Neste verao cumprem-se 120 anos do nascimento de Vítor Casas Rei. O trabalhador, dirigente político, organizador talentoso do Partido Galeguista e director d’A Nosa Terra. Como sempre acontece nos recordatórios, o espírito prático deve levar a perguntar-nos, além da pura homenagem, que podemos aprender dos nossos velhos referentes. Certamente, os seus tempos nom fôrom os nossos; das siglas e projectos polos que se bateu nom ficam nem os restos; e ainda que partilhamos o infortúnio de enfrentar idêntico inimigo, as formas do poder e os seus esbirros mudárom enormemente, pacificando-se, e reciclando-se em formas de assimilaçom democrática e técnicas de construçom de consenso. Porém, a sua naçom é a nossa; as carências de aquela Galiza seguem em boa parte presentes; e na sua lealdade, mui provavelmente, enfrentou-se a esperanças e desvelos que ainda nos som bem familiares.

Casas foi, por utilizarmos a linguagem popular dos seus correligionários, um ‘galeguista de primeira hora’. Chegou cedo ao movimento e, quando as circunstáncias de 1936 forçárom a muitos ao abandono, ele preferiu despedir-se com a defesa das mesmas ideias que deram rumo a toda a sua vida adulta. Assomara-se à causa justo no momento em que esta renascia com o nome de nacionalismo, nos anos do agrarismo, a rebeliom de Páscoa na Irlanda, a revoluçom soviética, e a expansom das reivindicaçons dos povos pola Europa. Foi um militante precoz, politizado em plena adolescência naquela Corunha tam condicionada polo republicanismo, o anarquismo e a afirmaçom nacional. Em 1935, lembra num artigo em Nós o seu primeiro contacto com a imprensa galeguista. Corria 1916, e um Casas que quase acaba de sair da infáncia conseguiu o primeiro número dA’ Nosa Terra numha livraria corunhesa. Nesse momento ficou comovido polas palavras do conhecido editorial ‘Bandeira ergueita’ ; o regionalismo era cousa do passado, e a simples vinculaçom emocional com a pátria, o enxalçamento de gastronomia e paisagens, era superado por umha proposta política, partidária e afincada intransigentemente na defesa do idioma.

Entusiasmo

Meses mais tarde, segundo a sua própria narraçom, filiava-se à Irmandade da Fala da cidade. Começaria assim umha trajectória de duas décadas de compromisso galego, cujo único e mínimo desvio foi a filiaçom à ORGA a inícios da República. A decepçom que lhe causa este partido polo seu espanholismo conduze-o ao Partido Galeguista. Como Bóveda e outros militantes com capacidades organizativas, assume a tarefa de converter ideias brilhantes, desenvolvidas em letra impressa durante sessenta longos anos, em feitos práticos com alcanço social e representaçom partidária. Fará-o aproveitando, entre outras dotes, a capacidade de trabalho que ganhara como comercial de Calzados Senra. Estava afeito a percorrer o país, a tratar com gente, inventariar material e fazer cadrar os números.

Mas volvamos à sua politizaçom de adolescência. O efeito causado no corunhês polo boletim galeguista lembra-nos que ainda está por fazer umha história do papel do jornalismo nacionalista na criaçom de opiniom e no envolvimento activo de parte da juventude no compromisso político. Quanto menos naquela esquecida Corunha, as palavras dos precursores chegárom a destino e incorporárom ao país umha nova geraçom. Boa parte dos textos da primeira A Nosa Terra, mesmo os nom assinados, devem-se à pluma de Antom Vilar Ponte. Por capacidade de trabalho e potência intelectual, o viveirense cria o grosso do discurso, e no Casas jovem, segundo ele mesmo conta, deixárom pegada estas palavras:

‘Este boletim é de todos os galegos. A sua dona é a Galiza inteira. Nom tem outra. Polo mesmo as suas folhas serám dignas de se coleccionar. Perpetuarám o pensamento dumha época.’

Vilar Ponte nom exagerava: mais dum século depois, seguimos a ler os velhos números daquele boletim, seguimos a citar as Irmandades, e fazemos um esforço importante por resgatar as figuras promotoras. Estas linhas som acertadas porque recolhem umha das motivaçons mais fortes e menos atendidas do melhor galeguismo desde as suas origens: a fe. Esperança e vocaçom missioneira, certeza dos protagonistas de se estarem dedicando a umha tarefa de dimensom transcendental.

No país dos pessimistas, na cultura do laio permanente e da auto-exculpaçom das próprias irresponsabilidades, salientárom por contraste núcleos dotados dumha rara confiança no futuro. A causa galega apoia-se em razons evidentes, incontestáveis, de orde moral e pragmática, venhem a dizer-nos; e a inteireza dos seus representantes afiançará, tarde ou cedo, a nossa vitória. Esta moral de combate singular merece ser estudada; nom é exactamente a dos comunistas, que apoiam a sua entrega na conviçom científica de navegarem com o vento da história; tampouco a dos libertários, que na altura, segundo nos demonstra a investigaçom, formam todo um movimento de massas com umha sólida rede de contra-valores e práticas de ajuda mútua; alimenta um grupo mui pequeno, maiormente nascido entre a classe média e assalariados de serviços, que sem embargo protagoniza com êxito um esforço organizativo colossal; quando os seus representantes mais egrégios tenhem que enfrentar a morte ou o exílio, provam com os factos a veracidade de todas as suas declaraçons. Quem se achegue aos textos do próprio Vítor Casas, de Alexandre Bóveda, de Castelao ou José Velo, perceberá mui claramente o tom entusiasta e a limpeza de intençons.

Palavra e acçom

A palavra nom é inócua é o fascismo temia-a; prova disso e que, junto com militantes relacionados com a letra impressa como Vítor Casas ou o editor Ánxel Casal, caem também assassinados três grandes do jornalismo galego: Lustres Rivas, Blanco Torres e Johán Carballeira. Claro que os melhores do galeguismo sabiam que para que a palavra ganhasse eco nom abonda a inspiraçom nem a expressom bonita: cumpre trabalho, trabalho e mais trabalho. Casas recorda que, nomeadamente a partir da ditadura de Primo, obrigou-se à escrita sistemática para fazer possível um boletim nacionalista: ‘muitos números escrevim-nos quase por inteiro’, confessou anos depois; o esforço por vezes resultava frustrante, quando parte dos textos nom podiam publicar-se por causa da censura.

E como a acçom mais transcendente nom é individual, por trás desta difusom da palavra topava-se a organizaçom: dirigentes como Casas, se fórom bons divulgadores, fórom melhores organizadores. Conseguírom dinheiro, recursos materiais, distribuidores, rede de colaboraçons e grupos políticos de base para fazer realidade o sonho da imprensa e do livro galego. Num país no que, ainda hoje, o superávit de poetas e opinadores contrasta vergonzosamente com o défice de militantes e organizadores, cumpre gravar a lume a necessidade do sentido prático, até mesmo para que o idealismo mais puro ganhe o seu espaço no coraçom da gente. Quando Castelao afirmou que o editor Ánxel Casal ‘fixo mais pola Galiza que todos nós’ referia-se precisamente aos anos e anos de labor de pessoas que sostinham, num esforço silencioso, a possibilidade de outros difundirem propostas, programas e motivos.

Verdades amargas

Na sua mediana idade, Vítor Casas descobre umha verdade amarga, segundo narra no seu artigo de 1935: boa parte dos colaboradores do boletim galeguista por volta de 1916 engrossam as fileiras espanholas, e mantenhem umha distáncia calculada com A Nosa Terra. Para muitas pessoas, numha capa bem mais profunda que as ideias, regem as lógicas da notoriedade pessoal e o ventagismo. Os carreiristas, que nom som património de nenhuma ideologia política, e mais bem as parasitam todas, liscárom do galeguismo quando comprovaram que nom satisfazia a sua arela de promoçom.

Cintia Rey, mae de Víctor Casas, no pinheiro onde o fusilárom

Mais insoportável, a bem seguro, ia ser a descoberta do ano seguinte. É o conhecimento do fascismo, e toda a enxurrada de miséria moral e cumplicidades que irrompe quando se impom um regime de medo. Republicanos sinceros como Bóveda ou Casas assistem arrepiados ao espectáculo da barbárie: alegados servidores daquele estado aderem ao golpismo e argalham legalmente um plano genocida. No culmem do horror, vários ex-companheiros de viagem, caso de Filgueira, Cunqueiro ou Torrente Ballester, aderem à cruzada e assistem passivamente aos fusilamentos, passeios ou exílio dos seus antigos companheiros e amigos.

Custa imaginar como umha pessoa pode digerir, em apenas poucos meses, tal infortúnio. Seja como for, e apesar da desolaçom, Casas deixa para os seus irmaos, e para todos nós, um testamento inequívoco. Na sua carta a Gómez Román prévia à execuçom, em 2 de novembro de 1936, sintetiza a linha estratégica que o guiou em duas décadas consecutivas de serviço ao país: nacionalismo político, organizado e dirigido: ‘reorganizem o partido, o nosso glorioso partido’; decantaçom ideológica e fim das ambiguidades de classe: ‘com um matiz netamente esquerdista dentro das essências vivas da personalidade da Galiza.’ E alerta contra a tentaçom do esquecimento, vindicaçom de justiça: ‘no intre de triunfo e liquidaçom do sucedido nom esqueçam os culpáveis.’

Anos antes, em polémica jornalística, Casas enfrentara-se duramente aos independentistas por considerar os seus planos precipitados e pouco sensatos; mas apesar de diferenças tácticas e estratégicas evidentes, na sua vida e ante a sua morte, demonstrou nom estar tam longe da inspiraçom arredista. Nunca deixou de levar à prática o princípio basilar que formulara num dos seus artigos, ‘procura da independência política e da independência espiritual’. Firmeza no programa e firmeza na conduta para seguir, implicitamente, aquele asserto escrito polos membros da Pondal em 1934:

‘mais que cem discursos, ao povo convence-o umha atitude clara, firme, e decididamente rectilínea.’