Nestes dias recorda-se o aniversário dum dos golpes reaccionários mais sonados do século passado, desde que gorou a possibilidade dum caminhar pacífico e institucional para o socialismo. A queda do governo da Unidade Popular chilena em 1973 supujo um jarro de água fria para as esperanças de muitos povos, e colocou de novo o debate entre pacifistas e insurgentes nas fileiras revolucionárias. 46 anos mais tarde, analistas de esquerdas chilenos falam sobre possibilidades de mudança e ameaças de violência reaccionária. Traduzimos artigo de Octavio García Soto sobre os últimos acontecimentos.

Em Chile, as mobilizaçons normalmente acarreiam gas pementa, canhons de água e violência policial. Isto é especialmente forte na regiom do Sul da Araucania, onde umha presença policial abrumadora desdobra-se secularmente contra o povo mapuche privado de direitos. Acrescentemos a isto quarentenas e toques de queda militares, e teremos ideia do completo cenário.

E porém, houvo umha cena bem diferente no 1 de agosto, quando mais de cem civis armados com paus rodeárom os prédios municipais nas vilas surenhas de Curacauitín, Victoria, Ercilla e Traiguén. Arriscárom umha multa de 2500 pesos por racharem o toque de queda (12500, se eles forem positivos em Covid). Os lumes e a luita de rua inçárom a noite, ainda apesar da presença policial. Prontos e uniformados com material antidistúrbios, nem a polícia nem o exército intervinhérom.

A repressom da revolta popular em outubro do 19, que deixou 36 pessoas mortas e até 11000 feridos, demonstrou que os carabineiros de Chile nom se amedonham ante cenários duros. Logo, que se passou? Foi a besta domada?

Ou o que acontece é que eles som racistas. Porque levemos em conta que estes manifestantes nom exigiam umha justa distribuiçom da riqueza, umha nova constituiçom ou o final da brutalidade policial. Eles baduavam ‘Índios fora’ ou ‘quem nom salta é mapuche’). Os seus protestos iam dirigidos às municipalidades ocupadas por militantes mapuches, a reclamarem a libertaçom de vinte oito prisioneiros. Tais presos estám na cadeia no contexto da sua luita por recuperarem quanto menos parte dos 9,5 milhons de acres que lhes arrebatou o estado chileno, dum total de 10 milhons que eles possuíam originariamente.

A Assembleia Nacional aprovou recentemente umha pesquisa sobre as razons polas que as forças de segurança e o exército nom reagiram a esta desorde. Mas nem cumpre muita especulaçom para descobrirmos o porque.

Reaccionários desbocados

após quarenta anos de constituiçon neoliberal herdada do pinochetismo, o referendo nacional para umha nova constituiçom vai-se aproximando. E muitos extremistas de direita estám a desempoeirar a velha parafrenália paramilitar da sua família.

Antes de a pandemia ter paralisado o país, houvo já cenas de violência e manfiestaçons em apoio à constituiçom de Pinochet. Armados com varas, capacetes e escudos -alguns mesmo com bandeiras confederadas-, os manifestantes nom carregárom apenas contra quem se lhe opunham, senom também contra simples peons. A polícia ficava a mirar, ou por vezes mesmo defendia os extremistas de contra-ataques.

Como muitos extremistas de direita dos Estados Unidos, muitos destes reaccionários tenhem desenvolvido umha certa inclinaçom polas armas de fogo. Dá-se o caso dum youtuber imputado na actualidade por atacar nove pessoas num desses protestos, tem postado repetidamente fotos dele mesmo com pistolas, a ameaçar vários movimentos sociais. No passado fevereiro, três homens e duas mulheres de famílias ricas foram arrestados por posse de armas de fogo, muniçom, e por terem participado na compra e venda dum AK-47. Todos eles, cinco pessoas, auto-identificárom-se como pinochetistas. O governo, ainda, refugou persegui-los com as leis antiterroristas, dada umha alegada ‘falta de evidências’. Ainda, tal falta de evidências nom foi um problema quando se tratou de perseguir activistas mapuches.

Ainda, rifles de assalto semelham ser a última moda nos círculos da extrema direita. Na última semana de agosto, professores da Universidade Federico Santa Maria receberam ameaças de morte por parte dum grupo nacionalista. O mail tinha umha imagem do AK-47 e condenava o currículo secular da Universidade. Afirmavam ter vinte e dous homens prontos para a acçom, e advertiam: ‘imos-te eliminar, imos limpar Chile, começando contigo. Chile mudou e tu vas morrer.’

O ascenso na actividade paramilitar fai-nos recordar a clara divisom da sociedade chilena que emergeu antes e durante a presidência de Salvador Allende, do 1970 ao 1973. Na altura, o grupo fascista mais prominente era Patria y Libertad, cujas actividades iam desde malheiras a esquerdistas na rua até ataques terroristas com bomba e assassinatos políticos. O grupo mesmo chegou a tentar um golpe de Estado prévio àquele em que triunfou Pinochet a inícios de 1973.

A ideologia de PyL está presente no interior dos partidos de governo UDI e RN, e ainda se manifesta com mais força no Partido Republicano de José Antonio Kast. O PR tem mais de 30000 filiados, ainda apesar de levar pouco mais dum ano de vida. O seu discurso baseia-se nas notícia falsas, na defesa da ditadura, e na equiparaçom dos esquerdistas com terroristas. Kast fai agora parte da campanha que rejeita a nova constituiçom.

Fome manufacturada

Por enquanto, o país reabre as suas fronteiras depois de ser um dos mais golpeados polo Covid, com mais de doze milhares de mortos, e umha taxa de mortes por milhom ainda pior que a dos USA.

A fúria dos movimentos sociais tem medrado muito: a legenda nas ruas destes dias já nom é ‘dignidade’, como nos primeiros dias de outubro de 19, quando milhons de pessoas enchêrom as ruas a reclamarem a fim do modelo neoliberal chileno. Agora é ‘fome’.

Com pouco ou nenhum suporte institucional, pequenas cozinhas auto-organizadas chegárom a ser o apoio diário de muitos chilenos e chilenas; e a perspectiva de mais de 1 milhom de desempregados mais para o final do ano traz relampos dos piores dias da ditadura, quando famílias tinham que curtar gastos, até o ponto de terem que partilhar saquinhas de cha individuais. O trabalho na morada nom é umha realidade para a maioria dos chilenos que tenhem a sorte de reterem os empregos. Assim, arriscam-se cada dia ao contágio no trabalho, o que se soma ao sistema de saúde a cada mais privatizado que o sistema oferece.

Recentemente, a oposiçom reclamou para si umha vitória na chamada ‘Lei da Retirada do 10%’, promovida por independentes e democrata cristaos. Pretende ser um mecanismo para gerir a crise económica, e estabelece que as pessoas poderám retirar agora o 10% dos seus fundos de pensons. Mas isto, na realidade, apenas oferece um alívio no curto prazo. A média de retirada é apenas de 1,277 pesos (na realidade, o sistema de pensons chileno foi um dos detonantes da revolta de outubro). E é claro que as consequências do canibalismo financeiro baterám de novo nos maiores se o sistema nom se transforma.

Com isso e contodo, tal iniciativa nom devesse ser condenada demasiado duramente, quando propostas ainda mais duras provavelmente suporiam o risco do veto presidencial. Quando o governo de Piñera dá os primeiros passos para a reabertura do país, a recuperaçom dos protestos parece inevitável. O presidente tomou nota disto, e reagiu em consequência. O ex-alcalde da cidade sulista de Los Ángeles durante a ditadura, Victor Pérez, foi nomeado como novo ministro de interior e segurança nacional.

Outro admirador confesso de Pinochet, ele é suspeito de ter colaborado com a infame ‘Colonia Dignidad’, um centro utilizado por alemáns e chilenos para internamento, torturas e assassinato de dissidentes, sob a liderança de Paul Schäfer, um nazi fugido.

O mais recente déjà vu dos 1970 procede das empresas de transporte. Estas aliadas históricas da direita estám a jogar mais umha vez um papel desestabilizador, como fixérom durante o governo de Allende, com apoio da CIA. No final de agosto anunciárom um bloqueio de actividades e declarárom que ‘nom iam transportar nem um kilo de açúcar’. Enquanto o paro dos 70 foi a resposta à nacionalizaçom das indústrias, agora o objectivo é impulsionar medidas autoritárias e policiais -com o argumento dos ataques incendiários sofridos polos camions na Araucania. O seu paro, ele próprio si ‘terrorista’, traz o risco de mais fome e dumha crise económica mais aguda.

O vindouro referendo de 25 de outubro poderia marcar mudanças significativas num dos países mais desiguais do mundo. Embora a opçom pola aprovaçom dumha nova constituiçom parece ser favorita, com 71% de apoio nos inquéritos, a violência política poderia vir a seguir. Pola vez primeira desde a presidência de Allende, os chilenos tenhem a opçom de banir as bases fundacionais, racistas e nom igualitárias, do seu países. Mas como entom, a elite chilena e os grupos reaccionários juntam forças para o impedir.

Publicado em jacobinmag.org com o título ‘Chilean far right wing is taking up arms’. Traduçom do Galiza Livre.