruas para influir em quem nos cai de cima. Quero notar aqui o labor da Coleção Alicerces, da Através Editora, que publica livros de bolso a preços assequíveis, escritos por autor@s galeg@s em português e sobre temas não convencionais. Ainda que neste caso a música deva ser entendida como algo não convencional, a alegria vem de que é tratada com seriedade e já tem um volume do ferrolano e virtuoso violagambista Xurxo Varela que, na minha opinião, é um dos poucos livros de pensamento musical realizados na nossa língua por um autor galego. Proximamente, a tese ‘A guitarra na Galiza’ terá também um volume nessa coleção, que será um resumo para não iniciados da história da guitarra galega.
Paralelamente à tua dimensom intelectual ou artística, tens participado activamente do reintegracionismo de base. Após mais de três décadas de vida deste movimento, que balanço fas do seu trajecto ?
IRS: Pois, não sei se já terei respondido na anterior questão. Acho em falta mais conexão entre os âmbitos musicais e reintegracionistas galegos. Influir num mundo desconhecido que pode ser muito conservador não é fácil, mas merece a pena explorar as possibilidades. Isto está dito por alguém que foi assediada no seu trabalho de modo oficial por causa duma denúncia dos extremistas Galicia Bilingue. Refiro-me não à organização dum concerto de rock, mas a atividades continuadas de ensino de música galega. E também não me refiro a aulas de gaita, mas à educação do ouvido na nossa música popular e clássica, ao conhecimento d@s autor@s e das obras musicais. A reconhecer a música de Pascoal Veiga, Joam Montes, Reveriano Soutulho e Germám Lago, e a de Eugénia Osterberger, Maria Luísa Sanjurjo, Pilar Castilho e Avelina Valladares. O ensino da nossa história musical, na nossa língua, numa forma escrita comum e internacional, o que seria a alfabetização em música galega. Podem realizar-se este tipo de intervenções educativas no âmbito dos centros sociais e daquelas associações reintegracionistas que após as douradas épocas passadas ainda continuam a sua atividade. Eu, antes do coronavírus, estava levando as mulheres guitarristas galegas aos liceus. Mas há muitos mais temas por explorar, que podem e devem ensinar-se desde a visão internacional da língua.
Como intelectual ou criadora, significas-te nas tuas redes sociais por participar politicamente, e mesmo por tomares posiçom em temas tam silenciados como a repressom das presas e presos independentistas. Qual achas que é o potencial conscienciador da intelectualidade ? Pensas, em termos gerais, que a intelectualidade galega mantém a altura reivindicativa e a integridade moral que tivérom os seus precursores ?
IRS: A atividade intelectual é hoje mais importante do que nunca. E não somente para a divulgação da nossa cultura. Atualmente estamos confundid@s pelos meios de confusão e manipulad@s pelas fakenews. A pandemia coloca-nos a tod@s em situação vulnerável e é fácil sermos vítimas dos oportunismos. São precisas pessoas a dedicarem tempo a pensar, a explicar, a formular opiniões honradas e informadas sobre tudo o que acontece. Isto que já era necessário antes, agora continua a ser com mais motivo. A defesa das independentistas galegas é um dever democrático de qualquer pessoa com um pouco de cultura e consciência social. Ninguém que acredita numa sociedade fundada nos direitos humanos pode admitir a privação de liberdade, ou o exílio, por expressar ideias políticas legítimas, por uma canção ou por uma representação de teatro infantil. Infelizmente, isso acontece na Galiza e no Estado-Reino da Espanha. É graças à atividade intelectual e jornalística honrada que sabemos dos esgotos e misérias dos partidos políticos da direita espanhola. E também da justiça dum Estado, e incluo as instituições galegas, atravessado ainda por hábitos próprios do franquismo. Também é graças às pesquisas honradas que sabemos da existência duma polícia política, sem cabida numa sociedade democrática. As pessoas com consciência social estamos obrigadas a não calar e a oferecer bons diagnósticos da realidade. Porque o senso crítico nos imuniza perante as mentiras do poder e dificulta a sua capacidade de gerar tristeza. Nesse aspeto no âmbito galego sempre podemos melhorar, ao tempo que melhoramos a nossa língua e ampliamos o campo dos direitos humanos com visões da nossa terra que não ficam em mero folclore e procuram contribuir para o universal humano.
Obrigado, acrescenta o que quigeres.
IRS: Obrigada eu. Só acrescentar que, se a pandemia o permitir, na próxima sexta-feira decorrerá o evento homenagem à pianista rianjeira Mireia Dieste (1915-2015), onde terá lugar a primeira apresentação da tese ‘A guitarra na Galiza’, organizada pela Irmandade da Música Galega e a Câmara Municipal no Auditório de Rianjo, e um concerto de piano a quatro mãos com música do virtuoso corunhês Marcial Adalid Gurrea (1826-1881). Ficam tod@s convidad@s tanto ao evento presencial, ainda que precisa de reserva prévia e tem limitação de bilhetes, quanto a navegar pelas plataformas digitais à procura da música e mais informação sobre estes autores e autoras. Porque só bem instruíd@s e ensaiad@s seremos úteis à nossa gente.