A finais do século XVIII, o cura de Fruime respostou em verso à decadência galega. Diego Cernadas e Castro era um ilustrado preocupado com o bloqueio económico do país e um dos pensadores que, valentemente, apontárom à responsabilidade castelhana na nossa postraçom. Nom o sabemos, mas mui provavelmente foi repudiado por apontar na sua prosa de denúncia àqueles poderosos que vinham de além do Berzo, e por isso compujo um poema de defesa:
“direis que á vuestros países / van millares de Gallegos; / así que también vosotros /debéis venir a los nuestros.”
O problema, onte como hoje, nom era aonde se ia senom como se ia:
“Que á Castilla mis paisanos / (los muy pobres) van, confieso, / tal vez á despedazarse, /para verse en quartos puestos”; em contraposiçom “Vosotros salís de aquí /gordos lúcidos y frescos; / y ellos salen de Castilla flacos, pálidos y negros.”
Onte, como hoje, a Galiza era um lugar doado, rico, proveitoso e rendível:
“La Prebenda, el Beneficio / (que en esta tierra son gruesos) / comeis sin algún sudor / que es comer sin merecerlo.”
O país é mesmo um lugar de promoçom para secundons:
“Aquí como unos pelados / llegais, y, al cabo del tiempo, salen paseándose en silla /los que vinieron en pelo.”
A relaçom com os nossos vizinhos é milenar. Os tratos entre povos e pessoas estám inevitavelmente atravessados por tensons e rivalidades, nom há nisso nada mau; mas para serem justas e ponderadas, proveitosas para ambos bandos, devem partir da igualdade de forças. O historiador clássico Tucídides pugera umha reflexom profunda em boca dos militares atenienses que decidiram arrasar Melos, assassinando e escravizando os seus habitantes, apesar das petiçons de clemência:
“Imos falar do que é possível…vós sabede-lo como eu o sei; o espírito humano está constituído dum modo que o que é justo só se considera se há igual necessidade em ambas as partes. Mas se umha parte é forte e a outra fraca, aquilo que é possível é imposto polo primeiro e aceite polo segundo.”
Para um povo ou umha pessoa alcançarem o estatuto de igualdade com um interlocutor precisa manifestar-se isso que chamamos auto-estima. Nom se pode amar o mundo sem amar-se a um mesmo. Isto expressa-se numha forma de comportar-se, de caminhar, de olhar, e também numha espécie de apologia de um próprio que nom tem nada a ver com a fanfurriada nem com a bravuconaria, que som as formas de compensaçom do complexo. Nos capítulos da nossa normalidade nacional, já remotos, um orgulho sao e vitalista transparece-se na prosa: “os soldados da Galiza, ainda que poucos, sobressaíam na luita e eram valentes na peleja”, diz-se na História Compostelana. Narra-se nela a incursom das tropas de Urraca, mae de Afonso VII em auxílio dos castelhanos contra as tropas de Aragom:
“ouh, quanta e que preclara glória militar proporcionou aos galegos aquele dia no que o Batalhador aragonês se retirou ante eles! (…) Ouh vergonha! Os castelhanos precisam de forças alheias e som protegidos pola audácia dos galegos. Que será desses medrosos cavaleiros quando o exército da Galiza, o seu escudo e protecçom, marche?”
O guerreiro mussulmano Albufeda, mais dum século depois, incidirá nesta visom: “os galegos tenhem umha bravura indómita e nom vem a retirada quando saem ao seu encontro, considerando a morte como cousa banal.” A afirmaçom é coerente com o juízo do cluniacense francês Ameryc Picaud, que à margem do ámbito militar, encontra-se com um país viçoso, de terras férteis, e de carácter acendido: “som iracundos e litigiosos”. E ainda nos últimos estertores das classes dominantes autóctonas topamos a conhecida frase do cronista Zurita, popularizada por Castelao, onde aparecia a Galiza habitada por “gentes arrichadas e valentes.”
A ruína
A decadência política galega supujo a decadência da nossa auto-imagem e da nossa imagem no exterior, num processo de raiceiras materiais muito claras que a historiografia nos permite conhecer.
A finais do século XV, a participaçom na Real Audiência da Galiza está proibida aos galegos de naçom, e foi desouvida a petiçom de os naturais poderem exercer postos administrativos em cidades e vilas; a primeiros da seguinte centúria, nobres do país manifestam o seu desacordo com a supressom da representaçom galega nas Cortes de Castela: “a Galiza era reino de si só, tivera voz e voto nas antigas cortes”, e nom se entendia “como sendo um reino tam antigo, tam grande e tam leal, se negassem a dar-lhe procurador, e nom sem razom agraviava-se ao estar sujeito ao voto de Samora.” O tom é suplicante e, saltando os séculos, recorda ao dos regionalistas e nacionalistas pacatos dos nossos dias. Ainda em 1599, a Junta do Reino queixa-se de os arcebispos de Santiago, Lugo, Mondonhedo, Ourense e Tui nom serem galegos, e de entupir-se o desenvolvimento intelectual autóctone: “assim os naturais nom se dam às letras.” Ao que parece, os grandes do país, chegados de fora, alimentavam ao seu redor umha rede servil de obedientes castelhanos de terceira fila, a que Lois Tobio chamara com acerto “a última escumalha da corte.” No século XVII, as rendas produzidas na Galiza iam a engordar patrimónios foráneos, e estabelecia-se umha cessura nunca mais salvada entre elites letradas e povo:
“haveria grande bem para as almas”, volve dizer a Junta em 1764, se os postos religiosos estivessem em maos de pessoas “conhecedoras do pátrio chao, clima, condiçons, língua, costumes e necessidades.”
Um divulgador nada suspeito de patriotismo, Miguel Anxo Murado, conta-o assim:
“a Galiza relativamente rica dos finais da Idade Média caera em picado com a sua incorporaçom ao Império dos Habsburgo. As guerras provocaram o afundimento do seu comércio marítimo num momento em que este começava a decolar (…) A todo isto cumpre somar as péssimas colheitas que seguírom ao brusco pioramento do clima (…) A língua galega nem sequer era contemplada com humor, mas com irritaçom. (…) Mas nem a pobreza nem o idioma explicam todo. Galiza fora incorporada ao reino de Castela quase como umha terra de colonizaçom, despossuindo-a da sua personalidade jurídica e eclesiástica, suprimindo ou substituindo a sua nobreza.”
Na realidade, som palavras contemporáneas que fam ecoar as da Idade Moderna, escritas polas nossas melhores cabeças. Pois naqueles séculos escuros há na Galiza autênticos faros intelectuais que devemos conhecer e estudar.
Respostas
Um deles é Joám Álvarez Sotelo, um jesuita ourensano do século XVIII que mui atinadamente, aparece reivindicado contra o anonimato num bom livro de Manuel Cabada Castro (Galicia. Raíces e compromiso, 2015). Sotelo era natural de Perrelos, na Límia, e professor de Gramática. Escreveu umha Historia General del Reyno de Galicia e desmontou com palavras firmes o relato que a hierarquia da sua própria orde – a hierarquia eclesiástica em geral- espalhou sobre o país. Em terra de colonizaçom pastoral, som as ordes monacais e conventos os que gizam os primeiros traços do discurso que os literatos do Século de Ouro farám popular: incultura, superstiçom, carácter críptico, primitivismo. Som precisamente os jesuitas os que utilizam o termo “as outras Índias” ou “as Índias destas partes”. A pregunta cai de caixom: se esta terra é dura e desprezível, a que venhem com tanto entusiasmo? Explica-o Sotelo ao apontar que: “os estranhos buscam Galiza com ánsia” porque
“desde os anos 1500 é governada e tiranizada, assim no espiritual, por estranhos dos que trai a má ventura deste Reino, uns com nomes de militares, a outros com títulos de Ministros de Justiça, a outros com Administraçom de Rei e de Príncipes, e a outros em serviço de Bispos e Abades, Monacais e outras pessoas principais; os que recolhem imensos tesouros dos seus trabalhos e suores dos galegos e enriquecem aos seus deudos e parentes ficando a Galiza exausta e esquilmada.”
Outro analista é-nos bem conhecido: o padre bieito Frei Martinho Sarmento, entregado ao estudo e dignificaçom da nossa língua, das classes populares que a mantenhem viva, e em geral dos coterráneos que se vem obrigados à emigraçom, aos trabalhos mais servis e a virarem carne de canhom nas aventuras militares do império hispánico.
Colonos recém chegados e colonos de várias geraçons fam pouca distinçom no trato a americanos e galegos:
“semelha que os estrangeiros, e nom os galegos que vam a Galiza com empregos (…) imaginam-se que devem tratar, e tratam como americanos aos galegos naturais, rançosos e patrícios. E até agora, nenhum deles foi à Galiza a arar, cavar, segar e cultivar a terra, o mesmo que nom fam na América os espanhóis que passam alô com a capa ao ombro.”
Desequilíbrio agravado
Onte como hoje, quem tem as armas e os recursos económicos impom ao outro a sua vontade. O desequilíbrio agrava-se, até virar pura humilhaçom, se o submetido assume a sua inferioridade e se se degrada com comportamentos miseráveis. Os nossos clássicos detectárom o problema, e tivérom a valentia intelectual e pessoal de apontar os traços de carácter que fanárom tantos galegos. Diz Sotelo:
“nobres como plebeios (…) só tenhem de mau nom saber ser bons para si mesmos (…) estimar menos as cousas da sua pátria que as estrangeiras, com ser estas ordinariamente muito inferiores; nom achar palavras para louvarem as próprias e sobrar-lhes para enxalçar as alheias.”
Esta atitude derivava numha emigraçom massiva que incluía também as classes privilegiadas autóctones:
“puideram ter conseguido o interesse na sua pátria em trabalho virtuoso, cultivando muitos montes e veigas que estám ociosas, e exercendo algum dos ofícios dos muitos que faltam nas repúblicas. Loucura frenética, desatino intolerável, fogem da Galiza os seus naturais, procuram-na com ánsia os estranhos.”
Sarmento viu-no claro nos comportamentos idiomáticos:
“que direi dalguns galegos, que também falam como papagaios no seu idioma nativo, e que como tais se rim de si mesmos? Estes apóstatas da língua fórom os que principalmente ocasionárom que eu pegasse na pena, quer para increpá-los, quer para instruí-los.”
Deu-se ainda o agravante que a hegemonia nacional nom a exercia um povo culto e comprensivo, senom umha terra dominada polo chovinismo e a cerraçom. Testemunhos de além dos Pireneus incidem umha e outra vez nos mesmos traços: “que fastosos som (os castelhanos), sobérbios, finchados, austeros, arrogantes, altivos, insuportáveis”, diz no século XVI Bartolomé Joly, conselheiro e esmoleiro do rei da França; na centúria seguinte, um outro viageiro francês escreve:
“som dum carácter sobérbio, estimando-se superiores a todas as naçons estrangeiras, que é o meio de atrazer o ódio e o desprezo. Andam com gravidade, dim que procedem da poderosa naçom dos godos, fidalgos gentil-homes.”
E se pensamos que leituras críticas como estas podem dever-se a prejuízos interesseiros, vejamos o juízo sobre um dos primeiros nacionalistas, Miguel de Unamuno, suscrito por Ortega y Gasset:
“Áspera e dura Castela, assi saturada por um ímpeto demoníaco de violência (…) O sentimento do honor torturava-os com tanto dramatismo que os movia a realizar actos de magnífica barbárie. (…) Povo enérgico, áspero, duro, inflexível, acerado, orgulhoso.”
Dignidade
Obviamente houvo dignidade, e graças a ela estamos aqui hoje. O abuso e o despotismo fórom denunciados polas galegas e galegos mais grandes, a começar por Rosalia de Castro no seu “Castellanos de Castilla”, provavelmente escrito, segundo a investigaçom, trás encontrar-se com um grupo de segadores galegos demacrados na sua etapa em Simancas. Mais digna foi ainda a atitude destes galegos leais, se considerarmos que se mantivo contra um inimigo poderoso e numha situaçom de cerco social: Diego Sarmento Dacunha, Conde de Gondomar, recordava na sua correspondência que devotava tempo a recompilar “heroicos feitos e façanhas galegos” , o que molestava muito a “condes de aquele reino”; outro Sarmento, frei Martinho, dizia que a sua recompilaçom de nomes e vozes galegas provocava o riso de outros eruditos, mas que ele seguiria até finais dos seus dias cultivando a língua; e o mais arrichado de todos, o crego liberal Juan Antonio Posse, foi tratado como um tolo ao propor a inícios do século XIX umha ideia elemental que ainda hoje é silenciada e perseguida: que a Galiza se constituisse “como República livre e arredada das demais.”