Nas últimas semanas, som numerosas as vozes que, com boa intençom, tentam orientar, regulamentar e mesmo normalizar, num sentido foucaultiano, a vida confinada duma ampla perspetiva de saberes: psicólogas, docentes, nutricionistas, educadoras sociais e pedagogas escrevem sobre diversos temas: equilíbrio emocional, recursos educativos, períodos de atividade, intervalos de descanso, dietas saudáveis e um longo et cetera. Uma récua de profissionais entra nas nossas casas através das televisons, o whatsapp e as redes sociais para desenhar a bíblia do S. XXI, escrita em nome da razom, mas igualmente vaidosa na hora de decretar umas instruçons de vida que chegam a ordenar a prática totalidade da existência quase-conventual própria desta época: ora et labora, dizem.
O pânico da desescolarizaçom
Desde o início do confinamento produto do surto da Covid19, um dos maiores temores por parte do Estado, mas também por parte de muitas famílias e profissionais, era a suspeita de as crianças nom poderem continuar com o seu processo educativo fora da escola. A razom desta ideia radica num equívoco frequente ao associar escolarizaçom com educaçom. Sem dúvida, os adultos e as crianças educamo-nos em todos os contextos, de maneira autodidata ou com ajuda doutras pessoas e mediante diferentes e novos meios ao nosso dispor, produto da revoluçom telemática e a apaciçom de novos ecosistemas de aprendizagem, informaçom e conhecimento.
O Estado carece do monopólio da educaçom, pois esta respira-se em cada conversa e leitura, no entanto o Leviatám age como um sacerdote que se proclama único intermediário entre o ser humano e o saber. Um dos nossos grandes especialistas em diferenciar conceitos controversos e despir o poder das suas roupas de estilo requintado foi Castelao. Ele já denunciava, na primeira metade do século passado, o papel da escola tradicional estatal como domesticadora, violenta e irracionalmente virada de costas à nossa realidade social, cultural e nacional. Numa das suas estampas de animais assinalava a diferença entre civilizar e domesticar; décadas depois, e ainda reconhecendo a existência de projetos educativos transformadores e paidocéntricos, é difícil diferenciar no sistema educativo ambas as duas palavras ao analisarmos práticas didáticas rotinizadas, mecânicas, reificadas e desconectadas da vida e do contexto mais próximo.
Durante esta época desescolarizada, as crianças tenhem a oportunidade de aprender um universo de tarefas que nom costumam ser ensinadas na escola porque nom som valorizáveis polo mercado, mas que tenhem um lugar indiscutível na reproduçom da vida, a saber: cuidar -as pessoas, a horta, os espaços-, cultivar, brincar, cantar ou conversar devagar, entre outras. Deste modo, as casas podem constituir-se, paradoxalmente, em autênticos laboratórios de aprendizagem ativa e significativa para a vida, como tem assinalado recentemente o reconhecido pedagogo italiano Francesco Tonucci.
Produzir: a lógica escolar capitalista
Outro dos problemas detetados, e mesmo denunciados por numerosas famílias e polo próprio estudantado, foi uma excessiva quantidade de tarefas escolares durante o confinamento. Podemos perceber como a lógica fabril atravessa os processos educativos: crescimento, eficiência e rendimento do estudantado devem ser garantidos mantendo a “tensom educativa” da terceira avaliaçom, segundo o ministro. Num contexto de crise, com milhares de mortos, despedimentos e precariedade económica, é irrelevante intensificar um pouco mais o constrangimento das crianças e adolescentes porque a roda do capitalismo nom espera por ninguém: the show must go on.
A sociologia da educaçom marxista, nomeadamente as conhecidas Teorias da Reproduçom e da Resistência, tenhem realizado interessantes análises em relaçom ao modo em que opera a lógica económica capitalista nas instituiçons escolares. Dous dos autores mais referenciados da Teoria da Reproduçom, Bowles e Gintis (1985), na sua obra Schooling in Capitalist America explicam o conhecido modelo da correspondência. Apesar das numerosas críticas que podemos fazer a esta teoria na atualidade: reducionismo e mecanicismo entre estrutura económica e superestrutura, podemos compreender melhor o discurso tecnocrático educativo neoliberal. Para estes autores a dinâmica de funcionamento escolar é mimética da fabril: as trabalhadoras som as estudantes, o salário é o boletim das qualificaçons, o trabalho na fábrica e académico teriam um carácter reificado -cousificado- e desconectado da vida e as mudanças no próprio sistema escolar nom seriam mais do que uma consequência direta dos conflitos procedentes da esfera económica, das demandas operárias.
O processo de desindustralizaçom e terciarizaçom da economia fijo com que a língua desta filosofia histórica mudasse, mas outorgando ao ser humano o mesmo papel: ferramenta de geraçom de lucro. A filosofia neoliberal defende hoje a educaçom como um “capital pessoal” adquirido, como uma “miscelânea de competências” que uma pessoa “empreendedora” levará consigo para inserir-se competitivamente num mercado de trabalho marcado pola “criatividade” e a “inovaçom”.
Igualdade de oportunidades e meritocracia
Outro grande tema para a esquerda, durante estes dias, foi a desigualdade académica que poderia originar o confinamento entre o estudantado de diferentes classes sociais. A fenda tecnológica, que também é rural- urbana, associada ao acesso a Internet e ao tipo de uso diferenciado que se fai das tecnologias da informaçom e da comunicaçom -um uso mais pasivo por parte da classe trabalhadora- , a fenda cultural, ligada a uma desigualdade no tipo de acompanhamento educativo que pode receber o alunado dependendo do nível educativo familiar, ou de gênero, devido à desigualdade no reparto das tarefas de cuidado.
Todas estas críticas som necessárias, mas é importante perguntar-se se, numa situaçom ordinária, existe realmente igualdade de oportunidades. De novo, a Sociologia da Educaçom marxista descreve da mao do Pierre Bourdieu que, num sistema hierárquico e de classes como o capitalista, o capital cultural da classe hegemónica determina a capacidade de sucesso académico do estudantado dentro da instituiçom escolar. Outro autor, Basile Bernstein (1989), na sua obra Classes, Códigos e controlo estuda como a instituiçom escolar reproduz a cultura dominante, explicando a conexom entre o material e o simbólico, entre o poder, a cultura e as formas de consciência. Segundo o autor, a escola adoita priorizar e valorizar a linguagem de código elaborado, própria das classe media-alta, provocando o estranhamento das crianças de classe trabalhadora nas atividades escolares pois estas teriam um código restringido, vinculado a um modo de pensar mais concreto e particularista.
Podemos acrescentar a estas críticas as proprias das contradiçons de gênero e étno-culturais que atravessam a realidade escolar no nosso país; por uma parte produz-se uma invisivilizaçom do contributo das mulheres na construçom do currículo e do conhecimento e, em segundo lugar, a realidade política, histórica e económica galega é distorcida nos livros de texto das grandes multinacionais em chave espanholista e capitalista, onde as vilas som representadas como lugares para tirar férias e a nossa geografia como simples paisagem aculturizada.
Para atingirmos uma igualdade real no processo educativo fai-se necessário acabar com todas as desigualdades, mas a primeira delas é de carácter estrutural, que dizer, é a que determina a posiçom do ser humano na estrutura de produçom.
A meritocracia tem o potencial para a classe dominante de construir a sua hegemonia política em base a uma hipotética superioridade técnica que nom é mais do que um reflexo da desigualdade material entre classes. Denunciá-lo é a nossa obriga.