A finais do século XVIII havia ainda quem falara do “tigre” na Galiza. Com o seu gosto pola precisom e um profundo conhecimento da língua, o Padre Sarmento esclarecia na sua correspondência em 1760: “O nome de tigre é falso, pois nom há tigres na Europa, mas chamam-no tigre por ter a pele manchada (…) Chama-se lobo cerval, lobernom, lubicám ou lobo rabaz. Os quatro nomes primeiros, embora começam com lobo, apenas aludem à sua voracidade, nom a que seja animal do género lobo, pois só é do género gato.” No século XIX, o estudioso Eladio Rodríguez precisava nos seus estudos léxicos: “o nome de cerval vem-lhe de ser o seu berro semelhante aos cervos.”

De quem falavam os nossos antepassados? Do animal conhecido como lince, e que ainda o naturalista López Seoane, na sua “Fauna Mastológica” (1863) situava campando por Lalim, Taveirós ou a Terra Cha. A subespécie que ocuparia todos os “Pireneus Cantábricos”, como Eliseu Reclus chamava aos cordais que partem de Euskal Herria e se adentram até o surleste da Galiza, seria o “Lynx lynx”, isto é, a variedade que se extende de Sibéria a Finlándia, diferenciada em cor e tamanho do vizinho do sul, o mui conhecido (e mui ameaçado) “Lynx pardinus”.

Imagem: ibtimes.co.uk

Existiu entre nós? A sua discreçom proverbial, o seu carácter arredio, o seu nulo gosto polo contacto com humanos, situárom este animal no terreno da lenda: umha besta fera à que se lhe adjudicavam ameaças e ataques que quiçá partiam do urso e do lobo, os seus vizinhos nas serras. Tal foi o poder simbólico do lubicám que protagonizou montarias sem igual no sul da Galiza, como nos recorda José Piñeiro em “El lobo cerval: notas etnográficas” e populariza este completo blogue. A finais do século XVIII ataques mui reiterados à cabana gadeira entre Monte Rei e Chaves provocárom um acesso de histéria em nobreza e populaçons, histéria que vinha carregada de especulaçom e ideias fantasiosas. Foi precisamente nesse lance que o Padre Sarmento interviu, para desmentir que o povo sofresse a ameaça de bestas imaginárias ou ‘tigres’, e para esclarecer que se tratava do lince. Mas na altura, parte da populaçom pensou que o gado padecia a crueldade dum “cam lobo negro”, conhecido como “a Besta da Raia”. Autoridades portuguesas chegaram a recrutar, segundo as fontes, milhares de homens para as batidas, logo seguidas polos galegos. A caçata nom deu com a besta, e porém rematou com a morte de raposos e lobos.

Seja como for, a dimensom mítica do animal é forte, e há naturalistas que associem a figura do lubicám com um ser metade real metade imaginário como é a ‘queixa’, que se vencelharia com o topónimo de Chandreja de Queixa.

Informaçons contemporáneas

Despejando dúvidas, a ciência tem-nos deitado algumha luz sobre o Lynx lynx: é um felino que começou a habitar o occidente europeu há 11000 anos, e que os mais dos investigadores dam por desaparecido no século XVI na maioria das naçons do nosso contorno. Mede sobre 1,35 de longo e pode pesar até 35 kilos. Podemo-lo diferenciar do seu vizinho mediterráneo por pesar bastante mais, quase o duplo, e por ter umha pelagem mais clara, orientada à camuflagem em zonas de neve; as suas patas, mais longas, também estám desenhadas para caminhar com agilidade pola alta montanha. Tem preferência polas lebres, mas atreve-se também com corços.

É um animal enormemente solitário, que apenas se reúne pontualmente para a caça ou deslocamentos de área (por regra geral, desloca-se num rádio duns 40 kilómetros). Nocturno, vê muito bem na escuridade. Com boa luz é quem de descobrir umha presa do tamanho dum ave a uns 500 metros.

Há quem aponte à subsistência do lince em maciços como Trevinca. Imagem: turismo.gal

A pesquisa mais recente despejou dúvidas sobre a sua natureza e extensom. Na publicaçom Journal of Zoology, a meados da década de 10, Rodríguez Varela estudou restos óseos topados em simas cantábricas, para concluir que fora umha espécie autóctone peninsular desde a pre-história. Eram animais, esclareceu o investigador, remisos e fugidios, “quase como fantasmas”.

Mas precisamente neste carácter fantasmático reside a polémica. Varela assegura que a sua extinçom aconteceu há 400 anos, e só está a voltar ao continente por reintroduçons artificiais (como a que no Reino Unido se leva adiante baixo o programa “Lynx UK Trust”). Porém, outros amantes da natureza desmentem esta afirmaçom tam rotunda. Na nossa terra, a sua sombre segue a pairar. O escritor espanhol Miguel Delibes recolheu testemunhos de caçadores que afirmavam tê-lo topado na Serra do Larouco em 1965, e em 1967 apareceu um exemplar morto em Balboa, nos Ancares; Rodríguez de la Fuente situava-o também na Galiza na década seguinte, justificando a sua postura com a idoneidade da nossa geografia oriental: terras altas, matogueira espesa, abundáncia de lebres e coelhos. O investigador Anthony Clevenger, que se deslocara desde os Estados Unidos para estudar o urso pardo, declarou tê-lo atopado em Doiras em 1985. E ainda em 1997, Ramón Grande del Brío situou-no no Maciço de Trevinca.

A lenda

O impacto deste animal é grande e afecta todas as condiçons, do povo às elites científicas. Em mitologias tam distantes como a grega, a norueguesa ou a indígena norteamericana aparece o lubicám singularizado e venerado. Elusivo e misterioso, a sua mirada sempre deu muito que pensar. Para os nativos americanos, associava-se com umha capacidade sobrenatural de ver as cousas, e era alcumado “o conservador de segredos.” Na mitologia clássica damos com a lenda de Teofastro, que diz que a urina do animal remata transformada numha pedra preciosa, a “pedra do lince”. Da história fam-se eco autores tam senlheiros como Plínio O Velho ou Ovídio.

Gravado sobre o lince da Idade Moderna. Imagem: lindahall.com

No século XVII, Johannes Hevelius descobriu umha constelaçom no Hemisfério Norte de luz muito vacilante, quase imperceptível, e baptizou-na como a Constelaçom do Lince. E é que para os cientistas, o lince, como símbolo, tem também o seu atractivo: em 1603 Federico Cesi funda a “Academia do Lince”, sociedade científica da que fazia parte também Galileo Galilei. No seu emblema, o lubicám enfrenta-se ao cam cerbeiro que vigila a entrada do submundo, e reça a legenda: “com olhos de lince, examinamos aquelas cousas que se manifestam elas próprias.” Na passada semana analisávamos o valor simbólico dos animais para os nossos devanceiros; e nestes tempos difíceis, nevoentos e confusos, bem puidéramos tomar a vista aguda do nosso ‘tigre’ autóctone para caminhar na escuridade.