“Qualquer análise política que alente a crença num mundo seguro, racional e cooperativo nom passa a prova da adecuaçom à experiência e o testemunho histórico” (Murray Edelman)
Chispa. Partícula inflamada que surge de um corpo em combustão ou esfrego com força. (Dicionário Estraviz)
A Corunha, 18 de maio de 2020. A terceira semana de maio, enquanto os hospitais viviam um drama e nas residências de maiores estava a ponto de estalar outro, vizinhança das cidades galegas –porque este foi um fenómeno urbano, nas vilas e aldeias há outros recursos– autoorganizou-se para se defender das consequências sociais da pandemia e ajudar às partes mais febles da comunidade. Foi como se a coletividade renascesse de nengures produzindo um estertor digital ou umha chispa virtual, umha das últimas dum corpo em peso morto sustido por serviços municipais mui fracos, entidades do terceiro sector esquálidas e piedosas organizaçons caritativas. Elas sentírom que tinham que ajudar.
“Para moita gente era a primeira vez que se via na necessidade de recorrer a ajudas deste tipo”, explica Paula, parte dos GAM [Grupos de Apoio Mutuo] que se criárom na Corunha aqueles dias nos que o ativismo virou intenso e esgotador. “A gente pedia com muita vergonha, como quando a última crise se achegavam até as plataformas contra os despejos com sentimento de culpa e o primeiro que havia que fazer era dizer-lhes que aquilo que lhes passava nom era culpa deles, que era umha crise estrutural… Pois agora está acontecendo um pouco o mesmo. Com umha diferença notável: a resposta da cidadania está sendo, penso, um pouco mais solidária”.
Fôrom uns dias vívidos e irreais, e sacárom o melhor das ativistas. Mália que estavam as ONG habituais, e Cáritas, a Cruz Vermelha, a Cozinha Económica e os Serviços Sociais do concelho que recebérom centos de voluntários, por fora das instituiçons surgiu a necessidade de fazer algo. “Nom podíamos esperar cos braços cruzados a que as instituiçons resolvessem todas as situaçons. assim que, no entanto nom há, imos fazendo… Porque eu tenho o coraçom de voluntária, e nom podo ficar parada enquanto acontecem as cousas, se vejo que há que fazer algo, fago-o”, di Rosa, que organizou um grupo especializado na rede que tecérom os GAM: Coser na Casa.
Na Corunha, os GAM começárom como grupos de bairro. O 17 de março já eram umha dúzia. Uns funcionárom melhor; outros, nom tanto. Coordenárom-se desde o principio através de chats de Telegram e Whatsapp para resolver problemas imediatos: umha vizinha que nom pode baixar à farmácia; umha família que quedou sem quartos para alimentos; um vizinho que precisa ajuda para umha reparaçom; alguém que acompanhar à compra. A proximidade era a clave para repartir o trabalho durante o confinamento. Depois criárom grupos específicos para atender as dificuldades alimentárias (e nasceu Emerxencia Alimetaria), de vivenda, de material de proteçom (Coser na Casa) e outros, incluído um de transporte em bicicleta. Mesmo contam com umha “caixa de resistência”, quartos que venhem achegando vizinhas e vizinhos e servem para resolver necessidades materiais urgentes.
“No fundo é umha cousa mui galega isto de ajudar-se entre vizinhas, o que passa é que nas cidades perdeu-se por completo”, assinala Rosa. “E como um troco, nom? Um intercámbio de ajuda…”, aponta David, do grupo de Ciclologística. Yaiza, do grupo de vivenda, matiza: “É altruísmo, e viu-se em moitas cidades do Estado. Para mim, o que isto demonstra é que as Administraçons nom estám chegando onde tenhem que chegar. É bonito que passe, pero deixa ver o valeiro que haverá depois… quem vai ajudar esta gente a partir de agora? Porque igual nós já nom teremos tanta disponibilidade, e mesmo se estiras isto seis meses mais o desgaste emocional será grande. Nos grupos de vivenda ou no de emergência alimentaria topas realidades mui fodidas…”
O pior, depois das mortes, está por vir. Quiçá por isso é saudade o primeiro que transmitem as ativistas cobertas com máscaras, sentadas arredor dumha mesa baixo teito porque orbalha, no parque corunhês de Santa Margarida umha tarde da fase de desescalada para falar da experiência. Sentadas e prudentemente separadas, algumhas era a primeira vez que se viam entre elas.
As mulheres de Coser na Casa, “umhas noventa, das que quedarám umhas quarenta ativas porque já há gente que volveu ao seu trabalho”, conta Rosa, começárom a elaborar máscaras de proteçom a segunda-feira 23 de março a partir de sabas e outras teias que tinham nas casas. Depois fôrom necessitando mais material e conseguírom doaçons. Figérom puchos também. Em 50 dias, mais de quatro mil máscaras e uns 700 puchos. A maioria fôrom distribuídas entre entidades sociais, desde Casco e a Liga Reumatológica a SOS Racismo e Gaia; no Hospital, onde tirárom delas nos serviços de urgências, infecciosos, medicina intensiva, urologia e também, os puchos, nas cozinhas; e em residências de maiores e outros centros sociosanitários, como um em Betanços.
Lembra Rosa que a ideia surgiu “porque umha amiga que trabalha numha residência me dixo que estavam currando sem proteçons, falei com Tere, umha colega doutra oenegé e difundimo-lo entre os GAM: quem quer coser?, quem quer ajudar?”. “Como nom sei coser, mas queria ajudar, falei com Rosa”, conta David, “comecei eu só a transportar material, as teias, porque a bíci permitia cobrir distâncias maiores durante o confinamento”. Um telefone e umha bíci com duas alforjas vermelhas com vinte litros de capacidade de carga, som as suas ferramentas de trabalho. Levava telas às casas das costureiras e repartia máscaras e puchos.
O serviço de bicicletas medrou até juntar contra finais de abril a uns vinte ciclistas a través de anúncios nas redes. Durante as semanas mais duras da crise, os voluntários iam rotando em funçom das possibilidades de atender as demandas dos grupos de costura e de emergência alimentar, porque também se encarregárom de transportar alimentos, fundamentalmente, de recolher as doaçons. “A diário chegamos a fazer entre dez e quinze viagens, levaremos uns 800 quilómetros entre todos. E para nós nom é só importante prestar ajuda, senom fazê-lo dum modo sustentável. Onde nom podiam chegar os voluntários a pé, polas limitaçons da mobilidade e de tempo, chegamos nós e aforrando emisons à atmosfera. Calculamos que entre quatro e cinco bícis transportamos o mesmo que cabe numha furgoneta normal”.
Comida, butano, roupa, menzinhas
No grupo de Emergência Alimentaria há anotadas 56 pessoas voluntárias. A coordenaçom é complexa, porque atendem necessidades diversas. Recebem demandas de alimentos, pero também há famílias que necessitam comprar umha bombona, ou medicinas, mesmo roupa. A primeira tarefa é topar os recursos, depois devem armacenar as doaçons e distribui-las em pisos em distintos bairros. A mediados de maio tenhem atendido 155 famílias, com 302 adultos e 134 menores. Fam um pequeno registo para conhecer como e por que lhes chega essa gente. “A maioria som famílias que nom estavam habituadas a pedir ajuda e desconhecem os recursos assistenciais, assim que chegam polo boca a boca. O que fazemos é, ademais de proporcionar-lhes a primeira ou a segunda ajuda, informá-los de como aceder aos serviços sociais municipais. Nom temos a capacidade para fazer seguimento nem muito menos para atendê-los dumha maneira continuada”, explica Paula. O registo do grupo informa que umhas vinte famílias já passárom polos serviços sociais, outras 15 tenhem a cita concertada e há mais de 40 que ainda nom acedérom por primeira vez.
A assistência alimentar dos GAM ajudou gente que vivia ao dia, com um trabalho precário ou por horas, ou na economia informal; que chegava a pagar as faturas e o aluguer, pero caiu num ERTE ou no desemprego e seguírom cobrindo as dívidas mas dum dia para outro vírom-se sem nada para comer. Ou simplesmente deixárom de trabalhar porque também a atividade informal parou, como o caso dos vendedores ambulantes, senegaleses a maioria na cidade, que enchem as instalaçons da oenegé Gaia no bairro da Sagrada família. As colas diante das entidades que repartem comida volvem ser comuns. E som mais longas que nos piores anos da última crise.
“Todo isto deixará sequelas”, vaticina Paula, “e mesmo estes dias na alimentaçom comprovamos como nom é singelo dispor de produtos frescos, carne ou peixe, fruta ou verdura… isso tem consequências sobre todo nas crianças. Nos lotes que repartem Cáritas ou a Cruz Vermelha escasseiam este tipo de produtos. Nom avondam para cobrir necessidades básicas… sobre todo, as das crianças”.
Como experimento social, a reaçom dos GAM mantendo-se à margem dos circuitos asistenciais formais mostrárom os límites desse sistema de ajuda social que se apoia em ONG e nas entidades religiosas.
No grupo de vivenda, por exemplo, som “mui conscientes” do problema dos sem teito, pero durante esta crise nada pudérom fazer por eles. Foi o Concelho da Corunha quem habilitou um pabelhom para acolhelos durante o confinamento. Falta por ver se despois do pavilhom lhes procurarám outra soluçom. No grupo de vivenda, di Yaiza, o trabalho consistiu em dar informaçom e conselhos à gente que chamava para dizer que nom podia pagar o aluguer. “As medidas do Governo som polo de agora insuficiente, pessoalmente esperava algo más eficaz, pero basicamente do que se trata é de que o caseiro decida e nom perda quartos”. Os despejos parárom. Mas a medida é temporal. E do Governo da Xunta, tampouco há noticias. “Ainda estamos esperando a conhecer cal será a sua primeira medida mais alá das políticas que já levam anos acordadas pero sem desenvolver”. As ativistas reflexionam. Se o problema da vivenda se deixa sem atender mália a emergência social, as açons de aqui em adiante deverám ser mais duras: greve de aluguer, desobediência.
Por que agir? Para que serve?
As ativistas reflexionam entre certa frustraçom e a doce saudade daqueles dias que sentírom vívidos e, quiçá por isso, irreais. “Senta bem ajudar à gente”, reconhece Yaiza. “A mim vale-me mais um sorriso quando entrego umha bolsa de comida que qualquer outra cousa… Nom é orgulho, é umha satisfacción… ver que existe essa humanidade. Para mim isto deveria servir para que entre todos recuperemos essa consciência social”, anota David.
“Eu tenho umha sensaçom ambivalente. Dumha banda, quero confiar, quero ajudar, gostaria de construir umha maneira diferente de relacionar-nos, nom sendo tam depredadores… e por outra banda, sinto impotência vendo que temos que ser nós quem tenha que estar fazendo determinadas cousas. Isto tivo a sua parte bonita, o que Silvia Federici chama reconstruir o tecido social; mas também a constataçom de que a maior parte da classe política é curtopracista, chafalheira e lhe custa muito pôr as pessoas e umha vida digna no centro da política. A solidariedade tinha que ser a reaçom imediata das pessoas que tenhem a responsabilidade de governar.” (Paula)
“Eu vexo a necessidade e ajo. Nom penso em quem tem a obriga de fazê-lo. Quiçá porque estou acostumada a que quem tem a obriga chegue tarde e mal, ou nom chegue… Neste debate, eu nom entro.” (Rosa)
Yaiza está de acordo com Rosa, pero tamém com Paula. “Eu também digo sim. Sim podo ajudar, quero fazê-lo e vou-no fazer. Mas, como di Paula, isto nom deveria ser a nossa responsabilidade. Fazemo-lo porque temos coraçom e alma, porque muitas somos conscientes de que temos um lugar privilegiado nesta sociedade: eu vou dormir todos os dias sem ter que pensar nos quartos… esse é o privilégio. E temos que fazer essa outra reflexom: por que as pessoas nom som o primeiro?, por que as administraçons esquecem à metade da populaçom? Eu tampouco espero nada. Nom imos cambiar nada, a consciência social é feble…”
”Penso que igual esta crise si serve como liçom de humildade para pessoas que sempre mirarom para outro lado, que nunca tomárom consciência de que lhes podia tocar eles… De súbito, tomárom consciência. Penso por exemplo em famílias que si tenhem quartos mas nom sabiam como topar umha máscara. Tivérom que pedir ajuda. É umha pequena liçom para pôr-se na pele dos que acotio precisam de ajuda”, conclui Rosa.