Francisco Gómez Gómez, que passou à história como Fuco Gómez, abandonou a sua aldeia natal de Montanha de Agra, em Ouselhe, para marchar caminhando com um vizinho até a afastada Bilbao no ano 1913: mais de 500 kilómetros por terras do norte, sem asfalto nem luz eléctrica, fugindo da escasseza do rural galego e da relaçom tormentosa com o seu pai adoptivo; lá como, como jovem pobre e ainda analfabeto, embarcou rumo à ilha de Cuba de clandestino, onde descobriu a cultura letrada e encontrou-se de por vida com a causa galega. Provavelmente, o contacto com a colectividade emigrante, as leituras de Pondal ou Curros, o conhecimento de patriotismos resistentes de vários pontos do mundo, decantárom-no como arredista em data temperá. Em 1920 aparece vencelhado já à Xuntanza Nazonalista Galega d’Havana.
Os historiadores podem desempoeirar dos artigos pontuais proclamas pro-independência precursoras no cura Manuel Posse, em Antolim Faraldo ou mesmo em incursons poéticas de Alfredo Branhas. Mas se queremos descobrir um programa, umha estratégia, até umha bandeira com todas as letras do arredismo, temos que falar da figura deste bezerrense.
Antes de qualquer outro, podemos apor a Fuco um traço preminente: claridade. Em poucos representantes da política galega achamos tal transparência de intençons. O Comité Revolucionário Arredista Galego que ele dirige desde 1922 orgulha-se de dizer ‘a verdade monda e lironda’ e ‘apontar os verdadeiros responsáveis’ da postraçom da Galiza. Nas suas palavras há denúncia e também proposta: ‘a verdade sagrada do nosso desejo de independência total’. Sem se importar da sua posiçom social nem do seu prestígio, nem da sua nacionalidade, denuncia ‘aqueles galegos que gostam de viver de todas as situaçons, que todo o fam sem escrúpulos, que acham gozo em poder jogar com impunidade’. E alertando contra a tentaçom de confudir política com promoçom pessoal, manifesta em 1949: ‘os os que anceiamos dar á nossa pátria o que nossa pátria nom tivo nos modernos tempos passantes (…) nom devemos aspirar a cargos políticos em regimes de carácter imperialista’.
O sarampelo e os princípios
A burocracia intelectual do autonomismo tem apresentado as posiçons mais firmes da nossa causa nacional como ‘sarampelo arredista’. Nalguns casos, alude-se assim às declaraçons independentistas extemporáneas dos dirigentes, que se manifestavam a favor da ruptura com Espanha de maneira pontual, como forma de enfatizar o seu discurso, ou de fingirem valentia ante a surdeira do poder central; em outros, a umha adesom sentimental típica dos tempos juvenis, umha espécie de jogueteo subversivo antes de integrar-se nas rotinas da vida adulta. Se bem que se apresenta com o fim de ridiculizar-nos, há umha parte de verdade nesta qualificaçom. Poderia-se fazer umha lista ampla de compatriotas ilustres que fôrom arredistas juvenis, antes de se reacomodarem em formas variadas de submissom política: de Correa Calderón a Cunqueiro, passando por Remigio González Gándara. Os pondalianos d’A Fouce nomeam também passos efémeros polas suas fileiras de pessoas na procura de notoriedade: ‘prestárom na sua hora, algumha vez, o seu concurso ao nacionalismo, mas, eternos impacientes, fugírom quando a sua vanidade nom foi satisfeita pola massa anónima, que eles, desde a sua torre de cristal, desprezam’. E mesmo em tempos actuais, quem entramos na idade madura poderíamos recitar de cor dúzias de nomes de quem vivérom um certo compromisso radical que durou o mesmo que a sua jeira de experiências arriscadas.
Porém, e por fortuna para a nossa dignidade colectiva, existírom exemplos como o de Fuco, em que a lealdade arredista demonstrou ser um compromisso da alma. Na década de 20 organiza o primeiro colectivo nacionalista subversivo; nos anos 30 tenciona levar os planos insurreccionais à realidade, sentindo-se perseguido e isolado na Galiza da II República e o galeguismo estatutário; no ermo organizativo das décadas de 40 e 50, mantém erguido o pendom da revista ‘Pátria Galega’ numha América em que a condiçom de galego era ridiculizada decote; naquela altura, continua sem fazer concessom mínima aos autonomistas, mesmo nuns tempos em que o contexto do exílio e as necessidades de dar resposta à ditadura poderiam dar pé a um encontro compreensível. Fuco foi absolutamente fiel à sua conviçom mais profunda; ganhou aliás umha posiçom económica abastada graças ao trabalho duro, e partindo da miséria e a falta de instruçom formal, nom devia nenhum ingresso a partidos, estruturas ou fundaçons do galeguismo. Resultava portanto missom impossível ridiculizá-lo ou conceber o seu amor à causa como superficial.
O silenciamento foi o recurso mais socorrido para escurecer a sua figura, e por isso custa tanto dar com pesquisas historiográficas que o abordem a fundo, além de algumhas meritórias excepçons1; quando damos com coetáneos que o referenciam, descobrimos o trato entre comiserativo e desconfiado que muitas vezes se reserva ao idealismo: ‘era um escritor autodidacta que convocava o povo galego a solidarizar-se com o seu romántico e peculiar arredismo’, diz Ramom Pinheiro muitas décadas depois de ter recebido a sua propaganda; para Rodrigues Lapa, que mantinha com o de Bezerreá correspondência filológica e política, o ideal de Fuco ‘nom passa dumha utopia ingénua’; Castelao julga em Bos Aires em 1945 que os traços distintivos do dirigente do CRAG e dos seus companheiros som ‘o fanatismo, a constáncia e a falta de consistência’. Mesmo Neira Vilas, que o tratou e o respeitou, rebaixa a sua posiçom quando o retrata: o seu era um galeguismo ‘combativo, mordaz, fervoroso, por vezes feble pola sua estridência, que lhe acarreja desgostos e polémicas.’ Mas o testemunho mais interessante deve-se ao galeguista meirês Xosé Bieito Abraira, que já na década de 50 inaugura a deslegitimaçom do arredismo baseando-se na sua incompatibilidade com as pacíficas essências galegas. ‘Fuco é um bom galego, mas as suas conviçons galeguistas som reflexo da gloriosa insurrecçom cubana, pensa, razoa e obra como qualquer mambi, sem se decatar que na Galiza nom má manigua, mas bouça e prados, que nom há palmeiras, mas carvalhos e pinheiros, que nom há bateyes, mas aldeias. Esta lagoa tem-no arredado da realidade’
Moralismo
Fuco Gómez foi essencialmente um moralista. Acreditava, numha tradiçom muito cristá logo secularizada pola maçonaria e o republicanismo radical, que o ser humano tem tendência à laxitude ética, à perguiça, ao compromisso com o mal e ao abandono da responsabilidade própria em favor de autoridades privadas de razom. Como Simone Weil na mesma época, e com toda provabilidade sem conhecê-la, desconfiava muito dumha esquerda vitimista atarefada em exigir direitos, enquanto esquecia a dimensom fundacional dos deveres. A intelectual francesa, num razoamento que Fuco bem poderia suscrever, argumentou: ‘a noçom de dever é anterior à de direito; este é subordinado e relativo ao primeiro. Um direito nom é efectivo de seu, mas apenas em relaçom à obriga à que se corresponde; o exercício efectivo dum direito nom emana do indivíduo que o possui, senom de outro homem que se considera a si mesmo como obrigado a que esse direito se respeite. (…) Um homem, considerado isoladamente, apenas tem deveres, entre os quais certos deveres cara si mesmo.’
Para os moralistas, é de primeira necessidade umha prosa -e umha acçom- que mantenha a alerta, que esculque e censure, que impida a fraqueza própria e ponha o foco na alheia. Um discurso preventivo que remova os nossos lixos e tire o melhor de nós. Assim fijo Fuco, e por isso o historiador cubano Herminio Portell definiu-no como o homem ‘de virtudes cívicas, inflexível nos seus conselhos, flagelo dos vícios dos peninsulares doctos’. O crítico Rogelio Gutiérrez, também em Cuba, escreveu que ‘arremete contra (…) os mercaderes do cristianismo, desmascarando vendepátrias’. Em alguns números, a revista ‘Pátria Galega’ define-se como ‘umha guia moral das almas altas’, e com o ilustrativo pseudónimo de ‘Galeno de Galiza’, o doutor que acode a extirpar os nossos males, ataca a ‘degradaçom, desonra e vileza’ de quem ‘consente, secunda, desculpa ou aplaude propaganda de descrédito para a pátria’.
Nom é muito difícil aplicar esta crítica, e este tom, a umha Galiza onde a noçom de responsabilidade individual foi sempre politicamente fraca, e onde o pánico aos compromissos de raiz se apoiou sempre em argumentos evasivos e longos circunlóquios. Umha mestura de lealdades difusas, desleixo organizativo e culpabilizaçom de terceiros conformou no nosso país o que podemos chamar toda umha cultura da negligência. Precisamente um repúblicano clássico, o jornalista e mártir Blanco Torres, afundava em 1924 nesta linha de pensamento: ‘O principal problema da Galiza é um problema de moralidade. Por sobre do sentido da moralidade -que é o cimento das grandes e fecundas ideias e o faro luminoso das mais singelas belezas- ponhemos os galegos (…) a cativa concepçom da necessidade. (…) Todo no retábulo da nossa mira regional é falso, hipócrita, pequeno e pobre. As conviçons nom determinam a conduta das pessoas.’
Porém, se Blanco Torres e os seus correligionários apontavam na sua crítica a um agente externo (o cacique, o político dinástico, o vilego desleigado), Fuco tivo a irreverência de incluir no seu foco no próprio galeguismo: ‘nem com atitudes antipatrióticas, nem com frequentes mostras de servilismo, nengumha sociedade, nem muitas instituiçons nem os intelectuais de nenhuma das geraçons anteriores acadárom (…) o conseguido com as estridências de Pátria Galega’, escreve Fuco, para adjudicar à sua acçom o retrocesso dos escárnios xenófobos contra os galegos na América. Ante os galeguistas que pedem a moderaçom da sua conduta para aderir ao pragmatismo, pergunta-se: ‘por muito que meditei estas cousas, nom puidem saber ainda a que atribuir o feito de serem vários os galegos que demonstram estar interessados em que eu deserte das fileiras do dever.’ Para Fuco, qualquer conduta que nom se ubique na aplicaçom estrita dos princípios, merece a censura aberta: ‘moralmente, poderá descer, mas nom ascender, quem, lá onde se achar, só faga o papel de ilota ou de caníbal, de automata ou de autocrata, de escravo ou de amo, de borrego ou de raposo, de vítima ou de aproveitado.’ Qualquer obrar político que, revestido de astúcia, evada a exigência moral fundamental, ficará gorado de raiz: ‘(pois desse modo) nom se inspira confiança, nom se congraciam as vontades, nom se ganha glória nem estimaçom, nom se chega a ser estimado dos bons vizinhos, nom se servem as causas justas e elevadas.’
Forças e limites
É suficiente o moralismo? A questom que Fuco nos coloca é de primeira magnitude, pois alude a um estado anímico com o que, tarde ou cedo, bateu todo galego resistente que, surdo aos cantos de sereia, se mantém afincado nos princípios. Os estudiosos do bezerrense definem-no-lo com tenaz e decidido, forte e íntegro, mas também airado, ignorado, isolado politicamente e extremadamente polemista, mesmo iracundo. Por trás das lealdades solitárias sempre ajeja umha sombra de tristura, como reconhecia o pondaliano López Pasarón a propósito da experiência arredista na Argentina: ‘na nossa Pondal somos sempre os mesmos, em número e em enteireza, que há dez anos (…) que motivo pode haver para que na nossa colónia composta de 50000 galegos só haja 50 que saibam compreender o que necessita a nossa Pátria? (…) sinto por instantes que me invade um pessimismo, um noxo, umha xenreira contra os secos de coraçom e de sentimento, contra os orfos de personalidade e enteireza, de que estám colmadas as nossas sociedades.’
Esta experiência nom é umha peculiaridade galega, nem arredista, porque é universal, e atinge a toda minoria firme. Alexis de Tocqueville entendeu muito bem esta linha de cruzamento da psicologia com a política ao escrever: ‘o mesmo esforço que fai sair violentamente um homem dum erro comum, quase sempre o arrasta até fazê-lo traspassar os limites da razom; para atrever-se a declarar umha guerra, ainda legítima, contra as ideias do seu século e do seu país, requere-se umha certa violência e ousadia, e esta classe de pessoas, seja qual for a direcçom que tomarem, rara vez acadam a felicidade ou a virtude.Isto explica porque se acham tam poucos revolucionários moderados e honestos, mesmo nas revoluçons mais necessárias e santas.’
Podemos ler no tom de Fuco Gómez, em boa medida o tom do independentismo até hoje mesmo: ambos desliçam-se facilmente do orgulho à presunçom, da crítica à fúria, da luita ideológica à comparaçom pessoal, da esperança à desolaçom. Ambos parecem ter tanta preocupaçom com o seu histórico inimigo, como com os recelosos em aderir às próprias fileiras. Deste modo, a 125 anos do seu nascimento, Fuco dá-nos mais umha liçom interessante na que, segundo cremos, nom tínhamos reparado antes: a importáncia da severidade nos princípios, mas também o seu perigo. Há algo de futilidade, isolamento e impotência nas ‘paixons tristes’ que podem governar a conduta puritana. Vencerám os movimentos que ilusionem, que nom amarguem, que nom comparem, que se mantenham no equilíbrio -difícil mas nom impossível- da máxima compreensom e do máximo rigor. Seremos quem de lográ-lo? Poida que a resposta esteja em maos da nossa própria geraçom.
1Álvarez; R.: ‘Fuco Gómez: Grafía Galega, Habana, 1927’, in Actas V Congreso da Asociación Internacional de Estudos Galegos, Havana, 2005, Bao Abelleira, A: ‘Fuco Gómez. Nacionalismo e humanismo. Ideário dun arredista’ in http://www.terraetempo.gal/artigo.php?artigo=1134&seccion=4, Diéguez Cequiel, U.B.: ‘Nacionalismo galego. Desarticulación, resistencia e rearticulación (1936-1975)’, http://diposit.ub.edu/dspace/bitstream/2445/64443/1/01.UBDC_TESE.PDF, Martínez Xurxo, Fuco Gómez, AGER, 2007.