“Ao escrever esta obra, procurei dividi-la em cinco capítulos, correspondentes à Terra, à Água, ao Fogo, ao Vento e ao Vácuo, a fim de expor as peculiaridades de cada um, bem como as suas vantagens.”
Livro das cinco esferas
Miyamoto Musashi
Seguindo zouponamente o exemplo do inimitável Musashi, tentarei traçar umha impressom estratégica da atual crise sanitária em cinco partes: luita pola hegemonia do sistema-mundo, luita civilizatória, luita de classes, luita política e luita de liberaçom. Velaqui a primeira.
Luita pola hegemonia do sistema-mundo. Terra
A teoria do sistema mundo elaborada por Wallernstein e completada por Quijano, Dussel e o decolonialismo certificou na história da modernidade capitalista processos de troca de hegemonia. Assim, o primeiro hegemon co que nasceria esta fase da humanidade seria o hispano-flamenco coa descoberta de América, os impérios hispánicos e o comercial holandês agromado dos primeiros. Sucederia-o hegemon inglês desde o século XVIII, inserindo-nos na fase industrial capitalista. Desde a II Guerra Mundial, esta preponderância anglosaxá deslocaria o seu centro para Estados Unidos e hoje estaria em devalo frente ao ascenso do hegemon russo-chinês. Quer dizer, encontramo-nos num momento de troca de hegemonia no sistema-mundo.
Resulta fundamental esta perspectiva para entendermos os acontecimentos que estamos a viver na crise sanitária que padecemos. China já sustinha a preponderância económica antes do coronavírus, porém, que fosse a primeira em superá-lo situa-a ainda com mais vantagem para navegar a depressom económica que se aproxima. Após o Brexit que recompujo o poder anglo-americano sem o lastre europeu, a Uniom Europeia, cada vez mais dividida polo eixo Norte-Sul, remexe-se à deriva no meio da crise vírica. Justo o eixo que o hegemon asiático em ascenso precisa para deslocar ligeiramente a hegemonia “cultural” que ainda retém nela a potência anglo-americana. E velaí que a ajuda que noutrora Russia lhe oferecera à Grécia aparentemente anti-troika da inicial Syriza, agora vira apoio médico e humanitário russo-chinês a percorrer Itália. No entanto, o presidente Sérbio agradecia-lhe chorando a ajuda a China frente ao desleixo da UE.
Assim e todo, o poder militar anglo-americano segue sem ser superado e se o Covid-19 lhe fai arrandear a sua estabilidade interna nom duvida em reafirmá-lo como distraçom. O movimento de tropas ianques para a fronteira de Colómbia com Venezuela, aliado Russo-Chinês, da passada semana exemplifica-o. Por riba, num momento em que o preço do petróleo estava em mínimos históricos e a guerra económica entre Russia e Arábia Saudi ardia. Por isso cumpre cautela à hora de considerar a presente crise como o chanço definitivo na troca de hegemon mália a sua tendência imparável. O poder financeiro sustém a confiança no gigante britano-ianque a pesar do coronavírus. Isso sim, cada vez em maior detrimento da Europa, a parte mais prejudicada em todo isto. E porém, a UE segue a rejeitar a audaz oferta de Rússia para vender-lhe energia em euros, o que suporia um xeque ao petrodolar, o outro piar do poder ianque. Mas nom resulta estranho esse medo: ainda que o ano passado, em plena guerra económica cos USA, China ameaçasse com vender a dívida americana e desdolarizar-se, a vitória pírrica que isto lhe forneceria nom compensaria os enormes danos que se ocasionaria a si própria. Mesmo antes da crise, o governo de Estados unidos superou a maior cifra de dívida da sua história: 23 bilhons de dólares, um 16% mais da que havia quando Trump chegou à presidência. Alíás, nesse período, o déficit incrementou-se num 50%. A potência asiática possui o 18% da dívida americana, a maior parte, e também umha imensa reserva de dólares que emprega para beneficiar a sua economia desvalorizando o yuan. Desdolarizar-se, como fijo e promove Putin, suporia-lhe um golpe ainda inassumível e umha trovoada económica de difícil controlo a nível mundial.
Nesta tesitura de enfrentamento global resulta infantil acreditar nas manipulaçons mediáticas contra Russia e China dos grupos de desinformaçom do regime, vinculados aos grandes lobbys de comunicaçom anglo-americanos. Porém, também caimos na puerilidade se pretendemos ver no gigante sino-russo um continuador do bloco socialista em chave comunista para além do capitalismo de Estado com estética estalinista que pratica a república popular no melhor dos casos. Nom podemos analisar China exclusivamente com categorias ocidentais. Em palavras de Zhang Weiwei, nom é um estado-naçom no sentido liberal, é um estado civilizaçom. Quando ocidente bate co gigante asiático, encontra umha continuidade cultural e institucional de mais de 2000 anos. Algo semelhante ao que lhe acontecia à Grécia ou à Roma clássicas com Egito. O tempo transcorre de diferente jeito quando umha sociedade acumula a experiência de milénios, enxerga melhor a meio e longo prazo. Assim, os empréstimos dos bancos estatais chineses aos Estados “em vias de desenvolvimento” já superárom as quantidades do Banco Mundial e do FMI, mas nom exigem as medidas político-sociais em troca que reclamam estes. China prospera fornecendo ajuda internacional e comércio, sem imperialismo além das suas fronteiras. Enquanto o FMI debate sobre um plam de empréstimos mundial diante da crise inevitável pós-covid, sempre impondo as suas condiçons nas políticas internas dos Estados, China encontra um campo perfeito para a expansom da sua supremacia tranquila. No tempo em que Estados Unidos padece umha catástrofe sanitária e tenta acaparar mascarinhas; China, com Rússia e Cuba, enviam ajuda humanitária. O poder da planificaçom, a força do Estado frente ao caos do mercado, manifesta a sua superioridade em tempos de crise e estabelece um novo marco de referência mundial. A instantánea de ajuda russa em chao estado-unidense resulta contundente. Porém, nom confundamos isto com qualquer teleológica fase triunfante do socialismo com base em desenvolvimentos das forças produtivas, polo amor de Marx! Avonda com analisarmos a relaçom capital-trabalho no novo hegemon para cair da burra. Pior ainda seria fascinarmo-nos com umha brusca muda de hegemonia e imediata derrota do capitalismo coa simpleza dum filme de Hollywod.
As momentos de troca de hegemonia no sistema-mundo som períodos de inestabilidade que permitem a viabilidade de novos projectos estatais. As independências Latinoamericanas de começos do XIX seriam impensáveis sem o apoio do novo hegemon inglês frente a Espanha. A Primeira Guerra Mundial deu nas independências das naçons contidas nos impérios europeus do antigo regime e a Segunda na descolonizaçom de Áfria e Ásia. É mais, nom haveria revoluçom soviética sem a Gram Guerra. Quer dizer, estamos numha etapa de oportunidade internacional para os movimentos independentistas e progressistas que passa pola aliança co hegemon em ascenso. Com umha “esquerda” espanhola totalmente engaioalada na segunda transiçom do regime do 78 dentro da UE, do FMI e a OTAN, qualquer ruptura democrática vai partir dum soberanismo forte apoiado na potência russo-chinesa para ser viável. A nível continental, umha Europa do Sul abraçada também a Latinoamérica e a África que ajude a abalar ainda mais a decadência da hegemonia anglo-ianque.
Por isso resulta tam importante sabermos diferenciar alianças geoestratégicas de modelos políticos. Como dixemos, China nom impom o seu modelo aos aliados a diferença do imperialismo estado-unidense. Abraiar com um suposto revival estalinista mundial desde um pacto com ela é aceitar a própria propaganda ocidental imperialista. Porém, rejeitá-la desde um purismo anticapitalista religioso conduz à nada. Cumpre a aceitaçom de dous ritmos de construçom na superaçom do capitalismo. Um imediato que responda às urgências conjunturais políticas e económicas e outro de longo prazo que construa no horizonte da nova sociedade em todos os aspeitos, civilizatória. Quer dizer, um marco de relaçons nom patriarcal, nom racista, sem exploraçom e realmente democrático com um novo sentido comum construido desde a nossa classe. Disto havemos falar no seguinte capítulo. A principal funçom da primeira dinámica é garantir o espaço da segunda, abeirá-la da erosom do sistema ao longo de cada tesitura imediata e sempre em avanço. Ao cabo, foi assim como a burguesia europeia deu construido a civilizaçom capitalista . É o que vemos no poder comunal venezuelano protegido polas instituiçons bolivarianas estatais ou no poder popular curdo e zapatista resguardados por cadanseu exército, ao cabo, esqueletos de Estado também. Endebém, o governo mexicano de Morena parabenizando-se pola apariçom de novos caracóis zapatistas desde a sua chegada assinala um exemplo ainda mais acabado. À esquerda soberanista cumpre-lhe aceitar estas realidades “macro” se quer ser realmente efetiva no concreto e nom emprenhar do ar.