Em tempos de pandemia, discursos e debates sobre a Renda Mínima Vital e varias Rendas Básicas começam a chover. Bem-vindos, se realmente servem para avançar em direcçom a umha consciência social e umha visom de que atender às necessidades básicas é um direito de todas as pessoas. Certamente, aviso por minha própria experiência que, se o debate se começar a generalizar, chegaram tempos de moita discusom porque aqueles de nós que passamos anos arredor deste tema sabemos que esses debates levam todo o ADN capitalista que carregamos dentro de nós. Ouviremos que as pessoas nom vam querer trabalhar e ouviremos que as empresas vam ir à quebra e ouviremos que nom há dinheiro para apoiar a todas nós. Serám tempos em que gastaremos muita energia as defensoras de algo tam básico como que nós, pessoas, temos direitos por nascer e nom precisamos ganha-los ao longo das nossas vidas, seja em empregos, casamentos ou contraprestaçons ao serviço dum Estado que nos abandonou há muito tempo para beneficiar grandes capitais. Estamos aquí e todas, só por esse motivo, temos o direito de comer, dum telhado, de saúde, de educaçom e de cuidados em resumo. Mas isso, que deve ser fácil para qualquer entender, pelo que lhe toca, é complicado num mundo em que a individualidade triunfou e a premissa é que todas se aproveitam ou som pessoas piores que mim. Imos cruzar isso co patriarcado, o racismo e as varias desigualdades que nos ocorrem, e a cousa é ainda mais complicada, porque já entramos no nosso papel como juízes da humanidade que nos auto-outorgamos para elaborar a escala de quem a merece mais e quem menos, em vez de entender que nom importa quem sejas; estás aquí e, assim que tiveras cuidados básicos e bem-estar, começamos a dialogar.

Estes debates estám em marcha há anos. A Renda Básica Universal ven-se desenvolvendo e discutindo há muito tempo amplamente e as gentes de Baladre falamos sobre a Renda Básica das Iguais ( RBis) num passo mais desde a construçom comunitária, feminista, descolonial e anti-racista. De qualquer forma, muitas das que estiveram nessas discusons os últimos tempos (pré-pandemia) estavam debatendo trabalhos, empregos e até cruzava já por aquí a robotizaçom das vidas, relacionada a este tema. A maioria dos discursos estám intimamente ligados ao espaço produtivo e tradicional, onde a esquerda identifica a construçom da luta dos trabalhadores, as fábricas ou a relaçom empregador-trabalhador tradicional (no masculino, porque a visom tradicional também semelha masculina). A partir do discurso da Renda Básica das Iguais, o ponto de partida é outro, é colocar a vida no centro, som os cuidados e a creaçom do comunitário, é partir de que em mundos interdependentes e em planetas com limites, só com comunidade pode haver cuidados e que o piar é a comunidade e nom a renda. A renda é umha ferramenta para alcançar outras realidades, nom um objectivo em si mesmo, e é no desenvolvimento das RBis em que começamos a introduzir umha visom que aterrize no rural, na comida e no que pode significar algo como umha Renda Básica das Iguais no medio rural, até agora totalmente abandonado e desprezado desde a cidade como espaço de construçom contra a destruçom capitalista, a pesar de ser o médio que nos alimenta e sustenta as nossas vidas. Prova disso é que algo tam evidente como a precariedade do sector agropecuário, amplamente conhecida, raramente é considerado um elemento na maioria dos debates sobre a Renda Básica e, à súa vez, associaçons agrárias de qualquer tipo nom participam desse processo de debate, primeiro porque nom foram convidadas e segundo porque penso que elas próprias nom o consideram algo que lhes atinge. E é algo que se refere a todas nós.

Se olharmos para o sistema alimentar, temos um sistema que nos últimos 60 anos se desenvolveu para a dependência de insumos externos, modelos insustentáveis co meio ambiente, baixa renda para as produtoras e um ambiente rural cada vez mais baleiro. O mecanismo para chegar até aquí foi aplicar a visom capitalista e mercantilista a algo tam básico como a comida, tratando-a como só mais umha mercadoria, sem considerar que comer de forma saudável e sustentável nom é um luxo, é um direito. Mas isso é obviado e passa-se aos modelos de produçom fordistas, de produtos comestíveis, intensificando as produçons, tanto agrícolas como gandeiras, obviando as necessidades da terra e dos animais e deixando ao Mercado com letras maiúsculas decidir os modelos de alimentos, co que isso significa para produtoras e consumidoras. Para as primeiras, trabalhar baixo a premissa de produzir e colocar produtos “competitivos” no mercado. Para iso, se cumprirem o modelo intensivo e de médio e grande porte, poderám recibir subsídios sem os cales nom poderám mais sobreviver, o que automaticamente as torna escravas. A escravitude aumenta coa escala e nas grandes empresas do agronegócio, longe do campesinho, os empresariado lucra-se som escravizando mam de obra local e migrante. Numha atividade como a agricultura, onde a incerteza começa co clima e termina no mercado, a certeza, aínda que precária, dos subsídios é a única salvaçom a que muitos produtores se apegam. Essa precariedade traduz-se em limitaçons para todas, mas principalmente para as mulheres, que além dessa situaçom som atravessadas pela desigualdade patriarcal, pela qual som reduzidas a mera “ajuda familiar” sem nengúm tipo de direito, sendo relegadas à parte invisível dum iceberg que as afunde aos poucos.

Para os consumidores, foi criado um modelo em que quantidade é confundida com diversidade, ingerir com nutrir-se; e ir a lugares onde se exibe a acumulaçom é confundido coa possibilidade de escolher. Nom existe mais diversidade alimentar numha gram área do que num mercado campesinho, mas a miragem do consumidor basea-se em crer que é assim. Devemos ao mercado globalizado que qualquer perspetiva de estaçom, variedade local ou o valor dumha cultura gastronómica fosse perdida, substituída hoje polo marketing global, coa sensaçom de ser “cidadás do mundo”, que é a sensaçom premiada. Assim, hoje num prato de comida, o valor dumha boa foto é mais importante que o valor nutricional e o achegamento das pessoas à comida passa pelas pantalhas em formatos de televisom ou redes sociais de consumo de massa.

Assim mesmo, os alimentos devem ser baratos para poder gastar noutros produtos de consumo, independentemente do custo que isso poda ter para quem os produz, nem mesmo que longe estejam de serem alimentos, muitos produtos nom vam além de meros produtos comestíveis. Eles enchem estômagos, mas nutrir, nutrem pouco. Isso é aínda mais agravado pela fast food de grandes cadeias ou alimentos ultra-processados, cheios de açucre e graxa saturada, mas com preços baixos e acessíveis fisicamente e monetariamente para pessoas de renda baixa. As marcas também funcionam como integradoras sociais, mestres a ingestom destes produtos deteriora a saúde de moitas pessoas diariamente, resultando em problemas de colesterol, diabetes e obesidade desde mui cedo. O que é “interessante” (e perverso) é que esse modelo é o que as políticas públicas apoiam, e o dinheiro público financiará longas cadeias que estám longe de serem sustentáveis, tanto para as pessoas como para o planeta. Estas apóiam só lucro, desigualdade e dependência. Um negocio redondo para poucos e um problema para a maioria, aínda que se oculte, como todas as desigualdades resultantes do #capitalismo, com umha capa de progresso e desenvolvimento.

Os últimos anos, a partir dos movimentos que trabalham pela agroecologia e soberania alimentar, outros modelos venhem sendo desenvolvidos, como a agricultura apoiada pela comunidade ou distintas fórmulas de associaçons e cooperativas agro-ecológicas que buscam romper com esse modelo, mas hoje, a pesar de seu desenvolvimento ser importante e fundamental para moitas empresas produtoras, elas som minoria e precisam sobreviver día a día no médio do stresse de ir contracorrente.

Mas nom nos perdamos porque o título deste texto incluía as RBI´s e a questom é, neste contexto, que pode supor a Renda Básica das Iguais? Como observamos anteriormente, a atividade agrícola e pecuária vive em constante incerteza. Quanto mais próximo o modelo de produçom é ao ecológico, à natureza, menos artificializado e mais depende da terra e do clima, respondendo aos cuidados que recebe. E quanto mais nos afastamos da Terra e intensificamos o modelo, mais dependemos de que o MERCADO “responda” aos produtos que enviamos. A terra sempre foi mais confiável do que o mercado, mas a falta de cuidado e maus tratos de um à outra cobra seu preço. Hoje, o caos climático nom é de balde e afeta especialmente a aquelas que cuidarom mais da terra, aínda que, ao mesmo tempo, demonstrem, día trás día, ser quem mais capacidade de resiliéncia tem.

Nesse contexto, que podería acontecer se umha RBIs individual, universal, suficiente e incondicional fosse aplicada? Muitas diríam que ficaríamos sem agricultoras e gandeiros. Provavelmente porque essa atividade sempre foi negligenciada e, em moitos casos, foi oferecida como castigo, mesmo dentro das famílias campesinhas. O “desenvolvimento” está noutro lugar e o “se nom estudas vas cuidar das cabras” ou “tocará-che colher o sacho”, foi repetido e ainda é repetido em moitas mesas nas áreas rurais, associando essas atividades à ignorância, quando o que suponhem, se som feitos desde um fazer campesinho, é umha sabedoria mui importante. De qualquer jeito, nom é o sonho de case ninguém que seus descendentes sejam campesinhos; é, de qualquer forma, a atividade da qual se deve fugir. Mas, a pesar de todo, felizmente, temos pessoas que decidírom se dedicar a isso e aqueles que as conhecem sabem que nom o fam descartando. Quem ouve umha persoa que está envolvida na agricultura ou gandaria falar sobre o seu trabalho imediatamente entende que nom fai isso só por salário ou dinheiro, nom descreve um emprego se nom um jeito de vida. Por tanto, a RB a única cousa que faria é que esse trabalho pudesse ser realizado coa segurança de atender às necessidades básicas que permitem viver e trabalhar de maneira digna.

Por outro lado, no modelo de produçom intensivo descrito, a dependência é fundamental para a que a escravitude persista. Os produtores, na maioria dos casos, especializam-se em poucos cultivos e em grandes quantidades para o mercado globalizado, dependendo absolutamente desse mercado e dos subsídios para sobreviver, alinhados com altas doses de competitividade. Se, em vez de subsídios condicionados a um modelo intensivo, que nom as sustenta nem a elas nem ao planeta, elas recebessem umha Renda Básica, a sua capacidade de toma de decisom e negociaçom seria mui distinta. Elas poderíam pressionar por preços decentes e decidir que cultivar e como, olhando à terra e nom ao mercado e sendo muito menos dependentes. Assim mesmo, ter renda suficiente permitiría às mulheres pagar à Segurança Social e dar um novo passo em direcçom à sua visibilidade e até à construçom de súa identidade como produtoras. A monetarizaçom nom é a soluçom, mas a ausencia de recursos propios tem sido umha arma histórica do patriarcado para a perpetuaçom da dependência das mulheres. Isso nom sería bom só para as campesinhas, sería bom para todas nós, porque poderíamos construír transiçons para um modelo de produçom muito máis ecológico, relocar a economía e gerar mundos mais justos. Contemos que todas as pessoas recebem as Rbis polo que, desde o lado do consumo, os alimentos poderiam ser accesíveis além do rápido e barato que nos deixa doentes. Asim mesmo, no momento em que também podemos escolher fora do ambiente rural sobre nossas vidas e nossos tempos, poderíamos parar para repensar a divisom sexual do trabalho e as desigualdades nas casas, redistribuir tarefas e até gastar tempo cozinhando. Tempo, aquele elemento básico para o cuidado que hoje se tornou um luxo e cuja auséncia o #capitalismo tira proveito (à vez que a causa) para nos levar cara às rápidas falsas soluçons.

O RB é a soluçom para todos os problemas? Nem muito menos, obviamente isso nom sería automático e há moita bagagem e imagens sociais para transformar. Nom podemos assumir que, aumentando a capacidade de escolha, todas as elecçons serám boas, sustentáveis e justas. Como dixemos no inicio, somos atravessadas por moitas desigualdades e um ADN capitalista que pode nos levar por muitos caminhos. Isso deve ser acompanhado doutras medidas, para começar, para tornar visíveis outros modelos que nom som só mais justos e possíveis, se nom que a médio prazo som desejáveis se entendermos o caos climático e as múltiplas intersecçons entre desigualdades (sexo, raça, classe social) que estamos vivendo. Ela deve ser acompanhada de muito trabalho tanto nos níveis social e político, como em desenvolvimentos público-comunitários que quebrem a dicotomia centro-periferia. Da mesma forma, algo essencial que vém defendendo distintas propostas sobre Renda Básica é que ela deve cumprir as premissas de ser Universal, individual, incondicional e suficiente. Premissas-chave, pois se nom for suficiente, será mais um subsidio que, em vez de liberar, funcionará só como um paliativo que nom resolve o problema, mas faz que nos se sintamos melhor; por tanto, pode ter como consecuencia nom curar, mas aliviar síntomas e co tempo desmobilizar. Mas, sem dúvida, a Renda Básica é um elemento a ser considerado como punto de partida e nom entendido como um objectivo em si, mas como umha ferramenta emancipatória e transformadora. No caso das RBis, nom estamos satisfeitas em olhar para o individuo e supom-se que, como seres interdependentes, a sustentabilidade nom seja possível sem a comunidade, por isto surge dumha construçom da comunidade. Este modelo, se tiver andaimes nalgum lugar, está nas aldeias. Hoje, ainda é realizado o manejo comunitário da terra, existem comunidades de água, nalguns territórios os Conselhos som mantidos e podemos dizer que em praticamente todo existe umha identidade comum. Isso nom deve ser confundido com que todas as pessoas que vivem nas aldeias vivem em paz e harmonia, mas sabem que o gerenciamento da comunidade e o seu mantimento depende de se entenderem. Elas som capazes de gerenciar o que é comum o dia-a-dia, mesmo que nom tenham o melhor dos relacionamentos, porque sua vida diária é baseada nele. Nelas, a gestom comunitária permanece para que nom comece de zero, como aconteceria em muitos territórios urbanos, onde a comunidade é um conceito quase perdido e que, mesmo esses tempos difíceis, é difícil recuperar.

Co que é declarado neste texto, nom se pretende dizer que a medida dumha Renda Básica das Iguais é a soluçom para todos os males, mas sim que é umha ferramenta importante a ser considerada e também que o discurso sobre ela (e sobre qualquer Renda Básica) deve ir além do asfalto. A luita por outros mundos possíveis envolve transformar o sistema em mundos mais justos, com base numha realidade capitalista que resulta, entre outras desigualdades, em classismo, patriarcado, racismo e urbanismo. É por isso polo que a construçom de alternativas nom pode se limitar a olhar para espaços pavimentados ou para fábricas e as formas de movimentos ou organizaçons tradicionais de trabalhadores como os únicos espaços de construçom. Mo médio do caos climático e pandêmico que estamos vivendo, as pontes entre o rural e o urbano nom som umha mera opçom, nem o feminismo ou o anti-racismo, se nom as etapas necessárias para a transformaçom. Umha transformaçom que passa por um repensar territorial e multiseitorial. Nesse sentido, excluir o rural é excluir aquelas que nos alimentam e as únicas que hoje mantenhem e cuidam conscientemente da terra, sabendo, melhor do que ninguém, que a sua própria supervivência depende disso. Por tanto, quando falamos doutros mundos possíveis, devemos ter muito cuidado em nos referir ao ambiente rural só como um ambiente baleiro ou baleirado. É um meio que nos sustenta e nos fornece oxigeno (literalmente) para todas, um meio para dignificar e valorizar.

Para outros mundos possíveis, um ambiente rural vivo é essencial e, para isso, um sistema alimentar justo e saudável, tanto para as pessoas canto para o planeta. Aquelas de nós que falam e defendem a soberania alimentar defendem o direito dos povos de decidir sobre os seus alimentos desde umha perspetiva de justiça e sustentabilidade social e ambiental. Esse é o nosso objetivo e, coa RBis, certamente estaríamos muito mais próximos.