Na atualidade, os limites da normalidade parecem estreitar-se ao frenético ritmo em que aumenta a diagnose de doenças físicas, mentais ou sensoriais que o saber-poder médico sanciona como “discapacidades”, levantando um muro ‑com pretesons científicas- que divide, segundo o sociólogo galego Ferrante, dicotomicamente a existência humana entre o normal/saudável/formoso e o anormal/doente/feio.
O ser humano já nom encontra refúgio onde manifestar naturalmente a sua diversidade constitutiva. É perseguido por umha vaga de especialistas que o disecionam como objeto de conhecimento, dentro duma ampla rede disciplinar que procura o seu adestramento, adaptaçom, classificaçom e normalizaçom, tal e como o expressara Foucault. A hiperatividade, ou excesso de movimento, poderia ser o teu trastorno se fosses umha criança aborrecida na escola; o estresse, polo contrário, seria-te diagnosticado polo médico da empresa se fosses um trabalhador que nom logra adaptar-se ao ritmo imposto polo patrom. Em ambos os casos o saber-poder médico despolitiza os conflitos, respetivamente, inscrevendo-os no âmbito médico do défice individual.
Mas, como é possível que a normalizaçom operada pola ciência médica se fosse instalando nos modos de regulamentaçom das nossas relaçons quotidianas? A genealogia deste imperialismo médico está ligada à apariçom das técnicas de poder disciplinar, no século XVIII. A partir de aí, o poder transita cara uma nova modalidade, segundo a qual, nom será a lei (de inspiraçom divina) a que justifica a sançom, senom a norma (como construçom científica).
A força de trabalho “discapacitada” ou “ineficaz”, portanto, constituía um excedente prescindível que devia ser apartado do processo produtivo.
Naquela altura, desviadas da norma médica, estavam as pessoas concebidas como anormais, a saber: prostitutas, pobres, homossexuais, mancos, etc. Situaçom que justificava a sua institucionalizaçom num momento histórico em que as necessidades funcionais do Capitalismo nascente exigiam duma abundante mao de obra eficaz e produtiva. A força de trabalho “discapacitada” ou “ineficaz”, portanto, constituía um excedente prescindível que devia ser apartado do processo produtivo. Como consequência, a ineficiência económica era um dos fatores que motivava a criaçom da “anormalidade fisiológica”, como objeto de estudo da medicina, adquirindo o status de natural, quando em realidade era fruto duma construçom social e histórica, como nos lembraria Bourdieu.
O modelo social, confrontaria-se ao médico, considerando a discapacidade nom como um facto natural ou fisiológico, senom como uma experiência de opressom, marginalizaçom e exclusom
Ao longo da história, desenvolveram-se diferentes modelos epistemológicos que trataram de estudar a realidade dos corpos nom normativos desde diferentes perspetivas. O modelo social, confrontaria-se ao médico, considerando a discapacidade nom como um facto natural ou fisiológico, senom como uma experiência de opressom, marginalizaçom e exclusom cara um grupo de pessoas por possuírem capacidades diferentes às consideradas próprias dum corpo saudável.
O próprio coletivo foi ciente de que utilizar a palavra “discapacidade” implicava autodefinir-se negativamente, subalternizando-se ao modelo normativo capacitista. Nasce assim a ideia de diversidade funcional como ferramenta ideológica, da mao do movimento de filosofia independente, para denotar os diferentes modos de agir que as pessoas manifestam, evitando a hierarquizaçom entre eles.
A situaçom de privilégio que ainda tem o sujeito que ocupa o cume da pirâmide social normativa: o homem branco, ocidental, heterossexual, de classe alta e “capaz” tem os dias contados, afortunadamente.