Lembro como se fosse hoje a primeira vez que assistimos às manifestaçons do Dia da Pátria Galega. Foi em 1993, ano santo compostelano, e tocara visita do rei espanhol. Nom era um ano santo qualquer do ciclo jacobeu; aquele foi o primeiro concebido e desenhado tal como o vemos hoje: umha macrofeira pensada para atrazer milhares de pelegrins e turistas por volta do sepulcro do apóstolo. De feito, foi naquela altura quando entrou na cena aquela irrepetível mascota, o Pelegrim.
Acodimos um grupo de rapazes, todos residentes do popular bairro viguês de Coia, e o nosso cicerone foi nem mais nem menos que o doutor Ramom Muntxaraz, um dos rostos visíveis da das vozes mais respeitadas do independentismo ligado à Assembleia do Povo Unido e às Juntas Galegas pola Amnistia. Figéramos umha primeira tentativa de nos achegarmos a Compostela no ano anterior, mas nom calhara. Tínhamos 14 anos, e apesar da insistência do Muntxa a dialogar com os nossos pais e maes, nom obtivemos permissom paterna. As cousas tinham que mudar para o ano seguinte. Como sabíamos que tampouco havíamos contar com a aprovaçom familiar, acordamos ir para a frente e irmos a Compostela, polo si ou polo nom. Com 15 anos aquela foi a primeira decisom unilateral de calado da nossa adolescência. O nosso primeiro dia da pátria nascia como um pequeno acto simbólico de afirmaçom juvenil.
Tenho gravada também na memória a primeira impressom ao chegar à emblemática Alameda de Santiago. Com a emoçom de adolescentes olhávamos fascinados aquele mosaico ruidoso e colorista de bandeiras e faixas, tratando de deglutir e assimilar a velocidade de vertigem toda aquela enxurrada de siglas, consignas e reivindicaçons. Podemos imaginar a excitaçom que suscitava em nós a estética das camisolas, colantes, livros e revistas. Quando a manifestaçom do nacionalismo maioritário emprendia a marcha cara a praça da Galiza, mirando para aquele mar de estreleiras, um de nós exclamou abraiado: “a naçom galega!”. Três singelas palavras pronunciadas de forma espontánea por uns adolescentes que expressavam fielmente o que sentíamos naquele preciso instante. A ideia difusa e esvaída dumha naçom galega que virava materialmente visível aos nossos olhos. Os independentistas veteranos que nos ganharam para a causa nacionalista explicárom-nos o velho axioma do nosso movimento: Galiza era umha naçom negada por Espanha e o dever de todo nacionalista era comprometer-se para rachar este vínculo de opressom e dependência e conquistar a nossa liberdade. Mas agora, ao olharmos aquela Alameda ateigada de nacionalistas chegados de cada recanto da nossa terra, podíamos definir-nos e sentir-nos como galegos e galegas de naçom, é dizer, pertencentes a umha realidade material e objectiva, o povo galego. Muitos companheiros e companheiras independentistas contam ter experimentado este mesmo sentimento a primeira vez que assistiram ao 25 de Julho.
Nos últimos tempos houvo algumha tímida tentativa de analisar as biografias de nacionalistas (nomeadamente senlheiros ou veteranos) na procura de respostas às perguntas de por que, como e quando umha galega ou um galego decide abraçar a causa nacional. Porém, faltam ainda investigaçons mais sólidas e consistentes que indaguem nas motivaçons pessoais e nos factores sócio-biográficos que alentam o compromisso nacionalista. Para alguns independentistas a vinculaçom vem da tradiçom familiar; nom som muitos, e essa tradiçom nom ha ser muito longa. Abondam mais as pessoas vencelhadas ao nacionalismo galego polas suas relaçons com umha contorna cultural, académica ou profissional mais predisposta para captar e fidelizar o compromisso. Nom era o nosso caso.
É frequente escuitarmos a expressom “Galiza profunda” como sinónimo da Galiza rural e tradicional que melhor conservou o idioma, a cultura, a paisagem e a idiossincrassia que nos singularizam como povo. Mas se por profundo entendemos aquilo que mantém a essência e a pureza dumha colectividade humana num momento histórico concreto, entom há muitas outras Galizas profundas, entre elas a “Galiza urbana profunda”. Falamos da Galiza das grandes cidades, Vigo e Corunha e, em menor medida, Ferrol. Essa Galiza urbana profunda com os seus bairros e polígonos de vivendas construídos espasmódica e caoticamente ao abeiro do desarrollismo dos sessenta e setenta com todas as suas sequelas de desarraigo, massificaçom e dificuldades de adaptaçom social dos recém chegados. Coia, Teis, A Sagrada Família, Agra do Orçám, Elvinha, Carança…evocam umha jeira chave da nossa história urbana marcada pola falta de espaços públicos, equipamentos sociais e serviços de todo tipo. É a Galiza do amoreamento das famílias nos andares e dos moços e adolescentes que abandonam antes de tempo a escola para vagarem polas ruas do bairro sem opçons de lazer, sem perspectivas laborais e guindados ao abismo da droga. O seu delito: terem nascido e crescido num momento e lugar determinados. Aliás, aquelas geraçons, filhos e filhas das galegas que abandonárom as aldeias recrutados para as cadeias das fábricas, constituem o grosso do contingente humano que protagonizou a grande quebra, radical e massiva, da transmisom lingüística intergeracional do galego.
Nesse contexto descrito, poucos elementos da nossa contorna familiar, académica, social ou do nosso círculo de amizades turravam para acordar em nós umha consciência política básica, e ainda menos umha consciência política nacionalista. Algumha referência ao Sempre en Galiza dum professor de galego, as lembranças ainda nom activadas do tempo vivido nas aldeias das nossas famílias, as novas na mídia das bombas do Exército Guerrilheiro, e pouco mais. Nom suprende entom que para umha geraçom de independentistas de extracçom humilde e urbana, com cultura de rua e bairro desarrollista, a faísca desencadeante dumha primigénia pseudopolitizaçom fora o contacto com elementos de subculturas urbanas como a música alternativa, os graffitis, as primeiras casas okupas ou grupos juvenis de seareiros do Celta ou Deportivo. Muitos de nós vimos pola primeira vez umha estreleira nas bancadas de Riazor ou Balaídos, quando nom existiam organizaçons da mocidade independentista, centros sociais ou tradiçons familiares nacionalistas. Por isso, para nós, o dia da pátria foi umha sorte de acto cerimonioso de entrada num mundo completamente desconhecido. Mais culto e intelectualizado, mais civilizado e integrado, mais colectivo, e que ademais oferecia valores, princípios, referentes e exemplos úteis para construir um guieiro vital que permitisse chimpar por cima do embrutecimento, o individualismo e a guerra civil molecular, é dizer, espezinhar-se os uns aos outros para ir safando no dia da dia costento dumha mocidade prolongada no gume da faca.
O contacto com o independentismo colocou um repto ainda mais exigente que a própria militáncia e activismo, o de rachar com o abafante monolinguismo espanhol e transitar trabalhosamente para o monolinguismo em galego. O nosso tempo e o nosso trabalho levou. Alguém afirmou que militar nas cidades era mais doado, pois a pessoa nom sente tanto a pressom negativa da família e da sua contorna social nem as chamadas a casa dos picoletos autóctones, que primeiro aconselham com paternalismo para logo passarem à ameaça explícita. Nom lhes falta razom, mas nunca se valora abondo o mérito dos urbanitas que fam o caminho do castelhano para o galego com todo na sua contra.
Participar no Dia da Pátria Galega facilitou-nos o contacto com outros militantes e com outros lugares da Galiza. Para além disso supujo um conhecimento acelerado da até entom desconhecida geografia mais básica do nosso país. O conhecimento da geografia e da cartografia que a acompanha, gera consciência geográfica e isso permite visualizar e sentir-se parte dumha comunidade imaginada, a naçom galega, nos termos utilizados por Benedict Anderson em Imagined communities, o seu brilhante estudo sobre a origem e difusom do nacionalismo. Numha entrevista recentemente publicada em Nós Diario, Antom Valeiras, umha das pessoas promotoras da Agrupaçom de Montanha Augas Limpas (AMAL), afirmava que era impossível amara a terra em que moramos sem antes conhecê-la e caminhá-la- Se houver uns estudos regrados de “independentismo”, antes dos livros ou da propaganda do movimento, a primeira e mais importante disciplina seria comprar um atlas da Galiza e botar-se a caminhar polo país adiante. Por outra parte, a vorágine da vida militante e da mecánica orgánica, a dinámica contínua das mobilizaçons, impedem decatarmo-nos que no mesmo momento em que sentamos numha juntança de trabalho ou numha assembleia a um rapaz de Vigo e a umha moça da Marinha, estamos a trabalhar para a descoberta da terra, a densificaçom das relaçons e a compactaçom de grupo e, em definitiva, para a vertebraçom dum país e dum movimento fraco, disperso e pouco coeso. Um militante independentista de Verim contava-nos que no dia da Pátria sentava na mesma mesa com nacionalistas de Corme e Pontecesso, lugares tam diferentes e afastados do seu fogar e aos que provavelmente nom viajaria nunca. Aquela experiência confortava-o e dava-lhe aços para renovar o compromisso, pois sentia materializada a existência e integridade dum país fragmentado e desconhecido. Da Costa da Morte a Monte Rei, de Vigo a Marinha, da Ferrol a Baixa Límia, de Carinho a Bezerreá, do Courel a Compostela, diferentes em tantas cousas, e, porém, umha mesma língua, umha naçom e um sonho partilhado. Nada disto teria sido possível sem o 25 de julho. Na cartografia política e simbólica do independentismo galego, o dia da Pátria em Compostela, nomeadamente na Alameda e a cidade velha, contém o ponto zero da história e presente da reivindicaçom nacional galega. O mesmo ponto que Domingo Fontám tomou como referência para tracejar a grande obra da sua vida: o primeiro mapa topográfico e trigonométrico moderno da Galiza. Lá, nas ruas de Compostela, cristaliza por umhas horas a comunidade imaginada dos galegos e galegas numha colectividade humana a desfilar polas ruas da nossa capital. Para os novos, as primeiras participaçons no dia da Pátria Galega som um rito de iniciaçom num processo que leva à progressiva tomada de consciência e, em muitas ocasions, à incorporaçom à militáncia política. Nas primeiras convocatórias a mística do dia nacional palpa-se no ambiente já na véspera. A emoçom que se sente confirma que é um dia que o merece todo. Para os que ultrapassam os anos moços, a fascinaçom vai declinando ano após ano, mas muitos ainda se comovem com o tanger das badaladas de Compostela que, ainda que chamem e convoquem a outros cultos e devoçons, evocam a Alva de Glória que sonhou Castelao.
Todos os ciclos de luita experimentam os seus momentos de expansom e refluxo, e na maioria dos casos todas as trajectórias vitais de compromisso com a causa nacional tenhem os seus altos e baixos. Os anos passam para os militantes e chegam as obrigas da vida adulta, agudizadas nas condiçons da sociedade precarizada e da exploraçom. O mesmo decorrer da vida vai-nos advertindo da evidência dos nossos limites físicos e mentais. Por vezes, mesmo sem avisar, entra na cena a doença, provisória, crónica ou definitiva. Companheiros e companheiras queridas e respeitadas por todos, que fam parte da paisagem agradável, generosa e digna do movimento, deixam-nos de súpeto. E entom reparamos em que o que caracterizava pessoas como Martinho, Muntxaraz, Polito ou Manolo Soto (desculpade se nos deixamos alguém), o que os fazia especiais, é que sempre estivérom aí, que o seu compromisso foi insurbornável e constante até o final das suas vidas. As perspectivas de fracasso nunca fórom para eles um impedimento ou umha excusa. Conceber o compromisso com a causa da liberdade da Galiza como umha lealdade que dura toda a vida implica que a nossa atitude vai para além do optimismo e do pessimismo. Eis o maior antídoto contra a decepçom, as pressas e a desesperaçom.
Para irmos finalizando esta consideraçom sobre a importáncia de nom atraiçoar o nosso legado nem os nossos símbolos, recolhemos umha cita extrazida do derradeiro capítulo do livro IRA. O exército secreto, do autor estadounidense J. Bowyer Bell. O mais pertinente seria fechar esta reflexom botando mao dum autor ou dumha autora galega. Provavelmente abondem as citas pertinentes, mas permita-se-nos utilizar esta, pois é difícil dar com umha mais acaída, salvando todas as distáncias de tempo e lugar. Desculpai também o feito de escolher umha cita que apaga da história o papel das mulheres irlandesas. Transcrevemo-la tal como foi escrita para sermos fieis à literalidade da cita. Redigida em 1970 e debruçando na análise das perspectivas de vitória ou fracasso da luita republicana Bowyer Bell conclui:
“(…) Enquanto umha frontera britânica cortar de lado a lado a República de 1916, enquanto a Irlanda e o seu povo nom se libertarem da exploraçom a nom forem gaélicas de lingua e coraçom, os homes voltaram á tarefa, tal Teobald Wolf Tone a definiu, por mais improváveis que pareçam as perspectivas de sucesso: fazer menos que isso seria trair o pasado e negar o futuro.
Todos os anos, en Junho, se torna manifesta a responsabilidade perante esse legado. No cemitério de Bodenstown, frente a sepultura de Wolf Tone, na sombra da igrejinha arruinada, coberta de hera, voltam a dedicar-se, ano após ano. De manhá, mais cedo, os Mercedes ministeriais e os coronéis em farda de gala aparecem numha presa cerimoniosa para deixar umha ou duas coroas oficiais. Horas mais tarde aparece outro exército que, a través dos campos poeirentos, junto a aldeia de Sallins e, atrás da tricolor, ao som chorado das gaitas, marcha sobre Bodenstown. Alí, por breves momentos, ao longo daquela estrada rural, materializa-se o exército republicano, ilegal, encoberto, un exército sem bandeiras nem vitórias, sem uniformes e, as mais das veces sem perspectivas. Sob as árvores, por entre as pedras tumulares, homezinhos velhos das montanhas,(…) rapazes duros da Falls Road de Belfast, encarcerados de anos anteriores, escuitam mais umha vez as palavras mágicas da fé e ouvem mais umha vez vagos murmurios de esperança. Para algúns – os cansados, os cínicos – o ritual é estéril mais inviolável. Para outros é apenas a reuniom anual da sua frustrada geraçom. Para uns tantos é o momento mais brilhante dum ano marcado por cansanço e futilidade. Nos anos estéreis, as fileiras eram mais pequenas, menor o número de jovens, a esperança de vitória mais distant.; mas mesmo assim havia e há homens prontos a marchar por aquela estrada como tinham feito desde há geraçons, marchando ao som da música do passado em direçom a um chamamento de futuro. Durante umha breve hora ali ficam, de pescoços vermelhos de suor, amarrotados, homens sem propriedade, sob o vento distante da história, escuitando a velha ladainha. E crêem, como os seus pais figeram e como os seus filhos faram, que umha Irlanda dividida nunca conhecerá a paz. Depois regresam a casa, em Dublin e Tyrone, em Liverpool e Limerick, (…) e a erva cresce sobre as campas durante mais um ano e, algures longe das vistas, o exército invisíbel da República marcha e torna a marchar ao som de toques marcíais só audíveis polos fieis.”
Num país como o nosso, de feble consciência nacional, é umha irresponsabilidade nom optimizar o capital político e simbólico acumulado durante quase duzentos anos de luita. Entenda-se o símil, mas seria como se os católicos, depois de dous mil anos de litúrgia, deixassem de celebrar missa aos domingos, ou como se o Real Madrid decidisse fundir as suas treze copas da Europa para reciclá-las, no canto de lozi-las nas suas prateleiras. Ninguém o entenderia. Por isso, fai-se preciso contra-restar todas essas tendências a ritualizar e desnaturalizar o nosso dia nacional. Sobretodo é necessário chamar a atençom sobre a deserçom e abandono de quem, definindo-se como nacionalista, já nom se digna nem a contribuir com a sua presença nas ruas de Compostela. As pessoas que gostamos dalgum desporto e seguimos umha competiçom desportiva, nom reprovamos aos nossos clubes que perdam ou empatem, mas si que nom compareçam. Porque nom se pode nom comparecer, nom se pode desaparecer do cenário como se esta história nunca tivesse acontecido ou nunca fora com nós. Do mesmo jeito que os católicos que nom vam a missa se autodefinem como católicos nom praticantes, fica claro que os nacionalistas que nom comparecem em Compostela no dia da Pátria som nacionalistas nom praticantes. No entanto, as notas do hino espanhol a ecoarem no Obradoiro, acompanhadas da borralha clerical-militar e dos políticos do regime, lembram-nos a todos os galegos e galegas o futuro humilhante que nos aguarda se deixamos todo o campo aberto aos que tenhem como objectivo enviar o nosso povo à lixeira da história.