(Imagem: O Sorriso de Daniel) Fazemos um parom breve no nosso repasso semanal pola fauna e flora galega para repararmos nessa outra forma de apariçom dos animais na nossa Terra: a pedra. Os testemunhos mais temperaos de criaçom cultural humana no espaço que hoje chamamos Galiza som precisamente desenhos de animais nas cova paleolítica de Eirós, em Triacastela; neste portal temos também reparado na veneraçom do cervo e no cavalo que transparecem os petróglifos. E qualquer galega amante do seu teria-se decatado da profusa presença animal em pórticos, capiteis e tumbas medievais. Hoje imos debruçar no bestiário do románico, joia artística do Reino da Galiza.
Qualquer galeguista que se preze recordará os desenhos de Castelao para as publicaçons de ‘Nós’, a versionarem uns animais indefinidos (entre réptis e monstros) enquadrando a ilustraçom: som as criaturas do submundo que adornam o Pórtico da Glória; as devotas do románico da Ribeira Sacra (cada vez mais numerosas) terám tomado nota das múltiplas representaçons animais das suas pequenas igrejas rurais; e quem conhecer a nossa nobreza baixo medieval recordará a tumba imponhente de Fernám Peres de Andrade “O Boo” na igreja de Sam Domingos de Betanços, erguida por urso e javarim. Casualidades? Nenhuma. A mentalidade medieval estava conformada em grande medida por umha certa visom dos animais, e é essa visom a que chegou a nós, graças ao trabalho dos canteiros.
“Compêndios de bestas”
Para entendermos o que nos diz a pedra, primeiro temos que conhecer as bases da cultura letrada medieval. Por volta do século XII, no conjunto da Europa occidental começa a popularizaçom dos “compêndios de bestas”, mais conhecidos com o nome de “Bestiários”. Longe do nosso actual interesse zoológico (destinado à manipulaçom da natureza ou movido polo amor dos naturalistas), o medievo pretendia realizar umha leitura minuciosa da criaçom ou, polas suas próprias palavras, “do livro de Deus”. A natureza comparava-se com umha obra escrita pola divindade, e cada criatura, como um termo, tinha o seu significado a desentranhar.
A Idade Média aproveitou-se do trabalho ingente que desenvolveram gregos, bizantinos, e mesmo persas. Baixo influência cultural helénica e no século II d.C. (provavelmente em Alexandria) compugera-se o “Physiologus”, que é considerado o primeiro bestiário; já Aristóteles escrevera umha “Historia Animalium”, e pensadores como Heródoto ou Plínio O Velho fixeram as suas incursons neste terreno. Dessas achegas primeiras venhem os grandes bestiários europeus. O mais conhecido deles é o “Aberdeen Bestiary”, inglês. O mundo céltigo irlandês, que foi umha grande factoria de cultura escrita desde a Alta Idade Média, produziu o seu: “Topography of Ireland”, da autoria de Gerald of Wales. Nele aparecem, entre outros, a águia pescadora, o ganso ou o porco teixo. A influência dos bestiários foi tam grande que até um criador nom estritamente católico, senom mais bem deísta, Leonardo da Vinci, elaborou o seu séculos depois.
As liçons da pedra
Alguns destes bestiários organizam alfabeticamente as criaturas; outros dividem os terrestres de marinhos; ainda os há que se dedicam apenas às aves (os chamados ‘volucrários’). Mas o que abraia o leitor contemporáneo é a sua mestura despreocupada de seres existentes, com animais produzidos pola imaginaçom humana. Como explicou o historiador da ciência David C. Lindberg, o homem medieval nom estava preocupado com a existência ou nom existência da besta, “senom com a liçom moral que fornecia.” Além disso, e num mundo ainda dominado por certo isolamento continental, as pessoas perguntavam-se se o grifo, a arpia ou o basilisco nom estariam realmente vivas em áreas remotas do mundo.
Entre umha populaçom maiormente analfabeta, os templos medievais tinham o objectivo de ilustrar a populaçom com as figuras de animais: pórticos e capiteis, como os bestiários entre as classes letradas, ofereciam instruçom moral e as chaves bíblicas. O lugar na natureza de cada criatura nom era estudado por interesse em si mesmo, senom polo seu potencial de instruir sobre a conduta de cada pessoa na sua própria vida.
É-nos difícil chegar ao cerne da concepçom medieval sem nos livrar de alguns prejuízos actuais. Falando mui grosso modo, a concepçom dos animais do ser humano contemporáneo abana entre dous extremos: na mentalidade tecnocrática dominante, a fauna fai parte do mundo dos “recursos”, um depósito inesgotável que podemos planificar e exprimir para propósitos económicos, médicos ou turísticos; na visom dissidente defendida polo animalismo, as bestas seriam os nossos iguais, dotados de sentimentos, e que merecem a nossa ternura. A mentalidade medieval era neste ponto mais aguda, porque entendia na natureza – e na fauna em particular – a luita dos opostos: carinho e crueldade, vida e morte, criaçom e destruçom; e por isso muito poucas criaturas talhadas na pedra románica tenhem um valor em si positivo ou negativo, com a excepçom dos monstros. Há umha dicotomia subtil e complexa, e dessa tensom deverá a pessoa tirar as melhores conclusons para a sua vida moral.
Vejamos alguns exemplos célebres: associamos o leom com o poder e a majestosidade, e nom nos enganamos. Na Idade Média, encarnava a ressurrecçom (as suas crias nascem dormidas e acordam um tempo depois, o que retrotraía a Cristo volto da morte). É também o animal do Evangelho de Sam Marcos, e portanto nobreza e coragem. Sem embargo, da sua ferocidade sem limites o cristao tirava também a ideia da crueldade do demo com aqueles pecadores insensatos, que devoraria sem remisom. No campo contrário, a cabra situa-se normalmente no campo da maldade: pecadenta, lasciva, vítima do nobre leom, que a devora. E porém, em certas representaçons pode ter valor cristao: habita as zonas mais esgrévias da natureza (como víamos há semanas falando dumha certa espécie, o rebezo), contempla desde as alturas, e em certo modo vigila o rabanho. Que diremos dum animal mítico como a sereia, tam importante para nós que chega a decorar o nosso escudo nacional? Comumente, remite-nos à inteligência perversa e à seduçom com fins maléficos, dacordo com o modelo tam exitosamente popularizado na viagem de Ulises: o canto formoso que leva à perdiçom é o próprio pecado. Mas também pode ser um emblema de inteligência aguda, de sagacidade, e daí que figure na heráldica. De feito, a linhagem dos Marinho adoptou-na como escudo a partir dum relato que a fai aparecer como umha criatura pura e nobre. Esta ambivalência domina na maioria do bestiário, em pergaminho ou pedra. As aves, com a excepçom dos misteriosos corvo e coruja, seriam os animais melhor parados: ligeiras, pacíficas, formosas, orientadas sempre cara o alto, representam o espírito.
Paragens obrigadas
Agora que a invasom turistizadora poderia deter-se por efeito dumhareflexom colectiva post-Covid19, quiçá toparmos um momento propício para visitarmos alguns lugares da nossa Terra sem aglomeraçons e balbúrdias. A recomendaçom tem que ficar por força incompleta, dada a riqueza inatingível do nosso románico. Ora, é certo que existem certos destinos obrigados. E para ilustrá-los, podemos acompanhar-nos dos materiais produzidos pola associaçom O sorriso de Daniel, e pola obra de Xosé Mariño Ferro: “Bestiario en pedra. Animais fabulosos na arte medieval galega” (2004).
O Pórtico da Glória, antes mentado, oferece-nos quiçá a mostra mais profusa do submundo animal no medievo galego, e no seu zócalo inferior Mateu reproduziu as quatro bestas horrendas que aparecem no Livro de Daniel. Quem tiver predilecçom polas figuras apavorantes pode deslocar-se apenas 50 kilómetros da capital e viajar a Santiago de Breixa, no Deça: umha obra particular do románico galego com um bestiário único pola sua dose de fantasia: os canteiros de Breixa representárom a brutalidade nos centauros e a seduçom nas arpias; acompanhárom estas criaturas com os grifos, outra encarnaçom o mal.
Na Ribeira Sacra, a cantaria dedicada ao animal é tam profusa que custa escolher: em Nogueira de Minho topamos a representaçom inusual da troita e a anguila; em Eiré (Pantom), o leom e o boi aparecem com o sentido positivo de símbolos evangélicos, e transmitem nobreza, paz e constáncia; em Brigos (Chantada), os canteiros representárom o homem mono, que como na cultura oriental, fala do ego dominado polos seus instintos e a conduta irrefreável.
E ainda, em pontos muito distantes do território tenhem um lugar de privilégio os animais antropófagos: criaturas que papam o homem e a mulher que nom fórom fortes ante o pecado, ou que se debatem entre o bem e o mal. Em Sam Martinho de Mondonhedo, um monge é torturado por dragons, no que provavelmente aluda à tentaçom; em Santa Marinha de Fraga, no concelho de Campo Lameiro, o leom trava os pecadores. As cenas e motivos repetem-se em vários pontos do Caminho de Santiago, o que segundo especialistas aponta a escolas de canteiros que levavam o seu bom fazer pola rota das peregrinagens.
No comum do povo, as imagens deste bestiário semelham inculcar humildade, prudência e até medo. Restaria por ver o seu uso aristocrático, como bandeiras do poder e a fachenda. Os escudos heráldicos fórom chamados “armas parlantes”, e de facto os cabaleiros exibiam nesses estandartes virtudes guerreiras associadas a animais. Os Andrade fixérom-se conhecidos por se apropriarem dos animais de montaria, o javarim e o urso, e com cenas de caça na sua tumba decidiu passar à posteridade este senhor trastamarista.