Assim chegou a sentença que anula a propriedade dos Franco sobre o Paço de Meirás e ordena à família a devoluçom do bem.
Há duas datas-chave na batalha final pola recuperaçom de Meirás. Som pontos ‘sem volta’ no envolvimento de instituiçons estatais para revisar e modificar realidades protegidas pola legalidade de Franco até chegar à sentença da juíza Marta Canales no início deste mês.
A primeira data é a de 1 de março de 2018 , quando a Deputaçom da Corunha lança a iniciativa política mais importante desde a morte do ditador para recuperar o Paço de Meirás. A segunda é em 10 de julho de 2019 , quando o Estado instaura umha açom contra a família Franco no Tribunal nº 1 de Primeira Instáncia da Corunha.
Entre essas duas datas, tivo lugar um acontecimento que serviu de acelerador em Madrid de um processo que na Galiza já tinha constituído umha frente institucional com duas equipas de especialistas em direito e historiadores a trabalharem em paralelo para ultrapassar a lacuna jurídica por onde começar a desmontar o relato elaborado polo regime de Franco sobre a aquisiçom de Meirás e a herança de Franco.
O acontecimento foi a moçom de censura que derrubou o governo Rajoy e deu lugar ao primeiro governo Sanchez. Com o novo governo nasceu a Direçom-Geral da Memória Histórica, que desde o início, pola mao do seu titular, Fernando Martínez, manifestou sua disposiçom para completar a frente institucional para reivindicar o Paço.
“Fomos capazes de desmontar o relato construída polo franquismo. Era preciso que a justiça levasse em conta que o golpe de estado de 1936 e o regime que ele instaura nom podiam ser considerados um período normal ”, reflete Carlos Babío, autor juntamente com Manuel Pérez, e peritos ambos no julgamento ocorrido em julho passado, do ensaio Meirás, un pazo, un espolio, un caudillo. “O regime de Franco perpetrou muitos saques, mas o Paço tem como beneficiário o líder dos sublevados, que continuou a enriquecer durante quase quarenta anos e que beneficiou a sua família. Nom existe igual caso de impunidade no mundo em relaçom a bens saqueados por regimes totalitários.
No dia 1 de março de dois anos atrás, Valentín González, Presidente da Deputaçom, e Goretti Sanmartín, Vice-Presidenta, compareceram em conferência de imprensa acompanhados polo advogado Xabier Ferreira e polo historiador Emilio Grandío para informar que o relatório elaborado por ambos tivo “força suficiente” para que a instituiçom instasse o Património Nacional a agir para recuperar o espaço.
Foi a primeira vez que uma instituiçom estatal liderou umha açom política e avançou com açons judiciais contra o legado do ditador.
Um ano depois, Sanmartin ainda reclamava por carta ao Património Nacional que atendera o seu pedido. O governo socialista em Madrid deu prioridade à exumaçom dos restos mortais de Franco Do Vale dos Caídos, mas a performance , inicialmente prevista para março, foi suspensa por juiz com aval do Supremo.
Para chegar à primeira data fixada, março de 2018, fôrom dous trechos polos quais a reivindicaçom passou nos movimentos sociais. O último trecho, o mais curto, começara apenas oito meses antes. No início do verao de 2017, Carlos Babío participou em representaçom da CRMH da Corunha (Comissom pola Recuperaçom da Memória Histórica) umha reuniom no Parlamento galego em que se apresentava o rascunho para umha lei galega de memória histórica que estava a elaborar o BNG. Babío informou naquela reuniom que a CRMH iria lançar umha campanha para reativar o movimento pró-devoluçom de Meirás. O CRMH iniciou a campanha com umha proposta: criar umha Junta Pró-Devoluçom como espelho, quase oitenta anos depois, daquela Junta Pró-Paço que tinha administrado a recadaçom, compra e entrega de Meirás. A proposta correu rapidamente e, em 9 de agosto, a Deputaçom já reunira os municípios da Corunha e Sada e as associaçons da memória histórica para constituir a referida Junta.
A outra parte da campanha foi umha reclamaçom: informar à opiniom pública de que a gestom das visitas ao Paço (declarado BOC em 2008) estava a cargo da Fundaçom Francisco Franco e que nelas se fazia apologia do franquismo. A denúncia acabou por ser umha bomba a ponto de transformar a polémica entre a CRMH e a Fundaçom Franco numha das «novelas do verao» dos informativos televisivos em todo o Estado.
O sucesso de ambas as iniciativas deixou a CRMH fora de jogo. Em 30 de agosto, militantes do BNG entrárom no Paço, escalárom umha das torres e hasteárom uma enorme faixa exigindo a devoluçom. As imagens aéreas representárom mais um símbolo na luta por Meirás. Os atores políticos começárom a atuar por conta própria, mas antes do final do ano, a Deputaçom corunhesa e o Parlamento Galego, onde o PP tivo de ceder perante o barulho mediático, criárom grupos de trabalho para reconstruir a verdade sobre Meirás como base para a reivindicaçom legal de propriedade.
Antes que o trabalho desses grupos fosse concluído, Babío e Pérez apresentárom o seu ensaio documentando o saque inicial e subsequente uso e manutençom do Paço polo Estado como a sede da Chefia do Estado franquista.
O longo trecho para consolidar a frente institucional resume-se na sentença do juiz Canales. Tudo começou em 1977 com as primeiras reivindicaçons da Assembleia Popular Galega. Continuou com os debates na vereaçom da Corunha entre 1982 e 1983 entre o PSOE e a esquerda galeguista sobre a estratégia de recuperaçom de Meirás. Prossegue com a criaçom do CRMH em 2004 e as marchas de protesto que se estendem até 2011; e marca um dos seus marcos com a declaraçom do Paço como BIC em 2008 promovida desde o governo municipal de Sada por Abel López Soto, também após umha longa negociaçom entre nacionalistas e socialistas com o bipartido em Compostela e o primeiro governo Zapatero em Madrid.
Após a rapidez com que os acontecimentos ocorrérom entre o primeiro semestre de 2018, os meses seguintes resultárom num um surdo leilom político com o movimento social parado e à expetativa.
Mas o trabalho dos peritos tinha uma base sólida e a Advocacia do Estado manifestou a sua conformidade. Em fevereiro, durante a apresentaçom do relatório encomendado pola Deputaçom, Xabier Ferreira apontou para umha possível forma de reclamaçom – a compra e venda do Paço assinada por Franco em 1941 poderia ser considerada “um negócio fictício” e, portanto, ser anulada. Em junho, o relatório do Parlamento, acrescenta outras vias.
“Nas primeiras reunions havia certa frustraçom entre os advogados porque a documentaçom fornecida polo cartório de Betanços mostrava que os imóveis estavam registados em nome de Franco e a sua esposa e também tinham sido registados em nome da sua filha. Constavam registos do ano 41 ao ano 63. Era essa a realidade que tínhamos: escrituras públicas e com os nomes dos proprietários dessas propriedades, pouco se podia fazer desse lado ”, explica Xosé Manuel Busto, professor de Direito Civil da Universidade da Corunha, um dos autores do relatório do Parlamento galego e também chamado para depor como perito no julgamento. “Digamos que seja o nível de segurança mais alto que podemos encontrar. Mas todos nós também tínhamos em mente que o processo de aquisiçom nom tinha ocorrido num contexto normal. Pensamos que a estratégia tinha de ser documentar o contexto e mostrar que o Meirás estava ligado à Chefia do Estado. E foi possível demonstrar que o Estado era o dono do imóvel e atuou como dono com um tratamento semelhante ao das demais sedes da Chefia entre 1939 e 1975 ”.
Esse foi o foco da açom instaurada e assumida na sua totalidade pela juiza Canales na decisom dalgumhas semanas atrás.
Quando o governo Sánchez foi forçado a adiar a exumaçom dos restos mortais de Franco, também adiou a instauraçom da açom de Meirás, que já estava decidida. Com a convocaçom de eleiçons, Fernando Martínez deixou de exercer o cargo. Passárom as eleiçons gerais de abril e, em julho, o Ministério da Justiça ativou a açom.
Em setembro de 2019, o tribunal marcou o início do julgamento para janeiro do ano seguinte. Em outubro, o estado removeu os restos mortais de Franco do Vale dos Caídos. Em novembro o PSOE ganhou as eleiçons e Fernando Martínez voltou, agora como secretário de Estado.
“Foi a primeira vez que o debate jurídico sobre o golpe de 1936 foi levado a tribunal, porque era impossível continuar a falar de Meirás, ignorando o contexto histórico. Nem sequer teria sido possível determinar a natureza do bem, se público ou privado, independentemente desse contexto. Se a justiça leva em conta que o franquismo nom é um período normal do ponto de vista democrático, nom resta mais a fazer do que a reversom do bem ”, conclui Carlos Babío.
“O argumento foi estritamente legal, dispensando outros elementos que obviamente concorrem neste caso. O relatório jurídico da comissom parlamentar nom contém qualquer tipo de preconceito ou avaliaçom de natureza social ou histórico ou mesmo de justiça material. É um argumento estritamente técnico, científico e jurídico ”, sublinha Xosé Manuel Busto.
A sentença revê e anula realidades protegidas pola legislaçom de Franco da continuidade do Estado. Limita o debate à propriedade e reivindica o “retorno” ao mesmo estado que, segundo a tese do saque, usou a força para roubar dinheiro e terras para adquirir e ampliar o Paço.
Por outro lado, a última batalha de Meirás deixa outros ensinamentos. Até que Carlos Babío o fijo, a comunidade científica galega nom se interessara polo Paço. Até que Goretti Sanmartin o fijo, nenhuma instituiçom do país mostrara vontade política para enfrentar a questom. Babío exortou os historiadores galegos a recuperarem o atraso e a liderança de Goretti conseguiu envolver outras instituiçons, até mesmo o governo do estado. Os movimentos sociais nada conseguem sem umha base científica ou técnica que avalize as mudanças jurídicas que promovem. Meirás é umha porta que demorou a abrir, mas vai abrir outras.