Nos finais do ano 1926, Antonio Gramsci era encerrado em regime de isolamento na prisom de Regina Coeli. O fiscal que o condenara chamava-se Michel Isgrò, e num alarde de sinceridade manifestou: ‘devemos impedir que este cérebro pense durante vinte anos’. Para a repressom sempre foi importante blocar o desenvolvimento das ideias ou espalhar um medo inibitório do pensamento e a palavra. Assim foi que o comunista italiano ficou baixo chave quase umha década acusado de ‘conspiraçom e incitaçom ao ódio de classe, à guerra civil, à insurrecçom e à mudança violenta da constituiçom e da forma de governo.’

Muitas décadas depois, o pensador Fernández Buey assombrava-se de que Gramsci tivesse umha produtividade tam singular nos seus anos de encerro. À vez que escrevia sobre processos históricos mui vastos como o nascimento do fascismo, o papel social da literatura ou a formaçom da cultura nacional-popular, o militante esculcava a sua própria personalidade. Avaliava a evoluçom e a deformaçom do seu espírito com a finura de um psicólogo. E na sua correspondência com familiares aconselhava e auto-aconselhava sobre como encarar a adversidade, com o tom e as receitas que hoje adjudicamos ao género da auto-ajuda. Podemos dar umha volta ao razoamento de Buey e dizermos que, precisamente por debruçar com tanto esforço no interior, Gramsci foi tam capaz de contemplar lucidamente o mundo de fora. Por outras palavras, só um equilíbrio interno conseguido com esforço lhe permitiu ser o intelectual que hoje temos a fortuna de conhecer.

O que chamamos auto-ajuda é a versom de quiosco da filosofia. No ensino médio transmitírom-nos que este era um tipo de conhecimento bastante inútil; quiçá subtil ou pracenteiro para os amantes da especulaçom, mas em qualquer caso alheio às exigências da vida. Se tivermos ócio e comodidade abondo, poderíamos entreter-nos nas questons mais abstrusas e nos grandes enigmas metafísicos. Esta focagem arredou-nos dum conhecimento mui valioso e impediu-nos compreender personagens importantes. Epicteto, um dos pais do estoicismo, era um escravo que tivo que enfrentar-se às penúrias do pior submetimento; o próprio Marx, absorvido pola aridez da economia política e preocupado com a organizaçom do movimento obreiro, inspirou-se no ideário de Epicuro sobre a vida boa; e Simone Weil, possivelmente umha superdotada que mergulhava em pensamentos labirínticos, era também a mulher que trabalhava na cadeia de montagem de Renault ou carregava caldeiros na vendima. Nessa sequência podemos incluir Gramsci, para dizermos: a filosofia nom é património da vida cómoda, nem tampouco nos divorcia da prática; e longe de fazer-nos naufragar na divagaçom, orienta-nos no dia a dia.

“O que chamamos auto-ajuda é a versom de quiosco da filosofia. No ensino médio transmitírom-nos que este era um tipo de conhecimento bastante inútil”.

É quase seguro que Gramsci conhecia os clássicos gregos e romanos, e segundo lemos na traduçom para o galego da sua correspondência (Cartas do cárcere. Antologia, Estaleiro, 2012) depositou umha enorme confiança no vigor do espírito humano, e nas possibilidades de poli-lo quando todas as luzes parecem apagar-se. Nos primeiros meses de reclusom, ciente do que lhe vem acima, observa tranquilo ‘como de perfeita é a maquinária humana, adaptando-se a qualquer circunstáncia, por antinatural que for.’ Procura acougar a família vincando no severo adestramento mental que o formou durante os primeiros anos: ‘levei sempre umha vida extremadamente sóbria e rigorosa’, recorda-lhe, apesar das ‘aparências de fragilidade’ que acordam a preocupaçom dos seus. Ante a alarma da mae, vindica as suas origens: ‘desde os dez anos, mais ou menos, encontro-me num ambiente de luita e fixem-me bastante forte; poderia ter sido assassinado umha dúzia de vezes, mas ainda estou vivo. De resto, fum feliz durante algum tempo (…) estou tranquilo e calmo, nom necessito em absoluto nem compaixom nem consolo.’ Com determinaçom, rejeita qualquer comodidade ou amolecimento, porque a considera ‘umha espécie de vício que depois é difícil de extirpar, dada a ausência de distraçons. Se se quiger permanecer forte e manter intacta a própria capacidade de resistência, é preciso impor-se um regime e segui-lo firmemente.’

Em 1927 escreve ao seu irmao aquele pequeno parágrafo que semelha um manifesto do estoicismo dos nossos dias: os estados de ánimo popularmente conhecidos como optimismo e pessimismo som, ao seu ver, vulgares, e cumpre viver além destas categorias; ‘convencim-me de que mesmo quando todo está ou parece perdido, é preciso pôr-se maos à obra tranquilamente, recomeçando do início. Convencim-me de que sempre é preciso contar apenas com um mesmo e com as próprias forças; nom esperar nada de ninguém e nom procurar-se portanto desilusons. Que é necessário propor-se fazer só o que se sabe e o que se pode fazer, e seguir o próprio caminho.’ E com honestidade e modéstia, esclarece: ‘nom som demo nem santo, senom um homem meio que tem as suas conviçons profundas.’

Cremos que precisamente por ser mui perceptivo ante o perigo, Gramsci puido evitar essa grande deformaçom de tantos estoicos e militares, a deriva para o embrutecimento. Ciente do seu deterioro, sabia também como conservar as brasas da ilusom e da atençom cuidadosa a todas as cousas“.

Claro que, a diferença da auto-ajuda que triunfa nas livrarias ou nos videos virais, a soluçom mágica nom existe; o caminho escolhido nom é exactamente o bom, senom o menos mau; e com as luzes que oferece, aparecem as muitas sombras. No fundo, Gramsci sabe que nom há nada de invejável em virar umha máquina analítica, um ermitao, ou um mestre consumado do distanciamento. Para sobreviver inteiro nessa combinaçom de monotonia e violência, Gramsci desenvolve a coiraça clássica que portam quem enfrentárom a guerra, a prisom ou a doença. A Giulia, a sua companheira, escreve-lhe o útil que é observar a degradaçom progressiva dos mais dos presos sociais, escravos dos vícios e das tendências destrutivas; umha experiência tam formativa ‘como a que tinham os espartanos ao observarem a degradaçom dos ilotas.’ Em outra das cartas, sulinha a importáncia da resignaçom, umha espécie de anulaçom da esperança formulada por um ateu: ‘cheguei à decisom calma de nom me opor, com os meios e as maneiras de antes, que eram ineficazes e ineptos, àquilo que é necessário e inelutável, mas de dominar e controlar, com certo espírito irónico, o processo em curso.’

Sem concessom ao auto-engano, Gramsci entendia mui bem como umha virtude intensificada pode derivar no seu contrário: ‘a paciência que ganhei na prisom é a expressom necessária da rotina carcerária, e também um elemento de autodefesa instintiva. Algumha vez (…) converte-se numha espécie de apatia e indiferença que nom dou superado.’ O gosto pola meditaçom solitária facilmente se transforma em aspereza e perda de habilidades sociais. À sua irmá Tatiana confessa-lhe ‘parece-me que todos os vínculos com o mundo externo vam rompendo um por um. Estou-me a encasular por completo. A minha atençom dirige-se ao que leio e produzo. Tenho a impressom de ter caído novamente no estado de obsessom.’ Atento a como se desenvolve o seu sentido de frieza e indiferença extremas, reconhece ter adquirido ‘um pouco de sensibilidade nervosa e doentia’, que acompanha ‘a perda do hábito externo da sensibilidade.’

Cremos que precisamente por ser mui perceptivo ante o perigo, Gramsci puido evitar essa grande deformaçom de tantos estoicos e militares, a deriva para o embrutecimento. Ciente do seu deterioro, sabia também como conservar as brasas da ilusom e da atençom cuidadosa a todas as cousas. Em 1930, escreve à mae: ‘avelhentei quatro anos, tenho muitos cabelos brancos, perdim os dentes, já nom rio com alegria como antano mas creo que cheguei a ser mais sábio e que aumentei a minha experiência dos homens e das cousas. Polo demais, nom perdim o gosto pola vida: todo me interessa ainda.’

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A esquerda mais medíocre diz que o inimigo triunfa porque nom cai nas nossas filosofadas e, pola contra, ‘atende os problemas do estômago’: fala de cifras, assegura bem estar e promete trabalhos. Nada mais falso. A direita, e particularmente a extrema, satisfai antes de nada duas necessidades insubstituíveis da alma humana: a necessidade de pertença e a segurança contra a incertidume. Num movimento de alcanço mundial, está a transformar o medo crescente ao solpor civilizatório no conforto da massa gregária, covarde e vociferante. Essa boa leitura filosófica das nossas zonas obscuras possibilitou o seu sucesso antano, e hoje volve a dar-lhe força, de Estados Unidos à Ucraína, e de Brasil a Grécia. Na imprensa de grande tiragem, o assessor de comunicaçom e consultor Antoni Gutiérrez lamentava-se com preocupaçom na semana passada das ‘democracias fatigadas’; regimes e sociedades esgotadas por crises súbitas e virulentas, sem existirem sólidos sistemas de valores que puidessem deter a dessídia e a anomia. Tam só a direita extrema, recordava o autor, está a capitalizar tal estado mental virando-o em fúria e ódio violento. Cumprirá muito ‘conhecimento psicológico e neourociência’, concluía o autor, para poder reverter este processo.

Há quase um século, Gramsci ensinou-nos como cultivar o nosso interior, acadando umha combinaçom mui difícil de dureza e sensibilidade. Na tradiçom arredista, esta veta de pensamento nom é alheia, e os nossos jornais dos anos 30 abordam a forja da personalidade como um dos temas capitais. Certamente, a empresa é imponhente. Nom é doado construir certa segurança frente a facilidade dos placebos ou do repregue doméstico nestes tempos incertos; mas vai ser o próprio esfarelamento do que considerávamos totalmente inamovível o que nos conduza, tarde ou cedo, a atender esta dimensom esquecida.