Há por volta de dúas décadas, o activismo independentista compostelano empenhava-se em denunciar politicamente a implementaçom de três polémicas normativas municipais limitativas de direitos e liberdades no espaço público. A instalaçom do sistema de video-vigiláncia na Zona Velha da nossa capital e a restritiva regulaçom do aparcamento nas ruas com a imposiçom do pago de umha taxa municipal espetárom umha considerável polémica social e a crítica do movimento popular.

Pouco depois, umha outra Ordenança Municipal formalmente dirigida a garantir a limpeza urbana em umha cidade já imersa de cheio no processo de turistificaçom ao calor do Jacobeu, restringia a livre difusom de propaganda política ou qualquer outro tipo de comunicaçom social com importantes sançons administrativas para quem transgredir as estreitas canles habilitadas para o exercício da liberdade de expresom no dominio público.

Esta normativa municipal, hoje consolidada definitivamente em todas as cidades e vilas, comparte a sua natureza ideológica e inscreve-se em um processo que vinha de mui atrás, acelerado exponencialmente nestas duas décadas; falamos da disciplinizaçom integral da sociedade, do encarreiramento social na orde pública neo-liberal.

Em paralelo, esse activismo abrumadoramente juvenil, formava-se com leituras e seminários que incidiam na ideia-força da deriva autoritária de um modelo de produçom que se analisava insostível, fazendo fincapé na dramática conjunçom de globalizaçom económica, crise climática e intensificaçom das contradiçons sociais até extremos inauditos. Um difuso conceito do “caos” identificava o estadio subseguinte da post-modernidade neo-liberal.

Cozinhavam-se a lume lento os ingredientes da nova orde mundial que espoletou espectacularmente o 11-S. Aquelas Ordenanças Municipais que hoje semelham umha anedota, acompanhavam movimentos teóricos de fundo que removiam o subsolo do modelo económico-social.

O 11-S com toda a sua cárrega simbólica assinala o começo de umha nova fase histórica do império neo-liberal, marca cronologicamente o fito inaugural de umha re-ordenaçom geo-estratégica que se vinha gestando mais de umha década atrás com a implosom do bloque socialista ao cair a barreira impeditiva da globalizaçom capitalista e intensifica-se posteriormente. Essa nova orde global erguida por volta da “revoluçom tecnológica”, precisava de um renovado pensamento legitimador do tipo de sociedade que se instituia. Precisamente, a massiva difusom das denominadas “tecnologias da informaçom e da comunicaçom” foram os instrumentos mais efetivos para socializar vertiginosamente umha ideologia submetida aos criterios do individualismo consumista e a desafecçom à critica social. Sejam exemplo no ámbito audio-visual as novidosas séries televisivas apólogas das forças policiais ou os “reality show” que inundárom os ecráns com o “Gran Hermano” (nome suficientemente eloqüente do modelo de sociedade que inspirava aos productores) (1) como máximo exponente; extendendo aos poucos, umha imagen edulcorada e atractiva dos corpos repressivos ou a ideia positiva da renúncia à intimidade pessoal re-convertida em activo intangível do tráfico económico nesta sociedade do espectáculo permanente.

Estes anos trougérom-nos mudanças sociais de grande calado, agudiçados no contexto da crise económica da década pasada, até o punto de resultar dificilmente reconhecível em muitos aspectos aquela sociedade que atravesava a fronteira do século. Os novos formatos comunicativos virtuais sacrificárom qualquer fenda de privacidade. As liberdades públicas fôrom laminadas com demoledoras leis securitárias como as contínuas reformas do Código Penal, junto à Lei Mordaça ou a anterior Lei de Partidos, sem esquecer as Leis do Desporto que convertérom os eventos desportivos e as siareiras de carácter popular e anti-fascista em objeto de ensaio repressivo, agora generalizado. No terreio sócio-laboral, agressivas reformas legislativas precarizárom e empobrecérom à classe trabalhadora e os ataques gubernativos ao sistema de protecçom social desmantelárom recursos sanitários ou enfraquecérom as pensons públicas.

Nom podemos obviar o sucesso obtido no desenho deste modelo de sociedade. O neo-liberalismo servindo-se dessa densa retícula jurídico-instrumental foi imponhendo umha concepçom da vida fundada em um individualismo exacerbado orientado à acaparaçom material e o consumo de experiências de esparcimento superficial e desenfreado junto com um repregamento na esfera particular. Lamentavelmente, nem os espaços habitados por umha militância auto-reclamada anti-capitalista puidérom sustraer-se a semelhante ofensiva disgregadora do corpo social, instalando-se umha laxitude que combina paradoxalmente umha retórica inflamada sem a mínima combustom política. O activismo transformado em “ansiolítico político” perante o drama social: algo semelhante a um novo nicho de mercado para conciências intranquilas.

E chegamos ao momento actual, em que a crise propagada polo COVID-19 fai abalar os próprios cimentos do capitalismo global. À margen da dinámica socio-sanitária e da hecatombe económica derivada, profusamente analisada por multitude de científicas sociais e expertas sanitárias, sabemos que a causa estrutural do incremento deste tipo de surtos reside no próprio modelo de producçom industrial agro-gadeiro que favorece a difusom planetária de enfermidades zoonóticas, gestadas em prácticas intensivas de superlotaçom, medicaçom e maltrato animal.

Como era de aguardar nom fôrom grandes mobilizaçons operárias nem greves revolucionárias, foi um micro-organismo de origem ainda desconhecida, o que colocou em jaque ao império dos mercaderes de todo o imaginável. A natureza confirma-nos que o imperialismo segue sendo um tigre de papel, parafraseando precisamente o líder comunista chinês do século passado.