Se fixermos um inquérito ao chou sobre o conhecimento urbano de animais como a donicela, o porco teixo, o cabalinho do demo ou o bujato, os resultados, tememo-nos, revelariam umha preocupante ignoráncia. Nom acontece assim com o abutre ou voitre (nas duas versons do nosso idioma), um nome de ave que aparece em muitas bocas como burla ou insulto: abutres som os cobiçosos que querem apropriar-se da riqueza alheia; abutres som as pessoas que se comprazem do malfado do próximo; também os cobiçosos na sua melhor expressom, os capitalistas que gerem fundos com esse nome para tirarem réditos de companhias em falência. No mundo anglosaxom, ainda sem tal carga crítica, os “culture vulture” som os aditos à cultura que perdem conexom com a realidade, algo assim como os culturalistas galegos na sua expressom mais caricaturesca.
Das alturas, os abutres pairam a alturas incríveis, até os 3000 metros, para alviscarem preas ou animais moribundos, e logo descerem, sempre um grupo, para dar-se um festim com a carniça. Essa imagem impressionou o ser humano desde tempo imemorial, e daí a associaçom da nossa ave com a morte e o aproveitamento imisericorde do fraco. Na realidade, a cultura popular comete umha tremenda injustiça com o voitre, e o ecologismo tem-na denunciado com acerto: os animais preeiros, entre eles o abutre, jogam um papel chave na regeneraçom do ecossistema. Contribuem para a continuidade da cadeia trófica, aceleram a descomposiçom e impulsionam o ciclo dos nutrintes que generarám no solo nova vida. Claro que umha civilizaçom como a nossa, que aboliu imaginariamente a morte, tem que sentir-se muito perturbada por um animal que caminha entre cadáveres. Que dizer do refugalho? Pensamos que podemos produzir resíduo impunemente, porque desaparece da nossa vista, e esquecemos que há umha parte do mundo natural que se encarrega da sua reciclagem, seguindo ritmos mais sensatos que os nossos de destruçom e criaçom. Mas conheçamos esta ave tam citada e ignorada.
A preeira do sul da Europa
Abutre é um termo genérico que designa várias espécies de falconiformes, pertencentes à família Accipitridae. Nas serras galegas sobrevive a variedade Gyps fulgus, o abutre comum ou leonado. Emparentam-se com as aves de rapina diurnas, mas tenhem grandes singuaridades. Extendem-se polo sul da Europa e o norte de África, e desde Portugal chegam à Ásia Central. Nom todo o relevo galego as favorece, pois gostam de espaços abertos, como páramos e estepas, que permitem localizar as presas sem obstáculos visuais. A Meseta espanhola é, em troca, umha área enormemente favorável, e tal foi a presença abutreira no país vizinho que deu lugar aos apelidos “Buitrago” ou “Butragueño” originados em Castela. Na nossa Terra, podem habitar as nossas serras, pois a combinaçom de ar frio e quente das zonas altas aproveitam-na para as suas grandes ascensons; nos montes de rochedo podem aliás construir ninhos, para o que aproveitam as fornelas.
A perseguiçom levou-na a um debalar intenso em toda a Europa, até que na década de 1970 o voluntariado ambiental propiciou repovoaçons e medidas protectoras. Sem embargo, a ignoráncia governamental com a natureza tem-lhe colocado sérios obstáculos. A proliferaçom de linhas de alta tensom e parques eólicos danou-no seriamente; desde 2007, a proibiçom de deixar restos de gado no monte, promulgada pola UE, rematou com muitas fontes de alimentaçom. Porém, os avistamentos som bastante frequentes, como registava já a imprensa comercial em 2008, e como vários amantes das aves recolhiam nas suas fotografias. Na última década, é relativamente habitual ver abutres nas nossas serras nortenhas, tais como a Faladoira, a Capelada, a Coriscada ou a Loba.
O voo do gigante
A estampa habitual do abutre chega às populaçons de hoje através dos documentários de natureza do tevê: um ave enorme, de andar torpe, a se mover entre restos de animais e mesmo a entrar em liortas polas preas com os seus congéneres. Na realidade, o desenho natural do abutre obedece a um propósito natural perfeitamente executado: carece de plumagem em cabeça e pescoço para os restos e o sangue nom ficarem prendidos ao seu corpo, o que provocaria infecçons; as patas som relativamente fracas porque, a diferença das suas primas águias, nom as utiliza para caçar; e o fortíssimo peteiro complementa-se com um sistema digestivo sem igual na natureza, que permite ingerir bactérias sem intoxicaçons.
Se o vemos nas alturas, o seu porte muda: é das aves de maior envergadura, pois precisa um aletejo poderoso para se elevar aos céus, e ali alviscar carnaça, ou mesmo para seguir o curso dos depredadores que iniciam a sua caça, de cujos restos se aproveitarám. Tanto o abutre comum ou leonado como o preto, que em Portugal chamam “abutre fusco” superam com folgura os dous metros com as assas extendidas. O quebra ossos ou abutre barbado, desaparecido da Galiza no século XIX, aproxima-se aos três metros.
A lenda
Precisamente o quebra-ossos alimentou a fantasia dos europeus de antano. Na Alemanha baptizárom-no como “Lammergeier”, caçador de anhos, e cria-se que devorava animais vivos e mesmo crianças. Esta crença errónea levou a perseguiçons selvagens que o eliminárom de vez; o derradeiro caiu abatido nos Alpes em 1913. Os seus olhos amarelos e vermelhos, que se escurecem com a excitaçom, provocavam pavor, como também os seus ninhos. A crença popular estabelecia que brilhavam de noite, e a ciência provou ser isto certo: o fósforo dos ossos que consomem emite luz na escuridade.
Para os romanos, o abutre associava-se com Marte: quando o deus da guerra actuava, por razons óbvias, o voitre tinha um banquete; também com Juno, a matroa tiránica e caprichosa de atitude guerreira. Mas como levamos vendo em distintas entregas desta secçom de “Terra”, nom há umha visom unilateral da fauna no passado das civilizaçons: o abutre foi para alguns povos um “fénix” ressurrecto, e no Tíbet veneram-no; os egípcios concebiam-no como um adivinhador do futuro e um “ave da maternidade”, pois pensavam que só existiam hembras; ainda, em Pérsia considerava-se que se a sombra do abutre passava sobre nós, o bom agoiro iluminava a nossa vida. Morte e ressurrecçom, criaçom e destruçom, luz e sombra, entretecidas sempre na natureza e nos grandes mitos.