INTRODUÇÃO
O presente artigo se propõe a fazer uma análise critica acerca da perspectiva histórica do tema fundante do Direto do Trabalho: a greve. Esse movimento social característico da modernidade e do capitalismo nascente, o qual, entre muitas categorizações, pode ser definido como protagonista das lutas por emancipação social e, ao mesmo tempo, matriz dos direitos fundamentais ligados ao trabalho e à cidadania. Além de ter composto a base histórica de toda a doutrina que se construiu no entorno desses valores.
A compreensão da história da greve, desse modo, se reveste de interesse à maneira das pesquisas arqueológicas: para trazer à luz as origens políticas, econômicas e sociais dos conflitos que, embora se transfigurem com o passar do tempo, repetem-se em razão de duas circunstâncias fundamentais: a desigualdade imposta às pessoas pelo regime capitalista de produção e a luta pela emancipação social.
No mesmo sentido, resgatar o papel histórico da greve como protagonista entre os movimentos de emancipação social e busca por dignidade se presta a contextualizar seu papel contemporâneo, justificar sua existência e, atribuindo, com justiça, a respectiva relevância social, consignar ao movimento o status de responsável pela formatação de uma nova e mais ampla consciência de cidadania; bem como pela consagração uma vasta gama de diretos alçados à categoria de humanos de segunda geração- ou dimensão-: os direitos sociais.
Assim ao longo do passeio histórico ora proposto, emergirá, em primeiro plano, a força revolucionária do movimento e suas imbricações políticas, originariamente pautadas pelo ideal de emancipação social e reinvenção da convivência social. Além disso, se perceberá o surgimento de uma força primordial no Direito, nascida no seio da sociedade em conflito: a força transformadora que o conduz em seu caminho de justiça e equidade.
1. BREVE HISTÓRIA DA GREVE
Alguns autores tentam buscar as origens das greves em etapas históricas anteriores à Revolução Industrial, sem que, todavia, seja essa a posição vitoriosa da doutrina.
Perez de Botija 4, por exemplo, descreve
“(…) a rebelião de Espartaco (ano 74 A C.); a rebelião dos servos de Normandia (fins do século X); a célebre greve de tipóbrafos de Lyon, ocorrida no século XVI. O professor sueco Kohringberg afirma que a primeira greve teve lugar na construção das pirâmides (reinado de Cheops, Sicfis ou Saofes I). Enquanto na
Espanha, citam a promovida em Escorial (1577) por obreiros que construíram o Mosteiro (…).”
A maioria, no entanto, finda por constatar que a greve é um fenômeno vinculado à moderna sociedade industrial, sem ligação direta com acontecimentos e conflitos desencadeados nas etapas históricas precedentes.
Um dos mais interessantes registros sobre a origem da greve está lançado na obra de Paulo Garcia5. Segundo ele, os operários parisienses, quando desempregados, costumavam reunir-se na Praça do Hôtel de Ville, e ali ficavam à espera de trabalho ou a debater sobre os fatos relacionados à suspensão do trabalho.
Essa praça ficava próxima ao rio Sena. Nas épocas de enchente, ela era sempre inundada. Quando as águas baixavam, o local ficava repleto de cascalhos, seixos e pedregulhos. No francês coloquial eram denominados gravés.
Daí, segundo o jurista mineiro6:
“(…) passa a Praça do Hotêl de Ville a denominar-se Place de la Grave e mais tarde, por um vício de pronúncia, por Place de la Grève. Surgiu, assim, a palavra que, mais tarde, veio a dar nome aos movimentos de suspensão do trabalho, quando os operários, suspenso o trabalho, reuniam-se na Place de la Grève (…).”
A outra trilha para se identificar o surgimento das greves vem da experiência inglesa. Hobsbawn 7demarca-a no lapso entre 1790 e o fim da década de 1840. Consoante esse autor, “(…) o período 1748-1848 é cheio de revoluções em todas as partes da Europa Ocidental, mas não na Inglaterra (…).”
Mesmo sem admitir a existência de revolução, naquele país, aquele autor assegura ter havido, em tal período, um sentimento revolucionário espalhado por extensas áreas do país, sobressaindo, nesse ambiente, a força do cartismo e especialmente do luddismo.
Como se observa, os caminhos percorridos por esse movimento coletivo dos trabalhadores sofreram inúmeras qualificações e condenações.
Foi a greve, por exemplo,
“(…) considerada por alguns juristas como a negação do próprio direito. Os autores clássicos comparavam-na à guerra. Para Carnelutti, seria a grave uma guerra intersindical. Para Carlos Maximiliano, uma revolução. Canalejas e Langois falaram em ‘estado de guerra’. Vatbier considerou a história da greve a história da Ruína do empresário, a miséria do trabalhador e altercação da ordem pública. No início do século XIX, na Europa, e sob a influência do Código Penal francês, a greve foi considerada um delito, mantendo-se, assim, pelo menos, até 1864, na França; 1869, na Alemanha; e, 1890, na Itália (…).” 8
O interessante de tudo isso é que o tempo histórico de sua condenação, de sua desqualificação, não chega a um século. Breve período, em termos de história do Direito. Todavia, impressiona mais a revelação do caráter revolucionário do próprio Direito do Trabalho, estampado nas expressões de Catharino 9 “(…) Basta que se tenha em mente a evolução ocorrida com a greve, de delito a direito constitucional. Não podia haver no campo do direito evolução mais espetacular. Determinado fato social, considerado delituoso, com o correr dos tempos passar a ser garantia constitucional (…).”
2. A GREVE NO SOCIALISMO UTÓPICO
O pensamento político consubstanciado no socialismo utópico preconizava a superação do modelo capitalista pelo modelo socialista de Estado e de sociedade. No entanto, os seus argumentos e práticas não estavam teoricamente embasados de forma sólida, o que só viria a acontecer com o chamado socialismo científico, concebido por Marx e Engels10.
Daí também o caráter ambíguo da doutrina, com fluxo entre a ruptura e o revisionismo, isto é: ao mesmo tempo em que pregava o fim da exploração do homem pelo trabalho assalariado, escravizado, acreditava também na possibilidade de deslocar o eixo “trabalho assalariado” pela participação dos trabalhadores nos lucros e na administração das empresas. Ou ainda, defendia a criação de instituições empresárias sob o comando dos próprios trabalhadores, na versão hoje enquadrável no conceito das chamadas empresas de economia social ou solidária, especialmente o cooperativismo. Nenhuma ruptura com o modelo capitalista de produção, portanto.
Contudo, no seio das crises e das convulsões sociais acontecidas na primeira metade do século XIX, os socialistas utópicos não descartaram as greves como alternativas de transformação do modelo individual contratualista das relações de trabalho.
Assim, em suas primeiras luzes, a greve encontra amparo político-doutrinário no socialismo utópico, o qual, no entanto, não pode ser considerado como doutrina política que alicerçou o movimento.
3. A GREVE NO SOCIALISMO CIENTÍFICO
A teoria do socialismo científico é considerada por seus adeptos a alma das práticas sindicais, sem a qual não é possível conhecer as causas sociais, econômicas e políticas da ordem capitalista. Com a ausência desse conhecimento, não seria possível, também, desencadear movimentos politicamente organizados e dirigidos à consecução do seu objetivo final: suplantar o Estado capitalista.
Uma constatação, em verdade, pode ser feita: os sindicatos são um produto do movimento e da propaganda socialista. Daí ser possível verificar a impossibilidade de dissociar a luta econômica da política, uma vez que ambas se dirigem às mesmas finalidades: numa primeira etapa, reduzir o impacto da exploração capitalista, e, em seguida, suprimir a própria estrutura de sociedade burguesa.
Para essa doutrina, a greve é um elemento imprescindível, não só pelo seu poder de articulação das massas oprimidas, mas também como veículo de expressão de uma consciência política disposta a um rompimento com o modelo de sociedade capitalista.
Nesse momento, interessante debater sobre o seguinte tema: uma vez produzida a transformação desejada pelo socialismo científico, a partir da sua primeira fase– do socialismo real, da ditadura do proletariado rumo ao comunismo-, haveria espaço para a greve?
Os pensadores socialistas propõem que o socialismo e comunismo são duas fases ou graus de desenvolvimento de um modelo de sociedade distinto daquele vivenciado na Modernidade, composto de fases. A fase primeira suprime a base econômica da sociedade capitalista e constitui um novo sistema de economia, baseado na propriedade coletiva dos meios de produção. Já aqui, estão liquidadas as classes exploradoras- ou seja, a exploração do homem pelo homem- e, assim, vêm também a desaparecer as diferenças de classes.
A tarefa primordial do Estado socialista é sedimentar, do ponto de vista econômico, educacional e cultural, as bases para a construção do comunismo. Esse seria, pois, a fase superior e o objetivo final do socialismo científico. Na sociedade comunista completa, não haverá nenhuma diferença de classe. Existirá, assim, no desencadear desse processo de mudança e de ruptura, a constituição individual e coletiva de novos hábitos e novos costumes.
Para os teóricos do socialismo científico, então, não haveria mais divisão do trabalho em classes, ou diferença entre o trabalho manual e o intelectual. Em resumo, segundo Rosental e Iudin11 “(…) o princípio vetor da vida social será o principio comunista: a cada um segundo sua capacidade; a cada um segundo a sua necessidade (…).”
Em tal contexto, uma vez constituída a sociedade comunista, desaparece o antagonismo de classes, e, assim, é impossível conceber a greve. Desse modo, o papel social da greve seria a de revolucionar o status quo, impulsionando a criação de um Estado coletivista e igualitário, em que ela mesma não mais teria lugar. Cessada a causa, cessado o feito.
Em outras palavras, o socialismo científico, alicerce do pensamento grevista, propõe a greve como veículo revolucionário com papel histórico limitado ao momento inicial de implantação do regime, que, uma vez construído o ideal do sociedade mais justa planejado, desaparecerá.
4. A GREVE E O ANARQUISMO
Como o anarquismo não é uma doutrina uniforme, os historiadores apontam para certa resistência ao exercício da greve por parte de alguns dos seus seguidores.
O depoimento de Losovski 12é impressionante:
“(…) Como é notório, Proudhon é fundador do anarcho-syndicalismo. Pelos menos, o que dizem e escrevem os anarcho-syndicalistas, collocando-o acima de Marx, o ‘venerador do Estado’. Mas os anarcho-syndicalistas evitam cuidadosamente dizer que Proudhon foi inimigo acérrimo do direito de coalizão e do movimento grevista. Seu ódio às greves foi tão forte, que chegava a justificar o fuzilamento dos grevistas(…)”
À parte esse fato isolado, os anarquistas, em regra, não só proclamaram a greve como a exercitaram com freqüência, inclusive, no Brasil, conforme se verá mais adiante.
Como visto, o pensamento comunista defendia duas frentes de luta: uma social, promovida pelas entidades sindicais organizadoras da greve; outra, político-partidária. Ambas, porém, vinculadas à ruptura com o sistema capitalista, rumo ao socialismo e, depois, ao comunismo.
Já os anarquistas rejeitam a luta engendrada na instituição partido político, porquanto concebem o Estado moderno como uma representação das formas reacionárias de convívio social; e, assim, como uma instituição autoritária, que deve também ser abolida.
Entretanto, a supressão do Estado moderno não poderia ocorrer com a intervenção de instituições a ele integradas – como os partidos políticos. Pois, para os anarquistas, é contraditório considerar o Estado como representante do capital, da corrupção, da opressão, de todos os males da sociedade e, ao mesmo tempo, integrar esse aparelho por meio de partidos políticos.
Assim, os interesses da sociedade somente se poderiam revelar por ela mesma, daí a estratégia anarquista de combate ser a ação direta. E a greve nada mais é do que a ação direta dos trabalhadores, na defesa do seu direito a melhores condições de vida.
As estratégias de ação direta utilizadas pelos anarquistas foram múltiplas: iam de atos terroristas–ataques, sabotagens, atentados– à desobediência civil – recusa ao serviço militar. A greve incluía-se nesse rol.
Os anarquistas também divergiam dos marxistas na medida em que esses últimos enxergavam a opressão social apenas contra a classe proletária, enquanto aqueles defendiam o direito à libertação como inerente a todos os homens, e não apenas ao operariado.
Historicamente, identifica Pierre Monatte13 o ano de 1894, quando, em um congresso operário realizado em Nantes, na França, o movimento anarquista percebeu a necessidade de unir a filosofia anarquista ao movimento sindical como marco da decisiva influência da doutrina anarquista sobre os movimentos grevistas desencadeados pela classe trabalhadora.
Até então, exista um isolamento dos anarquistas em relação ao movimento operário e, especialmente, às entidades sindicais. Isso era devido, em primeiro lugar, a uma desconfiança por parte dos anarquistas em relação ao sindicato enquanto instituição, ou melhor, enquanto instituição burocrática. Depois, em razão de certo receio de os sindicatos caírem na ilusão de defender apenas uma parte da sociedade– a classe operária- e se esquecerem do todo.
Havia, ainda, um sentimento anarquista de que os movimentos sindicais, inclusive as greves, cairiam na vala comum dos movimentos reivindicativos, de caráter reformista-adequativo, impregnados da ideologia criada pela social democracia.
Todavia, o próprio Malatesta14 reconheceu esse equívoco do passado, ainda que se posicione criticamente sobre a inserção dos anarquistas no mundo operário:
“(…) Devo acabar. Lamentei, no passado, que os camaradas se isolassem do movimento operário. Lamento hoje que, caindo no extremo oposto, muitos entre nós se deixem tragar pelo mesmo movimento. Uma vez mais, a organização da classe operária, a greve, a ação direta, o boicote, a sabotagem e a própria insurreição armada são apenas meios; a anarquia é o fim. A revolução anarquista que desejamos excede os interesses de uma única classe –ela se propõe à libertação total da humanidade escravizada, tanto do ponto de vista econômico quanto político e moral. Preciso que permaneçamos atentos contra qualquer plano simplista e unilateral de ação. (…).”
Superados os questionamentos anarquistas, passa essa corrente de pensamento a constituir o segundo alicerce político-filosófico dos movimentos grevistas iniciais.
5. A GREVE NA DOUTRINA CORPORATIVA
O Estado corporativo é aquele que ideologicamente congrega os setores produtivo e profissional, na busca de uma solidariedade social idealizada e pouco compatível com o antagonismo inerente às relações de capital e trabalho15.
O seu fundamento teórico reside no Direito Corporativo, que atribui às corporações constituídas pelos diversos setores economico-produtivos um sistema jurídico integrado, atribuindo-lhes natureza jurídica de organismos de Direito Público.
O regime corporativo italiano teve origem em 5 de fevereiro de 1934, inicialmente como corporação de categoria; depois (1934), por ramo de produção. O Estado corporativo funcionava com o auxílio de um órgão chamado Conselho da Corporação, presidido por um Ministro de Estado; três membros do partido fascista nomeados pelo secretário do partido, e um número aproximado de trinta a quarenta representes dos sindicatos das diferentes profissões compreendidas na corporação.
Cada corporação tinha sua organização determinada por decreto constitucional. Portanto, não seriam organizações de Direito Privado, mas, Público. Em tal formato, a interferência do Estado era absoluta.
Consistindo em um modelo de Estado centralizador e autoritário, que pregava uma fantasiosa harmonia entre trabalhadores e empregadores, inclinada à solidariedade social, de modo a não permitir a existência ou proliferação dos conflitos trabalhistas, como via ele o exercício da greve?
Responde Riva Sanseverino16
“(…) Em conformidade com a diretiva da necessária colaboração do trabalho com o capital, e da imprescindível subordinação dos interesses de categorias aos interesses gerais da produção nacional de do Estado corporativo, a greve foi considerada como meio ilegítimo de autotutela, muito embora fosse prevista a solução jurisdicional da controvérsia coletiva, não só jurídica, mas econômica. (…).”
6. A GREVE NAS VERSÕES EXTRAPROLETÁRIAS DE SOCIEDADE
Em momento posterior ao comunismo e ao anarquismo, surgem as visões extraproletárias de sociedade; isto é, as óticas de estudo do Estado que não analisam os conflitos sociais a partir do ângulo do sofrimento do proletariado. Também essas doutrinas tiveram influência sobre a concepção das greves, destacando-se como influência decisiva a liberal/intervencionista.
Essa teoria politico-estatal sedimentou um modelo de sindicalismo de cunho reformista, para se contrapor ao modelo revolucionário centrado no socialismo científico e no anarquismo. Cabe esclarecer que o reformismo consiste na aceitação de reformas visando à melhoria circunstancial da qualidade de vida do trabalhador, sem tolerar, contudo, que uma profunda mudança nas condições de vida da classe trabalhadora viesse a comprometer as estruturas capitalistas.
Assim, outro tipo de sindicalismo á incorporado- ante a respectiva inevitabilidade-pelo Estado liberal. O sindicalismo reformista, sem pretensões revolucionárias, e intimamente ligado à vertente social democrática do capitalismo, de caráter intervencionista, a qual findou por respaldar a edição de leis de proteção ao trabalho, e ampliar significativamente o âmbito de atuação dos sindicatos nas relações coletivas ligadas ao trabalho.
Nessa perspectiva, houve espaço para o reconhecimento de greves pautadas em reivindicações consideradas justas no contexto do sistema político capitalista: quando do desrespeito patronal aos direitos e às conquistas da classe trabalhadora. Não estava- jamais estaria- permitida a greve de cunho revolucionário, tal como preconizada por socialistas e anarquistas.
A descriminalização da greve, iniciada na segunda metade do século XIX – com algumas variações-, bem como a sua posterior regulamentação, aconteceram- claro está- como decorrência do intenso movimento desencadeado pelos trabalhadores no decorrer daquele século.
Mas, também, não se pode negar que a assimilação pelo Direito deu-se em virtude de a social-democracia ter percebido a ameaça e o perigo que a greve impunha à sobrevivência do próprio sistema capitalista e do Estado liberal.
Sobre o tema, ao citar Calamandrei, lembra Mazzoni17 a experiência italiana:
“(…) O reconhecimento constitucional do direito de greve apresenta, desde já, e antes de que sejam baixadas as leis reguladoras, efeito imediato sobre as relações de trabalho: não só no sentido de fazer considerar ab-rogadas, por incompatibilidade, as normas do Código Penal (art. 502 e segs.) que puniam a greve como um delito, mas no sentido de cancelar na mesma, mesmo no âmbito da singular relação de trabalho, qualquer traço de ilícito contratual. E prossegue: ‘a Constituição no art. 40 reconhece como já existente o direito de greve: as leis reguladoras poderão vir a delinear o âmbito do seu exercício, mas até quando tais limites não sejam assinalados, a ausência de leis limitadoras significa apenas que êles não existem e que, portanto, o direito pode, como tal, ser exercitado sem restrições em tôdas as relações de trabalho e categorias de trabalhadores (…).”
Em tais circunstâncias, pode-se apontar que a mais importante contribuição do Estado intervencionista para a fenomenologia da greve foi deslindar sua passagem de delito a direito; isto é, torná-la direito constitucional fundamental da autonomia privada coletiva, ainda que, para tanto, viesse a desconfigurar seus propósitos mais profundos e legítimos de reconstrução de uma sociedade mais justa e humana.
7. A GREVE NO CONTEXTO DOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS.
Segundo Boltanski e Chiapello (2009), depois dos movimentos de protesto na década de sessenta do século passado, que se estabeleceram a partir da segunda metade da década setenta do mesmo século, o capitalismo se reformula, pela força de duas rupturas: a integração de temas oriundos da chamada crítica estética ao seu discurso e o desmonte da chamada crítica social, “privada de seus apoios ideológicos e relegada à lixeira da historia” (Idem, p. 352). É quando aflora a supremacia das chamadas ações humanitárias. Segundo eles,
“A noção de exploração, que até agora só teve formulação teórica elaborada no marxismo, que foi durante mais de um século o fulcro da crítica social, desapareceu da teoria social durante a década de 80, ao mesmo tempo em que era abandonado o quadro geral das classes sociais em que ela se situava” (Idem, p. 353).
Entretanto, aqueles autores afirmam que se pode datar do início da década de noventa a politização da exclusão e, ainda, com as tentativas do que passaram a chamar de reconstituição de uma “’esquerda da esquerda’ a partir das greves de 1995, a ação humanitária tende então a ser novamente desacreditada devido o seu ‘apolitismo’. “O fato é que a partir da reorientação da militância política para a ação humanitária, na segunda metade da década de 80, formou-se um novo meio no qual ganhou raízes o estabelecimento da crítica nos anos 90” (Idem., p. 359).
Assim, por exemplo, na França, no episódio da ocupação do prédio da Rue du Dragon e as greves de 1995 forjou-se a “oportunidade para a aproximação entre esses movimentos e sindicalistas, em especial o Solidaires, Unitaires et Démocratiques (SUD), oriundo de uma dissidência de militantes do CFDT no fim da década de 80” (Idem, p. 359).
Uma versão muito bem articulada sobre os Novos Movimentos Sociais (NMS) foi exposta por Carlos Montaño e Maria Lúcia Duriguetto (2011)18, que propõem uma classificação, formada por três grupos: o Grupo Acionalista, o Grupo da Esquerda Pós-Moderna e o Grupo dos Segmentos Marxistas ou Comunistas. Deixam transparecer que tais movimentos se movem teoricamente pelo terceiro grupo – que reúne os segmentos Marxistas e Comunistas, mas que rejeita a dogmática stalinista.
Nesta direção, recepcionam e vinculam as demandas dos NMS às lutas de classe e às formas de organização herdadas do marxismo leninismo, partido e sindicatos. Pretendem incorporar as lutas do NMS ao modo de produção capitalista e à luta política revolucionária, na medida em que destinam suas referências às proposições defendidas por Jean Lojkine e Manuel Castells que também recepcionam a leitura Marxista sobre os “NMS”.
A propósito, dizem que “o contexto histórico da análise marxista dos movimentos sociais dos anos 1960-1970 é exatamente o mesmo que o dos ‘acionalistas’. A questão refere-se aos aspectos em que esses contextos são priorizados e como são interpretados; aí está o fundamento da divergência de análise”19 (Idem, p. 323).
Destacam também as ideias lançadas por Bihr (1998), quando registram a entrada, na cena política, de temas voltados “ao gênero, à raça, à etnia, à religião, à sexualidade, à ecologia, e aquelas que se relacionam à reprodução social, como os bens de consumo coletivo saúde, educação, transporte, moradia etc.”20 (Idem, 266). Tal destaque destina-se a registrar a ideia de que tais movimentos revelam uma preocupação maior e fundante, voltada a demonstrar que a reprodução do capital delimita um Modo de Produção Capitalista, o qual, por sua vez, abarca a totalidade das condições sociais de existência e as “condições indiretas, secundárias, derivadas do movimento de apropriação capitalista da sociedade” (Idem, p 266).
No contexto desta compreensão marxista dos “NMS”, são diretamente postas em questão as seguintes variáveis: as relações sociais capitalistas e as condições imediatas de sua reprodução. Para eles, NMS devem realizar-se no contexto e conjuntamente com a luta do proletariado. Do contrário, deixa de lado um aspecto decisivo: a reapropriação das condições sociais de existência. Ou seja: “A ausência de mediação entre o movimento operário e os novos movimentos sociais desembocou na ausência de mediação entre os próprios novos movimentos sociais entre si” 21 (Idem, p. 267). Advertem também para o perigo de um limite que se revela no particularismo de suas demandas e na tendência de cada uma delas se isolar “em um grupo de problemas específicos, frequentemente sem relação aparente de uns com os outros, favorecendo seu fechamento em práticas localizadas”22 (Idem, p. 266). É que isso acabaria por retirar desses movimentos a perspectiva de inserção na esfera de uma realidade estruturada – econômica, social e política maior e da luta de classes. “Essa ‘retirada acabou por conduzir a uma convivência com o sistema, ainda que limitadamente contraditória, mas compatível com sua manutenção”23(Idem, p. 266).
Para esta corrente do pensamento marxista, a centralidade econômico-produtiva apresenta-se como elemento fundante da “questão social” e “suas manifestações (pobreza, desemprego, questões de gênero e ambiental, xenofobia, discriminação racial, sexual etc.) não se desvanecem com as significativas mudanças no mundo capitalista contemporâneo”24 (Idem, p. 324). Estas as razões pelas quais, em Castells e Lojkine, aparecerem da seguinte maneira: “os movimentos sociais como expressão das lutas de classes”25 (Idem, p. 325); b) a necessidade da formação de uma contra-hegemonia por parte das lutas de classes subalternas e a importância do partido político; c) o pensamento marxista acrescenta novos elementos no que diz respeito à articulação entre movimentos sociais e luta de classe, na medida em que esta luta não se limita à produção, mas envereda e envolve toda a sociedade e o aparelho estatal.
Dentro desta perspectiva, Estado, sociedade civil e mercado (produtivo e comercial) são esferas da mesma realidade social e histórica, portanto, todas espaços de luta e demandas sociais, todas passíveis de conflitos e disputas. As ações sociais e os movimentos sociais podem se organizar em torno de demandas pontuais, e podem se desenvolver em espaços localizados, mas isso não retira o fato, nessa perspectiva, de terem vinculação com a forma dada no sistema capitalista de produção à distribuição de riqueza (fundada na relação de exploração entre as classes antagônicas, capital e trabalho) e seu acionar ter impactos (positivos ou negativos, transformadores ou mantenedores) das relações e estruturas nas esferas estatal, mercantil e da sociedade civil26 (Idem, p. 324).
Carlos Montaño e Maria Lúcia Duriguetto procuram descrever os aspectos positivos ou negativos dos NMS – transformadores ou mantenedores da realidade social vigente. Neste sentido, realçam a necessidade de identificar os aspectos positivos e transformadores da realidade social ou os aspectos que consideram relevantes e que estão retratados da seguinte maneira:
- “A mobilização de massas e sua organização política estão intimamente ligadas ao movimento revolucionário” (Idem, p. 329);
- “Em vez de ‘parar’ ou ‘esfriar’, quando confrontados ao Estado, o movimento social será definido, em última instância, por sua capacidade de transformar o sistema socioeconômico no qual surgiu”27(Idem, p 329);
- O conteúdo ideológico e político das reivindicações e das ações devem definir
“a capacidade de questionamento da hegemonia política da classe (ou fração de classe) dominante. Isso porque ‘o alcance histórico de um movimento social pode ser definido pela análise de sua relação com o poder político’”28 (Idem, p. 330);
Do ponto de vista das relações sindicais retratadas neste estudo, é preciso acrescentar a magnitude das lutas simultaneamente reformistas e revolucionárias que, na compreensão daqueles dois autores, deixam transparecer que os movimentos sociais não podem abandonar a luta pelos direitos em suas programáticas interventivas, as quais, contudo, devem sincronizar-se com uma luta por um projeto de superação da ordem social vigente (Idem, p. 351).
Com tais elementos, pode-se dizer que a Teoria Jurídico-trabalhista Crítica finda por reafirmar a proposição dialética defendida por Everaldo Gaspar Lopes de Andrade (2014: 164)29, para quem o Direito do Trabalho faz-se e se refaz dialeticamente, tendo como ponto de partida as relações e os conflitos individuais e coletivos de trabalho.
CONCLUSÃO
Da análise das íntimas relações dos movimentos grevistas com as doutrinas políticas anticapitalistas e os respectivos desdobramentos históricos, contata-se que a História patenteia a greve como movimento de emancipação social e o Direito se apropria dela para dar ensejo a uma nova era de direitos: aquela dos direitos sociais, de cidadania.
Assim, é fácil perceber que a greve foi o movimento social protagonista na implementação das mudanças que, se não conduziram à emancipação da classe trabalhadora, tiveram o poder de convulsionar o capitalismo ao ponto de obrigá-lo a uma auto reinvenção, em uma versão talvez um pouco mais humanista.
Para o Direito, a mudança não foi menos grandiosa. As revoluções e insurgências inspiradas pelo anarquismo e o comunismo, e desenvolvidas no seio do mundo do trabalho no decorrer do século XIX, sobretudo por meio das greves, fizeram surgir, em plena sociedade individualista, o diálogo coletivo em busca de um consenso ético- a negociação coletiva-, como forma atípica de resolução de conflitos e edição de normas.
Isso tudo, vale enfatizar, no momento de cristalização de valores da sociedade moderna, tais como o individualismo, e premissas do seu Direito, a exemplo do monopólio estatal de produção normativa.
Essa época compõe o substrato histórico que subsidiou o surgimento de inúmeras leis de proteção ao trabalho que, por sua vez, constituem, até a atualidade, o alicerce do justrabalhismo. O constitucionalismo moderno, do início do século XX, completa essa linha evolutiva de consolidação dos direitos sociais, a partir do reconhecimento do direito à greve.
Por tais razões, entre outras, é tão necessária a compreensão daquela. Não mais como um fenômeno definível pelo Direito, mas sim como movimento social de busca pela emancipação social e resgate da dignidade humana. E ainda, como giro histórico fundamental à reconstrução do Direito.
Um Direito que precisava repensar a igualdade, para concretizar a equidade. E hoje, tudo isso tem valor? A aposta da autora é que sim, com base na crença de que a memória histórica se torna viva quando se apropria da realidade atual, se reinventa e segue firme na busca pelos mesmos ideais imortais: justiça e dignidade.
Mas, como o Direito do Trabalho surgiu das entranhas convulsionadas das relações sociais; faz-se e se refaz a partir da luta operária, a sua reconfiguração depende da retomada dos movimentos libertários – das greves – a serem desencadeadas nos espaços locais, regionais e supranacionais; instituídas e deflagradas para atender a um objetivo político fundamental: lutar contra o ultraliberalismo global, as injustiças e patologias sociais dele decorrentes, sobretudo aquelas que vêm atingindo a sociedade do trabalho contemporânea.
NOTAS
4.PEREZ BOTIJA, Eugenio. Derecho del Trabajo. Madrid: Editorial Tecnos, 1960, p.299.
5. GARCIA, Paulo. Direito de Greve. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1961, p. 7.
6.Idem, p.7.
7. HOBSBAWN, Eric. Os Trabalhadores: Estudos sobre a História do Operariado. São Paulo: Paz e Terra, 1981, p. 3
8. CATHARINO, José Martins. Direito do trabalho: estudos ensaios pesquisas. Rio de Janeiro: Trabalhistas, 1979, p. 169: 10. Lira. Fernanda Barreto.
9. A greve e os novos movimentos sociais. Ed. LTr, 2009, p. 49.
10. ROSENTAL, M.; IUDIN, P. Diccionario Filosófico Marxista. Montevideo: Ediciones Pueblos Unidos, 1940, p. 283.
11. LOSOVSKI, A. Marx e os Sindicatos. São Paulo: Edição Cultura Brasileira, 1928, p. 27.Monatte.Pierre, apud WOODCOCK, George. Os Grandes Escritos Anarquistas. Porto Alegre: L&MP Editores, 1998, p. 201.
12. MALATESTA; BAKUNIN; KROPOTKIN et al. Os anarquistas e as eleições. São Paulo: Imaginário, 2000, p.27
13. LIRA. Fernanda Barreto. A greve e os novos movimentos sociais. Ed. LTr, 2009, p. 52.
16. SANSEVERINO, Luisa Riva. Diritto Sindicale. Torino: Unione Tipografico-Editrice, 1964, p. 422:
17. MAZZONI, Giuliano. Relações Coletivas de Trabalho. São Paulo: Edições Trabalhistas, 1972, p. 236-237
18. MONTAÑO, Carlos; DURIGUETTO, Maria Lúcia. Estado, Classe e Movimento Social. São Paulo: Cortez, 2011.
19. Idem, p. 323.
- Idem, p. 266.
21.Idem, p. 267.
22. Idem, p. 266.
23. Idem, p. 266.
24. Idem, p. 324.
25. Idem, p. 325.
26. Idem, p. 324.
27. Idem, p. 329.
28. Idem, p. 330.
29. O referido autor, nos idos de 2005, já preconizava a possibilidade de uma greve de dimensão planetária e de caráter político, para enfrentar as mazelas, as injustiças e a desconstrução do mundo do trabalho desencadeado pelo ultraliberalismo global. In: ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de. Direito do Trabalho e Pós-modernidade. Fundamentos para uma teoria geral. São Paulo: LTr, 2005.
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