Não precisamos uma política florestal, precisamos uma política da terra e para o país.

Como desde alguns anos atrás chegado o mês de setembro os incêndios começam a assolar parte importante do nosso território. São alguns dias que apresentam condições favoráveis à reprodução do lume, e, normalmente a intensidade e virulência destes incêndios é muito forte. As respostas imediatistas e simplórias abundam por todos os lados e os agentes diretamente implicados fogem das lapas como sempre: impunes e, passados uns dias, até reforçados. Pretendo com este escrito aportar uma leitura desde o Sul da província de Pontevedra e chamar atenção para a necessidade de pensar o problema com um olhar mais largo do que somente florestal, como até agora.

As atuações de Feijoo (e as imagens dele decorrentes como aquela com a mangueira descendo uma ladeira) e de seus secuaces (Fernández Couto e companhia) são mais uma curtina de fumo para um problema que se arrastra por dezenas de anos e que tem na falta de reconhecimento de nosso regime fundiário e na ausência de uma política não-florestal o combustível pronto pra arder. A perda de importância do agrário e tudo o que envolvia (hoje florestal) assim como o despovoamento das aldeias e a falta de oportunidades para as moças são mais combustível pronto pra queimar.

Uma vez apagados os incêndios, com as chuvas, começam a chegar as medidas extraordinárias: as promessas de desenhos e de reformulações da política florestal que são, ou, resultam ser, panos quentes para feridas fundas. No entanto há um vislumbre de esperança, pois, desde uns anos pra cá observamos uma importante mobilização social que atua diretamente nos incêndios. Mais importante ainda, começam a aparecer planificações e estratégias autônomas dos vizinhos atingidos após os incêndios. Basta ver a quantidade de pessoas que vão ao monte com as chamadas brigadas deseucaliptizadoras, o apoio que gandeiros do Norte prestaram às comunidades do Condado no 2017 doando palha de suas explorações como aconteceu nas Cortellas (Ponteareas), ou o plano de atuação que estão fazendo desde a CMVMC nos montes de Coruxo (Vigo). Tudo isso é ação social de base comum.

Defendo (como hai anos vêm defendendo e sem que se lhes escute aos nossos grandes historiadores do mundo rural) que não precisamos de uma política florestal, precisamos de uma política fundiária que entenda as peculiaridades, uma política da terra e para a terra. A resposta cidadã, é mais uma mostra da importância central que tem em determinados momentos o nosso passado de auto-organização e de trabalhar de forma comum.

Considero que, para procurar uma explicação à vaga de lumes, não adianta nos remeter as velhas imagens das retiradas do General Soult queimando tudo por onde passavam que ainda se mantêm vivas, por exemplo, na memória do Couto Misto; ou, de uma criminalização banal para com os gandeiros; ou pensar nos conflitos sociais entre vizinhos. Uns e outros são, afinal, mais uma forma de externalizar a nossa responsabilidade enquanto cidadãos, atrelando essa imagem mitológica, e podendo, rapidamente apontar causantes. Como sempre as acusações são bem mais rápidas que a reflexão. As situações imaginárias e acusadoras se apontadas no calor dos fogos são sempre meras arestas de um problema maior e mais grave.

Se nos aproximarmos dos discursos produtivistas dos engenheiros florestais, sempre relevantes após as vagas de incêndios, veremos que rapidamente afloram outras lógicas. Para eles sim que a história não é relevante. Articulam dados que lhes ajudam a construir outras narrativas e lhes possibilitam salvar a espécie australiana que vez por vez aparece no centro da trama. Os mapas e as estadísticas ajudam-lhes a criar esse senso cientificista que lhes permite falar de forma objetiva, sem colocar no centro da trama, por exemplo, o favor e a ajuda que dão à empresa papeleira e seu complexo industrial e financeiro. Que, diga-se de passagem, mantem e sustenta uma parte importante de ex-políticos do país como ex-conselheiros, uma escola de engenharia florestal doutrinária, assim como “n” selos de certificação de suas cadeias e produções. Ou seja a indústria florestal gravita à volta de poucas espécies e portanto os dados econômicos também.

A proposta de parte desse grêmio é a “posta em valor”, a rendibilidade, o aumento da produção e da produtividade da superfície florestal. Tudo em nome da economia e do capital. E as nossas formas senlheiras de uso da terra sempre massacradas por essas narrativas clarividentes. Se a propriedade fosse privada stricto sensu ou pública tudo renderia mais.

Desconhecemos (e aqui me coloco como parte do debate, por ter sido formado como engenheiro florestal) ou não consideramos a nossa história, assim como os usos anteriores da terra à política florestal. Porque se, pensássemos na origem da política florestal, na lógica do monocultivo e da produtividade, rapidamente chegaríamos a um fundo que não queremos ver. Toda a lógica do florestalismo enquanto política pública vêm de uma expropriação fundiária dos nossos antepassados, das nossas famílias camponeses e da imposição de monocultivos. Dessa forma começa um túnel em que a diversidade de usos e aproveitamentos começa esmorecer, e so queremos chegar na luz ao fundo. A expropriação territorial já denunciada por Thompson, em seu estudo clássico acerca dos cercamentos não está longe de ter uma esfera de significação na nossa terra, se pensamos por exemplo as atuações nesse eido do fascista Franco. Com ele também chegou na época a companhia papeleira nacional, hoje Grupo Ence.

Não podemos esquecer as importantes achegas de uma política exclusiva de combate aos incêndios, sem termos claramente apostas pela prevenção. Uma equipe de bombeiros profissionais (fixos, fixos contínuos e temporais) altamente comprometidos e capacitados que trabalham apenas 3 meses ao ano. Algo dessa economia também deve ser boa pra alguns.

Precisamos retomar os processos fundiários e as políticas de expropriação, e, desde o reconhecimento das nossas particularidades, das nossas territorialidades concretas começar a imaginar um mundo que não está desenhado.

Não precisamos mais de uma política florestal, mas fundiária.

A política florestal já vimos que deu errado. Desde as nossas formas particulares de uso da terra, têm que vir ou emanar as políticas, e não serem implementadas de forma vertical e impositiva para acabar com o nosso e os nossos protocolos. E, se as comunidades decidirem manter os cultivos florestais também respeitar essa decisão. Já temos bastantes anos de experimentação florestal e, pode ser, que nalgumas comarcas resulte, ou reservar uma parte.

Sem o respeito e fortalecimento, e, até reinvenção se for preciso, das nossas terras de uso comum não encontraremos uma viagem ao nosso, como vemos aflorar quando mais precisamos. Os grupos de vizinhos autoorganizados apagando fogos, retirando invasoras, plantando arvores ou se juntando em prol de um futuro, tem que ser a raiz da solução. E a administração reconhecer nossos próprios processos reivinidicativos e respeitar as nossas decisões soberanas.

Se continuarmos reduzindo a realidade a dados quantificáveis e econômicos, estaremos fadados a continuar sofrendo. Com essa administração que temos, herdeira dos processos de expropriação, e com um claro projeto de esvaziamento e retaliação dos nossos montes vecinhais em mam comum, continuaremos alimentando desavenências e conflitos. Agora que estão apostando até na entrada de bancos para financiar atuações em montes vecinhais, precisamos estar ainda mais alerta, afinal de contas, a finaceirização, como Harvey vêm denunciado é a nova dentada do capitalismo encima das terras, os neo-extrativismos amparados em certificações.

Temos exemplos de sobra, isso sim, devidamente silenciados. As comunidades de regantes, as águas de uso comum, os tecores associativos de caçadores, as cooperativas, a agroecoloxia, projetos de montes multifuncionais, cogumelos, abellas, animais,gando, lazer, alta montanha, até bancos pra desfrutar dessa paisagem que, geração após geração, nossos passados foram esculpindo a mão. Não pode ser que não encontremos desde esse reconhecimento aos nossos velhos um projeto comum na diversidade.

Alter do Chão, Amazônia, 23 de setembro de 2020

*Diego Amoedo Martínez

Nascido no Condado, natural da aldeia das Cortellas. Formou em Engenharia Técnica Florestal pela UVigo em 2007. Em 2014 finalizou o mestrado em Antropologia Social na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, Brasil) e em 2019 se doutorou na mesma universidade. Os temas de pesquisa abordados no mestrado foram os usos e desusos das terras da aldeia de Tourém (Montalegre, Alto Barroso, Portugal). Foi vencedor do XXII Prêmio Vicente Risco das Ciências Sociais (2018) sendo publicado o seu livros: “Usos e desusos das terras de Tourém: transformações sócio-territoriais numa aldeia rural fronteiriça do Norte de Portugal com a Galiza” (Dr Alveiros, 2018). Já no doutorado o foco de sua pesquisa foram os conhecimentos mobilizados no sistema agrícola das aldeias de Tourém e Pitões das Júnias (Montalegre, Alto Barroso), os usos das terras, as culturas e suas historicidades. Desde dezembro de 2017 é professor de Antropologia na Universidade Federal do Oeste do Pará (Brasil) e pesquisa os sistemas agrícolas tradicionais e os usos das terras e das águas principalmente de populações tradicionais e indígenas da Amazônia.