Diziamos que o 11-S supujo um punto de inflexom estratégico que convulsionou o mundo; agora assistimos a outros acontecimentos históricos que superam em magnitude ao próprio 11-S. Se aqueles impactantes ataques deixárom umha pegada imborrável no imaginário colectivo, a actual crise sanitária deixa umha pegada real nas vidas do conjunto da humanidade ou quando menos da civilizaçom occidental. Podemos albiscar a dimensom das consequências deste “trauma colectivo” experimentado polas nossas sociedades.
A envergadura da crise fica patente quando o capitalismo reprega o dogma neo-liberal e os actuáis governos enfraquecidos pola recta sumissom aos principios do livre mercado se vem obrigados a adoptar medidas de intervençom política na economía impensáveis há dous meses.
A lógica sistémica di-nos que a contra-ofensiva neo-liberal será brutal por duas poderossas razons. Primeira, porque a elite económica transnacional nom pode subsistir noutro ecosistema financiero e o seu negócio espectulativo require do “casino global” desregulado em que convertérom a economía mundial e segunda e nom menos importante porque detenta o poder real diante duns Estados carentes de ferramentas político-económicas capazes de conter o seu projecto oligopólico.
Como aconteceu na crise de 2008, o resgate público acude a salvar a orde económica mas agora mantendo a frote a ingente massa de mao de obra que ainda nom pode ser objeto de maior exploraçom económica pola situaçom sanitária. Será-o depois para favorecer a acumulaçom de riqueça e concentraçom de capital inherente a todas as crises capitalistas.
O caos aventurado naqueles debates de adolescencia e vigorossa militancia juvenil, temo-lo aqui. Certamente, a globalizaçom inmersa em umhas contradiçons sociais e ambientais colosais pode sair e possivelmente sairá desta crise sem precedentes, principalmente porque a revoluçom nom as fai virus nengum mas coido que já só pode aspirar a um “caos controlado” que imos vislumbrando.
E sairá precissamente da mao dessa vastíssima rede disciplinária que afunde as suas raízes nos albores do póprio capitalismo como modo de producçom e organizaçom social, como explica brilhantemente Foucault (2), e que hoje invade todos os ámbitos da vida.
Actualmente assistimos ao maior experimento de disciplinaçom social feito nunca. À margen da sua pertinência sanitária; o estado de alerta amossa o vaporosso contido dos direitos civís, confina, permite saídas vigiladas, admiteuns factos, modula outros e proscribe outros, sometendo-os todos à coerçom governativa; aliena entre discursos sensacionalistas e impom a obediencia entre o medo ao desconhecido e às sançons. Ensaia o futuro inmediato.
Nessa “nueva normalidad porque nada volverá ser igual” que anunciou o Presidente Sánchez o 15/4/2020 ou o que é o mesmo, nessa excepcionalidade normalizada já intuimos o que nos aguarda. Caos para a maioria social; mais flexibilizaçom nas relaçons laboráis; tele-trabalho diluíndo a saudável separaçom entre tempo-espaço de trabalho e de vida particular ou doméstica; desemprego e subsistencia precária, individualizaçom da massa assalariada, depredaçom entre pobres polas migalhas do mercado. A “uberizaçom como paradigma deste capitalismo de excepçom.
Control total ao serviço dessa elite neo-liberal. Drons de vigilancia, monitorizaçom exhaustiva de cada pessoa. Dispositivos de video-vigiláncia ou localizaçom geográfica, sensores invadindo-o todo com a tecnología 5G. Registro das comunicaçons públicas e privadas, rastrejo de transacçons comerciais e da navegaçom pola rede. O reconhecimento antropométrico e o processamento vertiginoso dos dados obtidos possibilita ao imperio da vigilancia traspassar o último confim a privacidade alcançando o pensamento íntimo até o ponto de poder predecir necessidades, apetencias, interesses ou inquedanças.
Por se isto nom fosse suficientemente alarmante, assistimos ao fortalecimento de um vínculo emocional com os corpos repressivos que aspira a perdurar, nessa tarefa empregam-se diariamente os adoutrinadores de pluma e plató. A delaçom policial alertando de vizinhas supostamente indisciplinadas, protagonizada por reclusos doméstios estarrece.
O discurso unívoco morbosso, superficial e alienante que pretende gerir o trauma psico-social entre alegatos à sumissom social e aplausos diários como terapia colectiva, acompanha-se da censura de qualquer voz que ouse questionar a orde imposta. Até as redes supostamente sociais (elas melhor que ninguém representam as contradiçons desta sociedade) vetam opinions discrepantes sem o menor dissimulo do seu papel vertebrador do projecto de dominaçom.
O capitalismo ciber-totalitário, gestor do caos controlado está aquí. Entre nós, arredor de nós, no peto de cada quem. Resulta sumamente inquietante imaginar o transcurso de outras duas décadas. Que cidadá existirá entom? Que comportamento, pensamento, capacidades podemos aguardar das geraçons mais novas instruidas na obediencia acrítica, na tutela permanente e no contol absoluto? Que adultas serán as nenas hoje recluidas nas suas casas, saindo à rua conforme a uns patrons estabelecidos, submetidas a um bombardeio mediático de vulnerabilidade, desconfiança, medo e orde social estricta?
Podemos afirmar rotundamente que a luita contra semelhante monstro ciber-totalitário exige um compromisso emancipatório superior a todo o que temos visto até agora. Esta dictadura de control social e confinamento mental demanda o exercício consciente da insumissom frente à sua engranagem disciplinária.
Que o ía dizer? Agora reclusas todas. Esta sociedade panóptica e o seu poder omnisciente, seguindo novamente a Foucault (3), encarcera-nos a todas. Escrevo desde umha celda de umha cadeia para um povo preso nas suas próprias casas. Nunca a metáfora que identifica a sociedade capitalista com umha grande cadeia foi tam literal.
Recentemente em algumhas conversas telefónicas comentava-lhe a algumhas amigas: “estamos achegando-nos a umha vida que nom merece a pena ser vivida” mas bem pensado, a própria natureça reformula inapelavelmente a figura empregada: estamos achegando-nos a umha vida que nom pode ser vivida.
Permito-me concluir com um conselho de reclusso veterano; aproveitar a privaçom de liberdade deambulatória para reflexionar sobre o verdadeiro valor da liberdade e o nosso caminho vital; situar-nos no contexto actual como agente sem deixarmo-nos levar pola apatía ou a resignaçom por mui adversas que sejam as condiçons que nos rodeam.
A vida, a nossa conciência é algo demassiado marabilhoso como para sucumbir mansamente aos ditados do caos controlado. A liberdade insumissa sempre é capaz de abrir fendas até na cadeia mais poderossa e infranqueável. Esta mensagem é umha pequena prova.
Cadeia de A Lama, Abril de 2020
1.- George Orwell na sua célebre novela “1984”, descreve umha sociedade distópica sob o liderado absoluto do “Gran Hermano” figura na cúspide o controlo social e do dominio mental massivo.
2.- Michael Foucault. Vigilar y castigar (1975)
3.- Michael Foucault. Op cit.