Há já bastantes anos, algum compatriota com engenho inventou a palavra ‘fodechinchos’ para denominar os espanhóis desrespeitosos que nos visitavam e, possivelmente por sintetizar com humor um malestar larvado, a expressom tivo sucesso popular. Na verdade, o termo substitui um outro bem mais arreigado: ‘castelhanos’. Como lembra o antropólogo Lisón Tolosana, denominava-se assim os espanhóis -forem ou nom de Castela- que acodiam à nossa terra em atitude despótica, e com manifesta incompreensom pola nossa forma de ser e de expressar-nos.

Hoje, a crise sanitária patenteou de novo essa velha atitude foránea cara nós: entre paternalista e despectiva, umha mestura de atençom comiserativa e autoritarismo, mui semelhante à que os homens mantemos historicamente com as mulheres. E enquanto a palavra fodechinchos alcança extensom nunca vista, nas redes sociais muitos nacionalistas consideram necessário fazer precisons. Nom é xenofobia, esclarecem; nom odiamos a classe obreira madrilena, precisam; rejeitamos encastelar-nos nas nossas fronteiras, somos abertos. Como razoamento, é sensato. Mas antes de atendermos à sensatez dum razoamento, é interessante descobrirmos a sua motivaçom. Por que nos justificamos ou, ainda implicitamente, por que nos desculpamos? E ainda mais: diante de quem nos temos que fazer tantas precisons?

Poucas vezes se reparou na longa história de ‘excusatio’ e desculpa que tem o nosso galeguismo. Em geral, será porque nos dedicamos a exaltar as nossas glórias -o que é mui necessário- mas somos mais bem perguiceiros na hora de nos livrar dos nossos lastros. Na década de 30, a grande estrutura do nacionalismo político, o PG, decidiu chamar-se ‘galeguista’ porque a palavra ‘nacionalista’, em anos de extremismos de direitas, poderia levar a confusom. Ainda que os jovens decidírom rebater esta ambiguidade renomeando a sua Federaçom de Mocidades Nacionalistas, 1936 curtou bruscamente a sua forma de luitar e de expressar-se, inimiga da ambiguidade; no exílio, Castelao dedicou páginas e páginas da sua obra magna a explicar como ser galeguista nom implicava o arredismo, e a justificar a nossa inserçom nacional galega na hespanholidade (com ‘h’) sonhada; os famosos dez pontos fundacionais da UPG incluem aquele artigo, a modo de addenda, em que se diz que a autodeterminaçom ‘nom exclui os vencelhos federativos’ hispanos; o PSG nasce manifestando ‘nom somos nacionalistas porque nom somos reaccionários.’ E todo o galeguismo cultural, desde ‘Nós’, vincou com teimosia em que galeguidade era sinónimo de universalidade, abertura a todas as correntes culturais e fim do abafo provinciano. Em épocas mais cercanas à nossa, quando a causa vira definitivamente obreira, os galeguistas de esquerdas consideram necessário esclarecer repetitivamente que a luita nacional nom desmente o internacionalismo proletário, e que, além de justa, resulta ser a via mais eficaz para o socialismo.

Se admitimos a tese dos nossos críticos, o nacionalismo seria umha ideologia confusa e delicada, de certa dimensom irracional, que cumpre manejar com muitíssimo tino para nom derivar na barbárie. Um sucedáneo civil da religiom que por vezes -só por vezes e em determinadas condiçons- pode ser libertador. É por isso que nacionalistas podemos sê-lo, mas cheios de prudência, em auto-exame permanente, e nunca em excesso; e cumpre, a cada passo que damos, fazer precisons tranquilizadoras que nos livrem da culpa ou da acusaçom: queremos a nossa terra, mas sem que isso nos cegue para a emancipaçom humana.

Esta tese, popularizada com insistência na mídia maioritária, nom resiste umha prova séria. Claro que o nacionalismo, incluído o resistente, está associado com muitos capítulos escuros da nossa espécie. Na realidade, todas as ideologias o estám, pois em toda produçom intelectual humana, como em cada pessoa individual, inclui-se a provabilidade da sua degeneraçom moral e política. Bem nos podemos imaginar corrupçom em nome do nacionalismo, xenofobia em nome do nacionalismo, e ánsia de poder e mando em nome do nacionalismo. Baixo as bandeiras mais atractivas, o péssimo, que é a corrupçom do óptimo, sempre atopou o seu lugar. A adesom adulta a qualquer ideário devesse assumir este axioma. Quando nos encontrarmos alguém que nos ofereça ideologias sem fisuras, incorruptíveis, pacotes de pensamento que garantem um futuro de felicidade e paz perpétua, melhor nos será fugir correndo.

A deformaçom dos projectos é umha ameaça universal; curiosamente, o recurso a discursos exculpatórios, nom o é tanto. Esta ánsia clarificadora dos mais dos galeguistas nom tira o sono, polo contrário, aos partidários de outras escolas: os cristaos socialistas de base nom adoitam a apresentar-se precisando que nom tenhem a ver com os crimes da Inquisiçom; as feministas nom necessitam afirmar a cada pouco que a sua proposta de igualdade nom comporta submeter os homens; para defender o comunismo, nom é necessário argumentar que um se deslinda do gulag e de Pol Pot; e tampouco os liberais precisam justificar as bondades do constitucionalismo deixando claro que estám contra o tráfico de escravos e o trabalho infantil na Índia.

Se esta pedagogia esgotadora se dedica a ‘evitar confusons no povo’, nom pode ir mais desencaminhada. Na Galiza quiçá reine umha interpretaçom popular distorcida da luita nacional, mas em qualquer caso esta nom pom o foco na nossa fereza nem da nossa intoleráncia. O relato dominante retratou-nos mais submissos, indecisos e pusilánimes do que realmente somos. Até um espanholista embusteiro, partidário da mentira e da soluçom policial contra a independência como Fernando Savater, manifestou, que ‘o nacionalismo galego era o único que lhe caía simpático’, querendo transmitir, como sobreentendido, que nom colocava desafios reais. Como bem expressava um estudioso da nossa causa é umha ‘patética mestura de fraqueza e tenrura’ com a que parte da populaçom associa o galeguismo. Umha proposta justa mas vaga, mais queixumenta que resolutiva, mais sentimental que política. Sobredimensionando os nossos vultos culturais e a nossa tradiçom partidária titubeante, ficam na sombra os mui numerosos contra-exemplos, o outro relato da história da Galiza.

Por fim, há quem diga que apregoar a nossa limpeza sem mácula é umha estratégia inteligente ante o inimigo: se somos rudos e agressivos, ele endurecerá-se, e nesta concorrência, o mais fraco (nós) sairá derrotado. Quiçá a captaçom de benevolência, que é umha estratégia retórica para ganhar-se a simpatia dum público hostil, funciona com adversários mais empáticos, mais liberais e ilustrados. Ora, se algo demonstrou o nosso inimigo histórico é que nom apenas está disposto a varrer os revolucionários frontais, senom os seus críticos moderados, os seus dissidentes internos, e os seus opositores nom violentos. Vivemos baixo a sombra dum poder que, por darmos exemplos conhecidos, no seu dia nom duvidou em soterrar um artista homossexual como Lorca, julgar numha farsa um católico republicano como Bóveda, ou assassinar um editor como Casal, queimando os seus livros em cerimónia pública; um poder que purgou as suas próprias fileiras, eliminando qualquer opçom de direita nom autoritária e belicista; um poder que tem um ex-presidente ‘socialista’ directamente relacionado com a morte de 26 pessoas a cargo de comandos mercenários, sem por isso enfrentar-se a consequências judiciais; um poder que, nestes tempos que substituírom o sangue pola engrenagem penal, encarcerou políticos profissionais cataláns que, com ideologias de orde, maiorias parlamentares e um pacifismo escrupuloso, convocárom ‘da lei à lei’ um referendo massivo.

Os nossos devanceiros sabiam-no mui bem e, ainda que decorreram quase cem anos e aquelas razons sigam a ser maiormente desouvidas, devemos expor as suas verdades: nenhuma maquilhagem: nacionalismo integral; dúvidas, as justas e imprescindíveis: nacionalismo de acçom. Entre os precursores, Antolim Faraldo, no seu sonho dumha ‘Galiza temida’, soubo que entre as nossas tarefas nom está a de cair simpáticos, nem a de pedir perdom, nem a de conseguir compreensom; si está a de ganhar respeito.